Poucos aqui fazem empréstimo, portanto não há tanta inadimplência, mas, sem empréstimos, não dá para investir.
O Brasil exporta pouco, o que é ruim, mas, quando o mercado externo está fraco, o país não é tão afetado.
Bom, quem sabe, no longo prazo, a gente chegue lá.
O problema é que, no longo prazo, já estaremos mortos.
"O Globo" 26/03/09
Vícios e virtudes
O Brasil quebrou nas crises internacionais anteriores.
O roteiro era o seguinte: fuga de capitais, redução brutal dos financiamentos externos, desvalorização do real, choque de inflação e forte elevação da dívida externa quando medida em reais. Resultava daí a dupla resposta do governo: alta dos juros para combater a inflação e, sobretudo, para impedir mais saída de capitais; e corte de gastos públicos de modo a sobrar mais dinheiro para o governo comprar os dólares com os quais saldaria os compromissos externos.
Alta de juros e corte de gastos terminavam em recessão.
Desta vez, houve forte restrição dos financiamentos externos, saída de dólares e a consequente desvalorização do real. Mas não houve inflação, e a dívida pública caiu, de modo que o governo pode reduzir juros e até aumentar seus gastos.
Entre um momento e outro, a principal diferença está nas contas externas.
Com a bonança global dos últimos anos, o Brasil acelerou suas exportações, que geraram substanciais superávits comerciais. Com a sobra de dólares, o Banco Central iniciou uma forte política de compra de divisas. Quando a crise estourou, o BC tinha reservas de US$ 207 bilhões, número superior ao total da dívida externa pública e privada de médio e longo prazos.
E mais: a dívida externa pública estava reduzida a US$ 90 bilhões, de modo que o governo, pela primeira vez, era simplesmente credor em dólares.
Assim, com a desvalorização do real (e a consequente valorização do dólar), o governo agora ganha dinheiro.
Ou seja, a dívida pública, medida em reais, diminui em vez de aumentar. E isso dispensa a política de cortar gastos.
Ao contrário, libera gastos.
De outro lado, a desvalorização do real não provocou inflação porque houve uma forte queda de preços internacionais.
Assim, o dólar ficou mais caro, mas o produto lá fora ficou mais barato em dólar, uma coisa compensando a outra.
Finalmente, os muitos anos seguidos de aplicação da política econômica clássica (metas de inflação, superávit primário, redução do endividamento e câmbio flutuante, com mais abertura externa) consolidaram seus efeitos. Na entrada da crise, o Brasil já era grau de investimento.
Tudo considerado, o Brasil colheu as virtudes da ortodoxia e da globalização.
Em vez de quebrar (e cair nas mãos do FMI), apenas desacelera, num ciclo normal.
Fora isso, o Brasil se beneficia de seus vícios. É isso mesmo. A crise é do comércio externo e do crédito — e o Brasil tem pouco comércio e menos crédito.
Coreia do Sul e México, por exemplo, estão apanhando mais. A economia coreana exporta o equivalente a 50% do seu Produto Interno Bruto.
No México, a exportação passa um pouco dos 40% do PIB.
No Brasil? As vendas externas (US$ 198 bilhões no ano passado) equivalem a 13% do PIB. Portanto, a queda nas exportações, que já ocorre, afeta menos a atividade econômica local.
Mas o lado mais evidente dessa “vantagem” dos vícios está no departamento do crédito. No ano passado, o crédito total no Brasil chegou a 41% do PIB. Na Coreia, o crédito doméstico equivale a 110% do PIB. Portanto, investimentos e consumo dependem muito mais do fluxo de empréstimos do que no Brasil. Logo, se o crédito seca, o problema é maior lá.
Outras comparações: no grande ano de 2007, quando o mundo todo cresceu espetacularmente, o crédito concedido nos EUA para a compra de casa própria chegou a 86% do PIB.
Para a aquisição de carros, 9,2%.
Na Coreia do Sul, o crédito imobiliário representava 53% do PIB. Para automóveis, 17%. E no Brasil? O ano passado foi considerado um dos melhores para o setor imobiliário. Só pelo Sistema Financeiro de Habitação — empréstimos com base nos recursos da caderneta de poupança — foram financiadas quase 300 mil casas, no valor total de R$ 30 bilhões. Isso dá a ridícula relação de 1% do PIB. Se consideradas outras modalidades de financiamento, incluindo as casas populares, subsidiadas, o total financiado não chega a 3% do PIB.
Logo, a falta de crédito abala pouco.
E continua sendo um defeito.
Também dizem que nosso sistema bancário é mais sólido. Mas claro que é sólido: não empresta e quando empresta cobra esses juros!
CARLOS ALBERTO SARDENBERG é jornalista.
E-mail: sardenberg@cbn.com.br.