Por Acauan
Postado originalmente em 08/07/2004 23:33:00
O cristianismo não existiria sem o pecado, cuja remissão é a única razão de ser do dogma do sacrifício vicário de Cristo.
Por conta disto (e de outras coisas), o pecado é uma preocupação central na vida do crente cristão e, possivelmente, o fator que mais o distancia de ateus e agnósticos, para quem o pecado não existe ou é apenas uma curiosidade conceitual.
Para os cristãos, evitar o pecado é a diretriz primeira de seu sistema moral, daí a dificuldade da maioria e a incapacidade de muitos deles em reconhecer que a ausência de crença religiosa em alguém não compromete em nada sua moralidade.
De fato não compromete, pois pecar é, essencialmente, ofender ou desobedecer a Deus ou afastar-se dele, o que não é sinônimo de ato imoral.
A dissociação do conceito bíblico de pecado do conceito moderno de moralidade pode ser ilustrado pela passagem em que Deus ordena que o exército de Israel promova o extermínio de Amaleque, incluindo os bebês:
I Samuel 15:3 Vai, pois, agora, e fere a amaleque, e destrói totalmente a tudo o que tiver, e nada lhe poupes; porém matarás homem e mulher, meninos e crianças de peito, bois e ovelhas, camelos e jumentos.
É uma opinião civilizada que trucidar crianças de peito é moralmente reprovável sob quaisquer circunstâncias.
Sob a ótica do fundamentalismo cristão os que feriram Amaleque apenas cumpriram ordens diretas de Deus, logo fizeram o que tinham de fazer.
Os israelitas matadores de crianças não pecaram. Pelo contrário, teriam pecado gravemente se poupassem as criancinhas e desobedecessem a Deus.
Pela escala de valores fundamentalista, a vontade divina é suprema e, portanto, está acima dos valores morais humanos. Logo, moral e pecado não são conceitos interdependentes, de modo que despreocupação com o segundo implique no mesmo com o primeiro, como muitos cristãos tendem a enxergar a questão.
O pecado ou o risco dele incomoda o cristão devoto de um modo pouco compreensível para o observador descrente, uma vez que o pecado, para quem acredita nele, vem associado ao medo e a culpa: Medo de perder a salvação e culpa por ser um pecador.
Se os cristãos não inventaram o sentimento de culpa certamente o aperfeiçoaram, tão intrínseco este sentimento é ao cristianismo.
O catolicismo romano reservou um espaço fixo para a culpa na liturgia da missa para que os fiéis a manifestassem publicamente no ato de contrição, enquanto os protestantes rebaixaram o ser humano à condição miserável do pecador mendicante da graça divina.
O crente que se sente culpado por ser um pecador, mais do que pelos seus pecados, é paradoxal para o observador ateu, cético ou agnóstico, por ser muito difícil para quem não tem fé religiosa estabelecer qualquer tipo de empatia com esta situação em particular.
Do outro lado da moeda, pode ser chocante para o cristão devoto aferir que o pecado, razão de ser de seus maiores medos e culpas, é motivo de absoluta indiferença para aqueles que não compartilham de sua crença.
Para evangélicos fundamentalistas, o medo e a culpa com relação ao pecado exercem ainda mais influência em suas vidas do que para outros cristãos (ou pelo menos, comportam-se eles publicamente como se assim fosse).
Embora este grupo de religiosos entenda que a graça divina é um dom gratuito (Romanos 6:23), eles possuem um compromisso com a busca da santidade (seja lá o que for isto) e a prevenção do pecado, tal como recomendado nos versículos abaixo:
I Pedro 1:16 porque escrito está: Sede santos, porque eu sou santo.
Mateus 26:41 vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.
Este compromisso leva os crentes mais afoitos a projetarem o medo e a culpa do pecado nas coisas mais prosaicas como comprimento do cabelo, modelo das roupas ou preferências televisivas.
Para muitos deles, comprar um CD da Xuxa representa uma passagem sem escalas para o inferno.
Se tal preocupação obsessiva com o pecado pode parecer risível para os não crentes, ela é o principal fundamento da prática religiosa cotidiana de certos cristãos, daí a incapacidade de muitos dentre eles de dissociarem a indiferença com relação ao pecado (típica de ateus e agnósticos) do mal, do demoníaco e da perdição.
O mais inaceitável para estes cristãos talvez seja o fato de que só aqueles que não crêem em Deus levam uma vida absolutamente sem pecado, já que para eles o pecado não existe.
Nada mais frustrante para quem carrega a culpa e o medo pelo pecado do que encarar o fato de que o ateísmo não deixa de ser um modo de remissão.