Fé é fé e ciência é ciência Hélio Schwartsman
Não sabia que Charles Darwin era tão popular. Pelas reações de leitores à minha coluna da semana passada, eu poderia concluir que o naturalista inglês supera, na estima do povo, até Roberto Carlos, o Rei. Desconfio, porém, que o que levou tantos leitores a manifestar-se não foi bem Darwin, mas a suspeita de que eu considero o Gênesis, o relato bíblico da origem do mundo, uma bobagem.
Bem, esses leitores não estão de todo errados, mas é preciso esclarecer um pouco mais as coisas. O Gênesis é um dos mais belos textos do Livro. Em termos de valor estético, coloco-o ao lado de Eclesiastes, na minha opinião o melhor.
Já pretender que o que é contado no Gênesis ocorreu "ipsis litteris" constitui um problema. É claro que cada um é livre para acreditar no que bem entender. Se alguém acha que o mundo foi criado em seis dias, tem todo o direito de fazê-lo, da mesma forma que eu posso preferir Darwin ou achar que a Terra tem 4,6 bilhões de anos (4.600.000.001, para ser mais exato, porque a publicação que consultei é do ano passado).
A diferença entre mim e esse hipotético fiel, além do fato de eu estar condenado ao inferno e ele já ter garantido sua salvação, é que eu estou falando em termos científicos e ele não.
É evidente que uma pessoa pode acreditar nos dois, no Deus único das religiões monoteístas e na ciência, sem tornar-se esquizofrênica. Aliás, acho que parcela significativa da humanidade atual, incluindo alguns dos maiores cientistas, se enquadra nessa categoria.
Nesse caso, porém, é preciso fundar uma dicotomia, separar as crenças de fé das de razão. O edifício científico se alicerça no princípio de causalidade, segundo o qual todo fenômeno tem uma causa. É meio óbvio, mas é isso mesmo. Num passo além, esperamos que a repetição das causas provoque a repetição do fenômeno. Sem isso, a experimentação, o âmago da ciência empírica, não é possível.
O problema é que o milagre, base da fé, é exatamente a negação do princípio de causalidade. É claro que ainda permanece uma causa _a vontade de Deus_, mas ela é, por definição, incognoscível. Como o milagre é uma ocorrência rara, extraordinária mesmo, as leis da física seguem valendo enquanto Deus não ordenar o contrário.
Talvez seja demais afirmar que as posições se harmonizem, mas o antagonismo não chega a exigir o sacrifício de uma delas. Em estados "normais" vale a física. Se Deus desejar, porém, mares podem virar avenidas, e o sol pode parar um bocadinho. Como isso só acontece de vez em quando, o mundo conserva uma "ordem" na qual podemos nos fiar.
Obviamente essa já precária conciliação cai por terra se pretendermos, como o faz o criacionismo, tomar o relato do Gênesis literalmente. Ora, a interpretação "literal" nada mais é do que ler com olhos de físico o relato bíblico. E é impossível fazer uma ciência do milagre. Não posso esperar que o mar Vermelho se abra para mim toda vez que eu fugir de um egípcio que me persiga pelo deserto. Posso repetir as "causas" que levaram o Criador a abrir as águas para Moisés sem, contudo, obter o mesmo efeito. O princípio da "causalidade" fica, neste caso, suspenso _e não dá para dizer que é um milagre o fato de o mar NÃO se abrir para mim.
O erro da interpretação literal não estaria, obviamente, em Deus, mas na minha tentativa de extrair leis gerais de Suas ações miraculosas. No limite, eu posso até achar que tudo se passou exatamente como está no Gênesis, mas não posso esperar que os fenômenos se repitam toda vez que se reproduzirem as causas. Posso agir com devassidão e nem por isso haverá um dilúvio sobre a terra ou a destruição da cidade onde moro.
É como se eu dissesse que, quando as leis naturais não vigiam, as coisas se deram como o Gênesis as conta. Nesse caso, já não leio o texto bíblico em busca de verdades científicas. O literal se torna, sub-repticiamente, algo sem sentido. Se a situação não pode ser repetida no todo ou nas partes, tanto faz entender o texto bíblico em sentido "literal" ou figurado. De nada adianta saber "cientificamente" que a mulher foi feita de uma costela se não sou capaz de gerar mais mulheres a partir de um ossinho. Uma ciência que não generaliza não é uma ciência nem serve para muita coisa.
Um critério razoável para distinguir ciência empírica de outros tipos de discurso é o proposto pelo filósofo austríaco Karl Popper. De modo extremamente simplificado, para Popper, são científicas proposições que passem pelo "critério de falseabilidade". Um juízo científico deve, antes de mais nada, ter uma forma lógica tal que exista um experimento possível que o desminta. Algo como "haverá um eclipse lunar amanhã às 23h57". Ou o eclipse do tipo especificado ocorre na hora prevista ou não, hipótese em que o juízo terá sido falseado. Segundo Popper, à medida que uma proposição científica suporta o tempo sem ser falseada, ela vai sendo corroborada.
É claro que existem outros critérios de cientificidade. O de Popper não é necessariamente o melhor nem o mais preciso. Acho-o até positivista em demasia. Mas é preciso reconhecer que ele é simples, elegante e difundido. E _o que é decisivo_ serve bem a nossos propósitos, como veremos a seguir.
Voltando ao Gênesis, é evidente que quase todos os juízos "científicos" que eu possa extrair do livro não serão falseáveis. Não há, por exemplo, experiência possível que demonstre que o mundo NÃO foi criado em seis dias. Isso significa que o Gênesis é, para Popper, pura metafísica e não ciência. E vale frisar que o autor não tinha a metafísica na mais alta conta.
Embora eu considere que possamos prescindir da hipótese divina, não posso pretender universalizar minhas crenças. Cada um é livre para acreditar no que bem desejar. Além do Gênesis, há uma miríade de outras cosmogonias. Praticamente todas as mitologias têm a sua versão da origem do mundo.
Os problemas começam quando alguém pretende emprestar estatuto epistemológico a alguma dessas versões. Aí as coisas não funcionam. Não porque a ciência é mais certa do que a religião, mas apenas porque são discursos que têm formas lógicas diferentes. (De todo modo, recomendo que o leitor procure um médico e não um exorcista se adoecer.)
No fundo, tinha razão Tertuliano (155-220), quando afirmou "Credo quia absurdum" ("creio porque é absurdo"). Fé é fé e ciência é ciência. Todas as vezes que uma religião se arroga universalidade plena, morre um monte de gente. E isso não é legal.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult510u7.shtml
Fé é fé e ciência é ciência.
- Márcio
- Mensagens: 1733
- Registrado em: 12 Nov 2005, 01:14
- Gênero: Masculino
- Localização: São José do Rio Pardo-SP
- Contato:
Fé é fé e ciência é ciência.
O ateísmo é uma consequência em mim, não uma militância sistemática.
'' O homem sábio molda a sí mesmo, os tolos só vivem para morrer.'' (O Messias de Duna - F.Herbert)
Não importa se você faz um pacto com deus ou o demônio, em quaisquer dos casos é a sua alma que será perdida, corrompida...!
'' O homem sábio molda a sí mesmo, os tolos só vivem para morrer.'' (O Messias de Duna - F.Herbert)
Não importa se você faz um pacto com deus ou o demônio, em quaisquer dos casos é a sua alma que será perdida, corrompida...!
- Desert Punk
- Mensagens: 69
- Registrado em: 08 Jul 2006, 16:04
Re.: Fé é fé e ciência é ciência.
Eu boto fé na ciencia...
Re: Re.: Fé é fé e ciência é ciência.
Desert Punk escreveu:Eu boto fé na ciencia...
