por Marilene Felinto, Nossa Senhora marxista dos criminosos.
A morte de uma menina rica, assassinada no município de Embu-Guaçu, Grande São Paulo, em novembro último, supostamente por uma quadrilha que inclui um adolescente de 16 anos, pobre e morador da periferia do Embu, deixou claro, mais uma vez (até a exaustão, vamos lá), que o Brasil tem dois tipos de cidadão: que o valor de cada coisa – de cada pessoa – é seu preço no mercado, como afirma Josep Ramoneda.
Está claro que o rabino H. Sobel, ao pedir a instituição da pena de morte no Brasil, só ousou fazê-lo porque a jovem morta, Liana Friedenbach, pertencia à comunidade judaica de São Paulo. A hipocrisia do rabino é flagrante: está claro que ele defende a pena de morte para brasileiros pobres. No seu delírio, o rabino deve ter achado que aqui é uma espécie de Israel – e que a esmagadora maioria dos brasileiros, da classe pobre, é uma espécie de Palestina a ser eliminada da face da terra! Ora, até que ponto se pode chegar?
Está claro que todo esse rebuliço em torno do assassinato da jovem de 16 anos e de seu namorado, Felipe Caffé, 19, não teria acontecido se a vítima tivesse sido apenas este último, filho da classe média baixa e sem nenhuma “comunidade” forte por trás. Somente por tabela o nome de Felipe foi lembrado em programas de televisão e na tal passeata “contra a violência”, que ocorreu em São Paulo em meados de novembro.
O negócio mesmo era Liana, cujo pai em desespero pôde mover até mesmo helicóptero para ir a seu encalço. E pôde, com apoio da tal comunidade, ter acesso a todo tipo de mídia, do mais rasteiro programa de televisão da apresentadora Hebe Camargo e seus ares de xaveco fascista a entrevistas de página inteira à nata da imprensa que serve à elite.
Por acaso a classe alta saiu às ruas para pedir a pena de morte para outra menina rica paulista, Suzane Richthofen, acusada de planejar o assassinato dos próprios pais, junto com o namorado, em 2002? Por acaso a classe alta pediu pena de morte para o também jovem paulista Jorge Bouchabki, acusado (e depois inocentado) em 1988 do assassinato dos pais, no famoso “crime da rua Cuba”?
O caso de Liana Friedenbach reúne todos os elementos da hipocrisia da elite paulista – esta de nomes estrangeirados, pronta para impor-se, para humilhar e esmagar sob seus pés os espantados “silvas”, “sousas”, “costas” e outros nomezinhos portugueses e “afro-escravos”. O pai da moça, o advogado Ari Friedenbach, empenha-se agora em conseguir mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Disse a um jornal de São Paulo que a fotografia de R.A.A.C., 16 anos, acusado de matar sua filha, deveria aparecer nos jornais. Disse também que é “radicalmente a favor” da redução da maioridade penal e que “nossos legisladores se fazem de surdos quando a população clama por isso”. Que população? A que “população” se refere o senhor Friedenbach? Eu mesma não me incluo nessa “população”! Aposto que os jovens da periferia, seus pais ou a mãe de R.A.A.C. também não se incluem. A “população” a que ele se refere é a própria comunidade dele (ou grande parte dela), a classe rica, concentradora de renda num dos países mais desiguais do mundo – o Brasil onde um rico ganha trinta vezes mais do que um pobre!
Uma pesquisa do IPEA publicada em 2001 mostra a ganância e a concentração de renda perpetradas escandalosamente pela elite brasileira: mostra a razão entre a renda dos 20 por cento mais ricos e a dos 20 por cento mais pobres, ou seja, quanto um rico ganha mais do que um pobre em diversos países do mundo. “Platão dizia que esse número tinha que ser 4, ninguém sabe de onde ele tirou o 4, mas ele dizia que o rico tinha que ganhar quatro vezes mais do que os pobres. Na Holanda, um rico ganha 5,5 vezes mais do que um pobre. No Brasil, ganha 25, 30 vezes mais! Nos Estados Unidos, é 10; no Uruguai, também é 10. Então, vê-se aqui o alto nível de desigualdade e a estabilidade dessa desigualdade.”
Agora vem esse rabino pedir pena de morte no Brasil para crimes hediondos. Nos Estados Unidos, que tem pena de morte, os crimes são cada vez mais “hediondos” – conceito, aliás, sem sentido. O que torna um crime mais “hediondo” que outro? Só se for a classe social da vítima: quando é rica e loirinha, então, o crime é mais hediondo do que se a vítima for um “Pernambuco” qualquer, também de 16 anos, morador do Jardim Ângela ou do Capão Redondo, periferia de São Paulo, morto por outro “Pernambuco” de 16 anos, também sem sobrenome. Todo dia morrem às pencas jovens assassinados por outros jovens nas favelas e aglomerados pobres das periferias das grandes cidades – nem por isso há movimentos pela pena de morte ou pela redução da maioridade penal.
A elite brasileira vive mesmo fora da realidade. Não tem idéia do ódio que a diferença de classe insufla todo dia nas gerações de jovens pobres que povoam o país de ponta a ponta, que vagam pelas matas ou pelo asfalto das ruas sem nenhuma perspectiva. Esse R.A.A.C. mal tinha freqüentado a escola. Ele supostamente disse à polícia que, ao caminhar pela mata com outro acusado do crime, “avistaram o casal (Liana e Felipe), cuja aparência física destoava das pessoas que normalmente freqüentam o local”.
O ódio de classe – quem já conviveu com jovens pobres de favelas e periferias conhece esse sentimento. Tudo destoa, humilhando-os, provocando neles desprezo e raiva: a aparência física, a roupa, a escola, a comida, o carro, o jeito, o hospital, o tratamento policial, o enterro. Ora, a polícia de São Paulo jamais iria se bandear daqui para Pernambuco atrás do outro acusado de matar o casal de namorados (em poucos dias encontraram dentro de um ônibus no sertão pernambucano Paulo César da Silva Marques, 32 anos, vulgo “Pernambuco”) se o jovem morto fosse um pernambucanozinho qualquer sem eira nem beira.
Está clara a hipocrisia. A imprensa não trata da violência que essa desigualdade social imposta diuturnamente aos jovens pobres significa. Não trata desse veneno que a elite brasileira truculenta injeta todo santo dia na veia dos meninos. Jovens como R.A.A.C. sabem que não valem nada no mercado. Eles sabem que não passam de “Pernambucos” condenados ao preconceito de classe, à exclusão total, à humilhação. Eles sabem que nada têm a perder – por isso matam. A vida, para eles, dentro ou fora de uma unidade da Febem ou de uma cadeia não faz muita diferença.
Da apresentadora de televisão que se julga no direito de matar R.A.A. C. (Hebe Camargo) ao pai de Liana que quer ver o rosto do rapaz estampado nos jornais da elite, passando pelas declarações oportunistas do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB) e sua política de segurança fascista (que propõe “endurecer” o ECA), o alvo de todos eles é o mesmo do rabino da pena de morte: o extermínio puro e simples dos jovens pobres. Para que eles continuem, em última instância, a embolsar todo mês trinta vezes mais que qualquer pai maltrapilho e desempregado da favela.
Eles fazem ouvidos moucos para a mensagem que vem da miséria. O que a “violência” diz hoje no Brasil é que ou seremos todos cidadãos ou ninguém será, ou ninguém viverá a “segurança” almejada pelos ricos. Ou serão todos cidadãos ou ninguém será. As democracias evitam sistematicamente pensar a violência e se limitam a contrapor os bons sentimentos gerais em favor da não-violência, diz Josep Ramoneda. “Se aceitarmos como critério a autonomia do sujeito, o ideal kantiano da emancipação individual, o cidadão é a figura política que corresponde a essa idéia de plenitude da pessoa humana”, afirma o estudioso espanhol. Foi a própria elite brasileira que transformou R.A.A.C. em pessoa-animal. É preciso ser intransigente com essa elite brasileira surda e cega ao ódio de classe que ela insufla. É preciso ser intransigente na defesa dos direitos humanos de R.A.A.C. Direitos humanos, sim, para a pessoa que a elite voraz e devoradora quer transformar em animal a ser caçado a laço e exposto à execração pública e à morte pela justiça popular. Mal sabe ela que R.A.A.C. passava por isso todos os dias – pela execração pública. Mal sabe a elite que exclusão social, tal qual ocorre no Brasil, é igual, sempre foi igual, sinônimo mesmo de “execração pública” e de “pena de morte”.
Marilene Felinto é escritora e jornalista.
marilenefelinto@carosamigos.com.br
http://carosamigos.terra.com.br/da_revista/edicoes/ed81/marilene_felinto.asp
Caso:
Estudante foi violentada e torturada por acusados, diz polícia
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da Folha Online
A estudante Liana Friedenbach, 16, morta com o namorado Felipe Silva Caffé, 19, em Embu-Guaçu, na Grande São Paulo, foi violentada e torturada pelos acusados de envolvimento na morte do casal, segundo afirmaram policiais que investigam o crime. O resultado do laudo pericial sobre o estupro, no entanto, ainda não foi concluído.
O adolescente R.A.C, 16, o Champinha, apontado como o líder do grupo, "idealizou o abuso contra Liana, oferecendo-a aos outros comparsas", disse o delegado Silvio Balangio Júnior, da Delegacia Seccional de Taboão da Serra.
Felipe morreu com um tiro na nuca no último dia 2, e Liana, a facadas, na madrugada de quarta-feira, segundo a polícia. Ainda segundo a polícia, Champinha foi o responsável por matar Liana e ajudou Paulo César da Silva Marques, 32, o Pernambuco, a matar Felipe.
Além de Pernambuco e de R.A.C., estão detidos Antonio Matias de Barros, 48, Antônio Caetano Silva, 50, e Aguinaldo Pires, 41.
Reprodução
Os estudantes Felipe e Liana
Crime
Os namorados estavam desaparecidos desde o último dia 31, quando foram acampar em um sítio abandonado em Embu-Guaçu, na Grande São Paulo. No dia 1º, Champinha e Pernambuco seguiram para pescar na região quando viram o casal. "Quando viu Liana, Champinha disse para Pernambuco: 'Olha que menina gostosa'. Depois, teve a idéia de roubar os estudantes", disse o delegado.
Na tarde do mesmo dia, Pernambuco e Champinha abordaram os estudantes enquanto eles dormiam na barraca. A dupla, no entanto, se decepcionou ao não encontrar armas nem muito dinheiro e decidiu levar os namorados para a casa de Barros, na mesma região.
Durante o trajeto, Liana disse aos criminosos que sua família tinha dinheiro. A garota sugeriu que a dupla pedisse resgate e, depois, libertasse ela e seu namorado. Segundo a polícia, nesse momento, Champinha decidiu matar Felipe e ficar com a menina.
Barros não estava em sua casa e os quatro seguiram, então, para a casa de Silva, que também não estava. No entanto, Pernambuco e Champinha decidiram ficar e usar o local como cativeiro. Conforme a polícia, na noite do dia 1º, Pernambuco violentou Liana, enquanto Felipe permanecia em outro quarto. A garota, disseram os acusados, estava em estado de choque e não reagiu.
Tiro
Na manhã do dia seguinte, os quatro saíram para caminhar no meio do matagal. Pernambuco seguiu na frente com Felipe e matou o estudante, com um tiro na nuca. Liana, que estava com Champinha, ouviu o tiro, mas não viu seu namorado morrer. Ao perguntar sobre Felipe, Champinha disse para ela que o rapaz havia sido libertado.
No mesmo dia, Pernambuco fugiu para São Paulo e Liana ficou com o adolescente na casa de Silva. Conforme a polícia, ela foi violentada por Champinha.
No dia 3, Silva chegou em casa acompanhado por Pires e viram a estudante no local. Champinha, então, apresentou-a como sua namorada, e ofereceu a menina para os colegas. A estudante foi violentada por Pires, segundo a polícia.
No mesmo dia, um irmão de Champinha disse para ele voltar para casa, porque sua mãe estava preocupada e havia "muita polícia" na região. Champinha disse ao irmão que Liana era sua namorada. Disse também que a garota iria embora e que ele precisava acompanhá-la até a rodoviária.
Matagal
Na madrugado do dia 5, Champinha levou a estudante até o matagal, onde tentou degolá-la. Depois, ainda de acordo com a polícia, golpeou a cabeça de Liana com uma peixeira. Quando a estudante caiu no chão, o adolescente ainda desferiu diversos golpes nas costas e no tórax da menina.
Os corpos das vítimas foram encontrados na última segunda-feira (10). Liana e Felipe mentiram sobre a viagem para os pais. Liana havia dito que iria para Ilhabela, no litoral, com um grupo de jovens da comunidade israelita. A família de Felipe disse que sabia que o rapaz iria acampar, mas acreditava que ele estaria com amigos.
Envolvimento
Saiba qual foi o envolvimento de cada um dos acusados no crime, segundo a Polícia Civil:
- Champinha: idealizou a abordagem ao casal, participou do assassinato de Felipe, abusou sexualmente de Liana, e ofereceu a estudante para Pernambuco e para Agnaldo. Matou Liana a facadas.
- Pernambuco: participou do sequestro dos estudantes, abusou sexualmente de Liana, matou Felipe com um tiro na nuca e fugiu.
- Antônio Caetano: dono da casa usada como cativeiro, forneceu alimentos para Liana e Champinha e presenciou atos de violência sexual contra a estudante.
- Agnaldo Pires: abusou sexualmente de Liana.
- Antônio Matias: caseiro da primeira casada procurada para servir de cativeiro. Responsável por esconder a espingarda que matou Felipe, ele soube dos abusos sexuais contra Liana, mas não procurou a polícia.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u85580.shtml











