Chinesa publica livro sobre o que sofreu no "paraíso" chinês

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Fernando Silva
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Chinesa publica livro sobre o que sofreu no "paraíso" chinês

Mensagem por Fernando Silva »

"O Globo" 31/01/09

Sombras inconfessáveis da China

Pianista de sucesso faz autocrítica dos anos vividos em campos de reeducação de Mao Tsé-tung

Deborah Berlinck - Correspondente • PARIS


Quase 30 anos depois ter escapado do período mais sombrio da história da China comunista, instalandose no Ocidente, a pianista Zhu XiaoMei mergulha no passado e faz sua própria autocrítica.
Bem diferente das sessões de “autocrítica” públicas e cruéis da época da Revolução Cultural de Mao Tsé-tung — em que ela, aos 12 anos de idade, e sob ameaça de tortura, tinha que “confessar” supostos vínculos burgueses e denunciar familiares, amigos e professores.

Sua autocrítica é mais profunda, relativa a memórias que tiram seu sono até hoje.
Num contundente livro autobiográfico, “O rio e seu segredo — A pianista que desafiou Mao” (Objetiva, tradução de Rejane Janowitzer), esta pianista de sucesso radicada em Paris, que já se apresentou no Teatro Municipal do Rio e voltará à cidade para um concerto em junho deste ano, conta abertamente como viveu e como viviam os músicos chineses nessa fase difícil da história do país. O livro é quase uma confissão, um mea culpa.

Mas é, sobretudo, a história de uma menina talentosa de 12 anos que passou anos em campos forçados de trabalho, que conseguiu escapar para o Ocidente e seguir sua paixão: o piano, a música. Em entrevista ao GLOBO, num apartamento pequeno e modesto dominado por um piano de cauda, com uma vista fantástica para o Rio Sena, Xiao-Mei — que não aceita ser fotografada —, hoje com 58 anos, diz que Joahnn Sebastian Bach a salvou. Mas resta o mais difícil: obter a paz interior.

Até hoje, quando enfrenta a plateia durante um concerto, encara o público como se estivesse numa sessão de autocrítica da época de Mao, ou seja, num julgamento.
— E me sinto culpada. Tenho quase o sentimento de sentir culpa pela minha existência — afirmou.


'Só havia um outro jeito: o suicídio'
Apesar da culpa, pianista busca serenidade através da música e da meditação e questiona a existência da felicidade

ENTREVISTA Zhu Xiao-Mei

O GLOBO: O livro deixa a impressão de que a senhora ainda vive muito mal com seu passado na China de Mao Tsé-tung.

ZHU XIAO-MEI: As pessoas pensam: você está em Paris, toca em muitos lugares, a vida é formidável. Antes eu tinha que lutar a cada passo, e não entendia a depressão dos ocidentais.

Eu me levantava e era obrigada a sair, para ter o que comer. Não havia escolha. Hoje tenho mais escolha e menos coragem. O cotidiano é mais difícil do que quando há um objetivo claro.

O GLOBO: É como chegar a um ponto da vida onde há um vazio ?

ZHU XIAO-MEI: É exatamente este sentimento.

O GLOBO: E a senhora está num país (França) que tem tudo, mas possui muitos depressivos...

ZHU XIAO-MEI: Psicanálise não existe na China. Quando não nos sentimos bem, uma boa comida é suficiente para levantar o moral. Lá nunca me perguntam: como você vai, mas “você comeu”? Bem diferente dos ocidentais. Aqui, as pessoas são ricas, e se perguntam: o que quero mais? Meu tempo num campo (de trabalho forçado), minha infância na China, tudo isso passou.

Mas há algo dessa época que veio à tona mais tarde. Antes, nunca tinha pesadelos. Comecei a tê-los quando cheguei a Paris. E tenho até hoje.

O GLOBO: A senhora escreveu que a Revolução Cultural lhe sujou, porque, como muitos, denunciou outras pessoas. Havia alternativa?

ZHU XIAO-MEI: Havia algo egoísta: eu queria sair, ser reconhecida.

Sentia-me culpada porque sempre fui tratada de pequena burguesa, por causa da minha família. Não queria que as pessoas me tratassem mal. Eu tinha vontade de viver como os outros. Fiz coisas que não se deve fazer. Sinto-me culpada.

Tem gente que fez menos denúncias que eu. Só havia um outro jeito: o suicídio, como fez um de meus professores.
Escolher a morte era ato de grande coragem.

O GLOBO: O seu livro descreve em detalhes um processo “desumanização”.
Há momentos em que não se reconhece?

ZHU XIAO-MEI: Quando denunciei meu professor de piano (Pan Yuming).

Na Revolução, destruímos todas as partituras, discos, livros. Depois me disse: “Estava maluca, era uma selvagem”. Como cheguei a tal ponto ?

O GLOBO: Esta experiência mostra que o ser humano está pronto para tudo a fim de sobreviver?

ZHU XIAO-MEI: Talvez. Não confiava nem no meu pai. Estava certa de que era um espião, de que fazia mal ao regime. Isso mostra até que ponto eu estava pronta a seguir os comunistas.

O GLOBO: Nos últimos anos, a senhora procurou os companheiros do Conservatório que denunciou.
Isso trouxe alívio?

ZHU XIAO-MEI: Com certeza. Eles me disseram: “Não se preocupe, todo mundo fez besteiras nessa época”.

O GLOBO: Que parte de sua história é comum com a de outros chineses daquela época?

ZHU XIAO-MEI: Um ponto era parecido: as famílias eram culpadas.
Sempre. Por isso éramos separados das famílias, os professores eram dos livros, da música, da arte.

O GLOBO: Diz que Bach a salvou, mas que resta o mais difícil a fazer: achar a liberdade interior. Sente-se prisioneira do passado?

ZHU XIAO-MEI: Sim. Todos os meus amigos zombam de mim, dizendo : “Ela vai se sentir culpada toda a sua vida”. Se alguém me convida para algum lugar e eu não quero ir, penso: “não é gentil da minha parte”. Sinto culpa. Tenho quase o sentimento de que me sinto culpada pela minha existência. Tenho sempre medo de incomodar as pessoas.

O GLOBO: Como vê a China de hoje, nem completamente capitalista, nem comunista ?

ZHU XIAO-MEI: A economia da China é verdadeiramente capitalista.
A China progrediu. Podese ter empresa, há liberdade de ganhar e investir dinheiro.
Compra-se apartamento. É quase um choque. Ver pessoas muito ricas, outras muito pobres.
Mas é normal… O início de um regime capitalista é sempre cruel.

O GLOBO: Não teme que a China adote um modelo de capitalismo desigual?

ZHU XIAO-MEI: Tenho confiança que haverá um equilíbrio. No início, não quis criticar muito.
A China fez progressos enormes.
Espero que busque o equilíbrio e que a cultura e a educação tenham mais espaço.
Quando eu era pequena , não havia livro, nem música. A escola fechou durante dez anos (no regime de Mao Tsétung).

Hoje melhorou.

O GLOBO: A senhora diz que tenta entender como ideias generosas do comunismo resultaram em desastre. Tem a resposta?

ZHU XIAO-MEI: Ainda não. Por que o comunismo não funcionou? No início, as ideias são tão belas.
Hoje compreendo que é algo relacionado aos seres humanos.
Os alto funcionários comunistas viviam com grande luxo e privilégios. Seus filhos tiveram bons trabalhos.
Hoje é o caso dos mais ricos. O comunismo não funcionou porque é contra o ser humano.
O ser humano é egoísta, quer ter mais que os outros.

O GLOBO: Mas a senhora hoje é o oposto disso, não?

AFP ZHU XIAO-MEI: Tive muitas oportunidades de ser rica. Mas sempre me senti culpada de viver melhor que os outros. Já tenho muitos privilégios.

O GLOBO: Em relação a quem? À sua família na China?

ZHU XIAO-MEI: As minhas quatro irmãs (na China) já compraram apartamentos. Sou a única que paga aluguel. Meu pai me disse : “De toda a família hoje, a mais pobre é você! Você não tem apartamento, carro, marido, filhos”. Sofri tanto na Revolução Cultural que o mais importante para mim é a música. É algo que não se pode substituir com dinheiro ou luxo. A beleza da arte, da música, é algo maravilhoso.

O GLOBO: E Mao tinha medo do poder da arte...

ZHU XIAO-MEI: Ele tinha medo da força da música. Por isso enviou os artistas para um campo de trabalho forçado. Mas depois de cinco anos num campo, me tornei uma contrarrevolucionária.
Só queria escapar da China.

O GLOBO: Os chineses deveriam investigar os horrores daquela época e de outras mais recentes, como o massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989?

ZHU XIAO-MEI: Os chineses vão encontrar uma forma de virar a página da Revolução Cultural.
Não tivemos processos. Isso é bom e é mal.
Tudo tem dois lados. Os brasileiros compreendem os chineses nesse ponto, perdoam facilmente.
Ao mesmo tempo, é preciso tirar uma lição do passado.
A vida é longa, é preciso olhar para frente e perdoar.

O GLOBO: Como explica a paixão por Bach?

ZHU XIAO-MEI: Para muita gente, o mais importante na vida é a felicidade. Para mim, é a serenidade.
Esta serenidade eu senti nos filósofos chineses e também na música de Bach.

Nele, há um equilíbrio muito bom. A escolha de Bach nunca é dramatizar. Com ele, há sempre uma escolha bem controlada, bem medida. As pessoas me dizem: não, não há humor na música de Bach. Para mim, há.

O GLOBO: Por exemplo?

ZHU XIAO-MEI: Toco muito as “Variações Goldberg”. Nas décima e 18a(ela imita o som do piano), há muito humor. Há serenidade e também a coragem de Bach. Sinto o poder da vida.

O GLOBO: Num programa da TV francesa, perguntaram-lhe o que gostaria que Deus lhe dissesse se a encontrasse. A senhora respondeu: “Que Deus me diga: vou te apresentar Bach”.

ZHU XIAO-MEI: (risos) Bach é um gênio. Como pôde escrever música tão bem ?

O GLOBO: A senhora é considerada uma excelente pianista. Mas diz que, quando entra em cena, há um momento em que se pergunta por que o público veio escutá-la. Vê-se numa sessão de denúncia da Revolução Cultural. Como?

ZHU XIAO-MEI: Sim, tenho medo.
Sempre, muito medo. Quando era jovem, eu era mais forte.
Mas vivi uma experiência que me marcou por toda a vida.
Quando tinha 12 anos, fui submetida a sessões públicas de autocrítica diante de 400 pessoas.
Depois, a vida não é a mesma. Temos sempre medo.

O GLOBO: Administra este medo buscando a perfeição ao tocar ?

ZHU XIAO-MEI: Até hoje não encontrei uma solução. É preciso viver com este medo, a angústia.
Há algo que eu não posso mais mudar. É tão profundo.

O GLOBO: O livro é um gesto de coragem.
Ao contar sua história, a senhora abre um debate...

ZHU XIAO-MEI: Todo mundo que leu este livro me diz: talvez você se sinta melhor. Mas não! Sinto-me sempre culpada. Pergunto por que escrevi o livro, enquanto meus amigos que viveram as mesmas dificuldades não publicaram nada. Pessoas que viveram coisas ainda mais difíceis.

Por que eu? Não acho muito elegante.
Recusei três vezes a tradução do livro na China. Não quero que os chineses leiam isso.
Falei de muita gente no livro.

E meu professor (Pan Yuming, com quem Xiao-Mei se encontrou várias vezes nos últimos anos) nem sabe o que escrevi.

O GLOBO: Em 2003, descobriu que estava com câncer, o médico lhe deu três anos de vida e seu grande desejo era tocar...

ZHU XIAO-MEI: Sinto muito, ainda estou viva! (risos) Para mim, todo dia é um presente. Posso morrer amanhã, não terei nenhum arrependimento porque estou satisfeita com tudo o que pude fazer. É um milagre que eu possa dar concertos, apesar do medo, da doença, da idade. Que sorte!

O GLOBO: Com tanto medo, como prepara para os concertos?

ZHU XIAO-MEI: Tenho muitos amigos brasileiros que dizem: para você, não há nada além do piano.
Os brasileiros sabem aproveitar a vida, adoram rir, estar juntos. Eu vivo como um monge.
É uma escolha. Gosto da solidão.
Porque posso me concentrar na música. A felicidade, para mim, é a serenidade, que encontro na música e na meditação.
No mundo moderno, necessitamos dos velhos filósofos chineses.
O ritmo de hoje é muito rápido, superficial. Sempre me pergunto: a felicidade existe?

O GLOBO: Escreveu que “quando se realiza um sonho é quase sempre muito tarde”. A que se referia?

ZHU XIAO-MEI: Posso tocar, mas sinto que é tarde por causa do meu estado físico… Por que isso não aconteceu antes?

O GLOBO: Qual o seu sonho ?

ZHU XIAO-MEI: Serenidade. Não ter medo. As pessoas me dizem: você tem que esquecer.
Mas eu não esqueço nada.

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Fernando Silva
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Re: Chinesa publica livro sobre o que sofreu no "paraíso" chinês

Mensagem por Fernando Silva »

Este é um trecho de uma crônica de "O Globo" sobre o livro:

Ana Cristina Reis - "Virei taoísta"

Para mostrar a diferença entre os confucionistas, os budistas e os taoístas,os chineses usam a alegoria do copo d’água, ensina a autora.

O confucionista diz: “É preciso partilhar este copo d’água. Dê de beber primeiro a seus pais”. Para ele, a primeira das virtudes é a ordem social.

O budista diz: “Devo beber?”.
Para ele, o controle dos desejos está à frente de tudo.

Vem finalmente o taoísta. Ele olha o copo e diz: “A água não existe”.

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carlo
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Re: Chinesa publica livro sobre o que sofreu no "paraíso" chinês

Mensagem por carlo »

Mao foi uma desgraça para os milhões que foram assassinados, os milhões que moreram de fome por um programa estatal assassino, para os milhões que sobreviveram, para a decência humana.
Imagem

NOSSA SENHORA APARECIDA!!!!

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Fedidovisk
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Re: Chinesa publica livro sobre o que sofreu no "paraíso" chinês

Mensagem por Fedidovisk »

Estou lendo esse livro agora, fui pesquisar sobre ela e por acaso caí aqui.

O livro é bastante agradável de ler, principalmente se você conhece as obras citadas, o que permite fazer uma relação com os sentimentos da autora em certos momentos. E desnuda bastante o regime de Mao, mais ainda a Revoluçao Cultural, onde intelectuais e artistas se não foram mandados para campos de trabalho forçados, foram executados. Chega-se a ter um certo rancor, já que alguém dotada de tanta cultura ser capaz de denunciar os próprios "camaradas" e suspeitar da própria família.

Vale notar que o livro faz parecer, e com razão, que o desastre do governo Mao só fez prejudicar a China, só houve retrocesso e miséria durante o período, sempre acompanhado de muita violência.

Uma coisa interessante também, é quanto as reações populares, semelhante às reações aqui no Brasil contra a ditadura de direita, que no caso lá era de esquerda e muito pior, é interessante porque faz notar que o ser humano é igual em qualquer canto do planeta, é um só.

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Fernando Silva
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Re: Chinesa publica livro sobre o que sofreu no "paraíso" chinês

Mensagem por Fernando Silva »

http://abrangente.blogspot.com/2007/10/ ... e-mao.html
Os "filhos de Mao" nos tempos da Revolução Cultural... Vestiam roupas
sem etiqueta, uniformemente, e usavam boné como se fossem guerrilheiros.
A imagem mostra a humilhação a que os professores eram sujeitos...

Imagem
http://veja.abril.com.br/230708/p_170.shtml
De todas as ondas lançadas pelos caprichos do comunismo chinês, nenhuma foi mais violenta do que a Revolução Cultural. Durante toda uma década, qualquer um podia ir dormir devidamente "vermelho" e acordar "contra-revolucionário", sujeito a exílio, tortura e execução, por nenhuma razão em particular. Os que cresceram sob tal pavor – ou delataram os próprios pais como "burgueses", ou lincharam "desviantes capitalistas" – formam uma geração traumatizada, porém ágil: se a autoridade é imprevisível, drible-se a autoridade. Por ironia, então, a Revolução Cultural se tornou a mãe da literatura chinesa contemporânea.

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Fedidovisk
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Re: Chinesa publica livro sobre o que sofreu no "paraíso" chinês

Mensagem por Fedidovisk »

Segundo o que o livro me permitiu entender, no pescoço dos professores há Dazibaos, espécie de auto-críticas e no segundo o "alvo" da revolução cultural, os chushen buhao ou de má origens, burgueses.

Trancado