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A diferença como um direito e um destino

Enviado: 04 Abr 2007, 04:51
por Pug
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A diferença como um direito e um destino

Faranaz Keshavjee
Público 03.04.2007


Nem os líderes de opinião nem os políticos, que podiam contribuir para uma diferença positiva, conhecem os muçulmanos

Foi precisamente este o título usado num artigo que eu e Lígia Amâncio, na altura minha orientadora de tese de mestrado, preparámos para apresentar num colóquio em Lisboa da Amnistia Internacional no início dos anos 90. Nessa altura, discutíamos o direito à diferença nas várias categorias de ser social, desde o género, a cor, a pertença étnica e religiosa, mas também apontávamos o estigma e o sofrimento que essa diferença poderia implicar num destino menor e diminuído de ser pessoa.

Recordo-me de alguns acontecimentos nacionais e internacionais da época e tenho bem clara esta imagem de ignorância e de relativa hostilidade, porque era estranho e desconhecido este mundo dos muçulmanos. O assunto era o mais cobiçado pelas revistas femininas e artigos de jornais de então, que pretendiam reflectir o exotismo da mulher muçulmana e a sua diferença face à portuguesa e à europeia. Pretendia-se saber como é que sobreviviam ao poder impiedoso dos homens, da família e dos textos sagrados.

Talvez motivada por estas questões e apesar da minha diferença face a essa representação social dominante, e porque procurava explicar o inexplicável, porque em tantas coisas me sentia igualzinha às outras todas, decidi começar a procurar questionar e entender melhor o meu próprio mundo, e acima de tudo, a perceber que havia duas metades de mim que dificilmente seriam uma só. Desconstruí e reconstruí as minhas identidades sociais e sei que vou ter de o fazer não como qualquer ser social em dinâmicas e processos sociais normais, mas de uma forma mais penosa e sofrida.

Daí até hoje, houve acontecimentos no mundo que marcaram e demarcaram de forma mais visível e agressiva o mundo da diferença. Algumas coisas mudaram muito, outras quase nada. Dos acontecimentos internacionais e a partir dos desafios da globalização deixámos de querer saber do islão pelo exotismo das suas mulheres, dos haréns das mil e uma noites, dos exuberantes sheikhs bilionários e de ayatollahs esquizofrénicos, para conhecer o mundo dividido ideologicamente numa oposição bipolarizada, de resto como sempre o fizemos. Com a queda do comunismo, tínhamos de reinventar um novo inimigo do Ocidente e encontrámo-lo. Agora temos o islão versus o Ocidente.

É evidente para mim que apesar de ter também sido colhida, a uma velocidade atroz, pelos desafios de todo o género de eventos e de opiniões sobre o que pelo mundo vai acontecendo, e de também eu ter tido que me preparar para responder a questões completamente distorcidas na raiz do conhecimento sobre os muçulmanos e o islão, porque essencialmente ignorantes e mal-formadas, percebi finalmente que afinal tudo continua igual a antes no que se refere à ignorância sobre esse mesmo mundo oposto, que afinal de contas não só sempre existiu no Ocidente como inclusive o orientou em inúmeros passos civilizacionais.

Eu própria enquanto ocidental, mas também muito oriental, e entendam estas categorias como quiserem, e numa perspectiva educacional pluralista e humanista, sempre encontrei na diferença algo para aprender e para, eventualmente, integrar no meu conhecimento e perspectiva sobre a vida. Encorajada pela liderança religiosa e pelo apoio familiar, percorri alguns caminhos do saber através dos métodos e princípios científicos e positivistas. Sempre estudei no Ocidente. Aí a razão foi sempre estimulada, até mesmo pela fé, para questionar, investigar e conhecer. E foi precisamente por esses caminhos de ensino e de aprendizagem que viajei, estudei e analisei de perto algumas realidades do islão, a partir das quais hoje me sinto mais capaz de falar sobre a outra metade de mim. Esta é a boa notícia da minha ocidentalidade. A má notícia é a de que apesar de me ter sempre sido pedida uma justificação para os males do mundo, e de justificar sempre o mal que é o islão, e os muçulmanos, e para o que tive de estudar muito e reflectir sobre as questões colocadas, porque eram tão novas, tão horríveis, muitas das vezes, e tão obsoletas, a verdade é que encontradas as respostas, depois de muita pesquisa e investigação séria e à maneira do positivismo ocidental, sempre que apresento uma possível causa para as coisas acabo por ser categorizada como tendo opiniões de "extrema-esquerda"! Não é que me importe muito com a categoria política atribuída porque desde que seja coerente com aquilo que defendo tanto se me faz. O problema é que sendo tudo o que já sou em virtude das minhas múltiplas e exóticas identidades sociais, e sendo de uma geração política menos marcada pelas ideologias políticas, tive de consultar a Wikipédia para ver o que isso significa e, sobretudo, verificar se afinal se tratava de outro espécime exótico, mais um.

É um destino tramado, este de se ser muçulmano! Se não tem nada a dizer é porque devia tomar uma posição e publicamente desculpar-se a si mesmo, à sua fé e a todos os crentes - que apesar de tudo são mais de um bilião e duzentos milhões espalhados pelo globo e com quem muito pouco ou quase nada tem em comum, para além do testemunho de fé e do dogma inicial. Em tudo o resto a pluralidade de interpretações e de expressões de fé, nas teologias, nas doutrinas de fé, nas artes, arquitectura, línguas, e outras tradições, torna este um mundo imensamente diverso e contrastante. O islão é tudo menos uma realidade monolítica ou hegemónica. Se, por outro lado, diz alguma coisa, pensada, ponderada e vistas bem as coisas, mesmo que usando a lógica e razão identificando as causas das coisas, mas fugindo ao pensamento mainstream da sua sociedade, é porque se é de "extrema-esquerda", isto é, "muçulmano", anti-Ocidente, pró-terrorista, incivilizado.

Não tenho problemas em assumir, com aliás já o fiz aqui noutras crónicas, que se, por um lado, no islão se sofre um conflito identitário, ou a ilusão de que o "islão é a resposta", onde o obscurantismo e o "jihadismo" belicista vão ganhando terreno entre os mais vulneráveis e iletrados, motivados, como já percebemos, pelos cultos, ricos e intelectuais, mormente entre os que até se formam nos regimes apoiados pelos interesses político-económicos de algumas potências ocidentais, que a bem do petróleo e outras riquezas fecham os olhos às ideologias aberrantes que nesses regimes proliferam, no Ocidente, por outro lado, continuamos mergulhados nesta tremenda ignorância que nos cega ao ponto de engolirmos as teorias enviesadas e desinformadas dos nossos pretensos intelectuais nesta matéria.

Para agravar tudo isto, nem os líderes de opinião nem mesmo os nossos políticos, salvo honrosas e pouquíssimas excepções, que poderiam contribuir para alguma diferença positiva, conhecem os muçulmanos que moram na sua própria casa. Poucos ou nenhuns devem conviver com algum muçulmano, não digo em jantares e comemorações de ocasião porque essas vão acontecendo, e aí encontram-se as respostas cliché porque politicamente correctas, mas, digo eu, em longas conversas, em convívios de serão, daquelas que nos permitem conhecer quem realmente somos e o que pensamos. Sempre que os muçulmanos são chamados a falar não se pretende que se façam conhecer, mas, em última instância, que tragam respostas às perguntas já de si fundadas em inverdades e em ignorâncias.

Louvo algumas iniciativas governamentais que nos ajudam a conhecer a diferença e a sua importância no exercício da cidadania. Mas no que toca à efectiva integração dessa diferença estou convencida de que o destino nos reserva um caminho mais tortuoso e quase incontornável.
Investigadora em assuntos islâmicos