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Nietzsche, falecido em Weimar no ano de 1900, foi autor de uma obra impressionante, com muitas janelas e portas para se deixar olhar ou penetrar por elas. O interior, porém, é imenso e, por vezes, inescrutável. Heidegger, um nietzscheano confesso, disse que ao lê-lo sentia que a poderosa mente de Nietzsche, sempre pulsando, não encontrava as palavras necessárias para expressar-se, havendo nele silêncios estranhos, como se seu cérebro, colossal, procurasse, impaciente, por todos os lados, catar as letras que lhe faltavam para expressar uma idéia ou formar uma ou outra frase. Nietzsche, o filólogo, por vezes, ficou mudo em diversas línguas.
A vastidão dos temas
Nestas aberturas encontra-se o filósofo, o esteta, o literato, o crítico, o músico e o ideólogo (que sempre foi o seu lado mais polêmico). A superabundância dos temas que a sua inteligência e sua curiosidade alcançaram é que explicam a quantidade excepcional de interpretações e vivas abordagens que a obra nietzscheana teve no nosso século.
Pró ou contra, todo mundo importante das letras escreveu sobre ele. Um dos bons motivos para dele se aproximar é a quantidade extraordinária de escritos instigantes e vivazes que o seu talento estimulou ou provocou junto aos homens de letras e de ação em geral.
Por ser um autor oracular, de falar sempre dobrado, ele atraiu leitores os mais díspares: de refinados literatos como Thomas Mann e ensaístas sofisticados como Michel Foucault e Giles Deleuze, a tiranos fascistas como Mussolini (que leu boa parte dos livros dele). Sem esquecermos de mencionar os ideólogos nazistas, como Alfred Rosemberg e Joseph Gobbels, que disseram nele se inspirar.
O impacto que suas concepções estéticas causaram entre os humanistas que cultivavam a idéia da serenidade clássica nunca mais deixou de ter efeito. Nietzsche brigou com o mundo inteiro ao desaforar os principais ícones da cultura e da religião ocidental. Com toda a razão, um dos seus tradutores para o português definiu-o como aquele que "foi um campo de batalha".
Ataque ao racionalismo e ao cristianismo
Acusou a dialética minuciosamente racionalista de Sócrates de ter destruído ao que dava substância à maravilhosa encenação que foi a tragédia grega, enquanto viu em Cristo, de resto um homem íntegro, um instrumento nas mãos de fariseus ressentidos e de apóstolos suspeitos. Além disso, ao enfatizar os instintos e celebrar os vestígios de animalismo nos homens, ele, à sua maneira, atacou as pretensões do humanismo de tentar elevar a sociedade a patamares mais elevados do que os que imperam no reino da natureza.
Menosprezou também a importância da História que havia sido colocada no altar-mor da filosofia de Hegel e de Marx. Defensor do exclusivismo, detestava a idéia kantiana de leis universais inspiradas no imperativo categórico sugerido pelo grande filósofo idealista. Desentendeu-se com praticamente toda a corporação acadêmica da sua época por isso mesmo. E, por propagar o seu ateísmo, os sacerdotes de todas as religiões foram os seus inimigos. E não lhes faltaram motivos. Nem a Lutero ele poupou. Viu no monge alemão a reação de um cristianismo primitivo contra a cultura altamente civilizada e sofisticada da Roma papal do Renascimento.
A intolerância em que o catolicismo então mergulhou, com o índex dos livros proibidos, sua censura e seus tribunais inquisitoriais, nada mais fora do que uma reação legítima em defesa de uma cultura mais refinada, estabelecida pelo Renascimento, perante a barbárie de um protestantismo tosco, antiintelectual e incivilizado, que teimava em espalhar-se pela Europa.
Ódio ao filisteu
Devotou um sagrado pavor ao que Ortega y Gasset identificou como o homem-massa, que na época se chamava de filisteu. Durante séculos, desde a Ática antiga, esses tipos insignificantes existiam, sendo sempre desprezados ou merecendo a indiferença dos grandes.
O que caracterizava o presente, marcado pela indulgência e tolerância que arrepiava Nietzsche, é que eles haviam adquirido o direito à visibilidade, inflando a sociedade com sua imensa banalidade e inseparável mau gosto. O filisteu é que está por detrás da nova religião da igualdade, tornando-se um fanático da nova fé na democracia, sendo o principal mentor da mediocridade artística do nosso tempo .
O sangue lhe subia à cabeça, furioso, com a emergência do movimento feminista nos decênios finais do século XIX. Uma das suas razões de ter simpatia e admiração para com Schopenhauer, um dos seus mentores, era exatamente a misoginia daquele. Em seguida, devota um particular horror aos democratas e aos socialistas. Via-os como os cristãos dos novos tempos, iludindo o povo com a promessas de igualdade e fraternidade.
Neste aspecto, Nietzsche foi talvez uma das últimas grandes cabeças a se opor à maré democrática que Tocqueville, ao visitar a América do Norte, nos começos da década de 1830, viu como a força irreprimível do nosso tempo. É a esse homem-massa, ao filisteu e aos seus "gostos" e "valores" que Nietzsche dedicou-se a soterrar, a aniquilar.
Mesmo reconhecendo o declínio gradativo do espírito da autoridade, processo que vinha ocorrendo na Europa desde o fim da Idade Média, ele sequer quis aceitar que em seu lugar adviria o governo das massas. Como Platão, deu-se a supor que haveria ainda lugar para um regime governado pela "oligarquia do espírito".
Neste aspecto, isto é, do comprometimento ideológico de Nietzsche com o pensamento contra-revolucionário, registra-se o incrível esforço, realizado ao longo do século XX, por alguns intelectuais esquerdistas, de tentar trazê-lo para a sua seara, chegando ao ponto de desconsiderar abertamente o que o filósofo escreveu e que nunca ocultou de ninguém.
Associar Nietzsche a qualquer ideário esquerdista ou socialmente progressista, além de ofender a verdade, é um desrespeito à própria obra dele. Ele abominava gente de esquerda. Como ele mesmo deixou muito claro - "não falo jamais para as massas".
Prevendo o colapso europeu
Nietzsche, porém, foi profético em suas previsões a respeito do futuro mais imediato da civilização européia. Foram inúmeras as passagens ao longo da sua obra em que ele prenunciou o advir do dilúvio para a Europa, que de fato se desencadeou em 1914 com a Grande Guerra e, novamente, em 1939, com a Guerra Total, como por exemplo estas linhas extraídas do prólogo do Wille zur Macht (Vontade de potência): "A civilização européia agita-se desde muito sob uma pressão que vai até a tortura, uma angústia que cresce em cada década, como se quisesse provocar uma catástrofe: inquieta, violenta, arrebatada, semelhante a um rio que quer alcançar o término do seu curso, que não reflete mais, que teme até refletir."
Ou ainda, dando seguimento a mesma percepção, quando assegurou que "haverão guerras como jamais se viu no passado", concluindo que "o tempo para a pequena política tinha passado, o próximo século (o século XX) trará consigo uma luta pelo poder em escala mundial – será a compulsão pela grande política."
Em seqüência a Schopenhauer, uma das mais reconhecidas influências, ele também não depositava esperanças numa ascensão da humanidade propiciada pela tecnologia ou pelo progresso social. Para ele, como para o célebre pessimista, mesmo a prosperidade alcançada pela industrialização não removia a sensação miserável da condição humana que acompanha o homem do princípio ao fim da sua existência.
Pode-se até conjeturar que ele não viu na melhoria geral das condições de vida das populações urbanas do final do século XIX uma das razões, a seu ver perigosas, dos filisteus virem "a invadir tudo", a tomar de assalto os espaços antes ocupados pelos eleitos.
Os fracassos de Nietzsche
Nada, porém, do que politicamente defendeu sustentou-se. A democracia, as propostas igualitárias dos socialistas, a emancipação feminina, o cuidado com as expressões das minorias étnicas, mesmo que pouco importantes sob o ponto de vista cultural, terminaram por se impor, pelo menos a partir da segunda metade do século XX.
Se Nietzsche, vivo ainda fosse, andasse nas ruas de uma megalópole do nosso tempo, à vista da permanente exposição dos horrores estéticos de uma sociedade de massas, ele seguramente teria uma síncope. Cidade para ele era Turim, onde um estilo arquitetônico aristocrático conseguia conviver com um parlamento eleito por burgueses.
Nada mais distante do seu ideal de respeito ao bom gosto clássico do que predomina nas nossas avenidas, tomadas por néons ordinários e painéis de publicidade, ou o que se vê pendurado nas paredes de uma galeria de arte dos nossos dias. Imaginem só aquele pobre solitário que adorava ir para as montanhas dos cantões suíços ter que caminhar em meio a turba citadina de agora?
Exatamente é esta sua defesa intransigente do individualismo, ainda que de raiz elitista, aristocrática, é o que fascina muita gente. Lê-lo agora, como muitos o fizeram em tempos anteriores, é um refúgio e um consolo frente a um mundo padronizado, monotonamente igual.
Por outro lado, simultaneamente ao predomínio político e dos valores culturais do homem-massa, se é que podemos assim chamar, nota-se uma furiosa idolatria à celebridade, à personalidade famosa, aquele que de alguma forma conseguiu escapar do terrível anonimato a que a imensa maioria está condenada. Poderíamos arriscar entender a celebridade de hoje como um erzats do super-homem de Nietzsche?
Porque então ainda Nietzsche?
Então, se tudo o que ele disse não se confirmou ou não se assentou no século que passou, qual o motivo da sua presença quase que constante nas livrarias e nas teses dos intelectuais de hoje? Antes de tudo as suas qualidades como escritor. Nietzsche é um dos grandes nomes da literatura mundial.
Mas Giles Deleuze aponta ainda uma outra razão. A modernidade iluminista provocou com seu extraordinário desenvolvimento uma forte suspeita sobre seus fins últimos. A corrosão trazida pelo próprio progresso, fez com que fosse preciso resgatar outras formas de filosofar que não as comprometidas diretamente com os ideais de infinito bem-estar. As que mantiveram distância ou desconfiança no progresso à outrance.
Se bem que Nietzsche não tenha se consagrado como poeta, apesar do extremo vigor da maioria das suas estrofes, revelou-se um dos melhores prosadores de filosofia e de crítica cultural de todos os tempos.
Ele oferece intermináveis insigths para qualquer mente curiosa e dotada de sensibilidade, além de ter abastecido o mundo literário com imagens e cenas poderosas que foram exploradas por múltiplos escritores das mais diferentes nacionalidades e procedências. E, de uma forma definitiva, original e irreproduzível, ele ensina a ver o mundo de uma maneira diferente do que a convencional.
O pensador-dinamite
Apesar dos críticos considerarem o seu ensaio derradeiro, o Ecce Homo, como uma exposição de um alucinado e não mais de um pensador coerente, encontra-se no capítulo final dele um parágrafo que mostra que mesmo tendo rumado da solidão para as trevas ele tinha ainda consciência do que o seu pensamento iria provocar no século que se anunciava.
Diz ele: "Conheço minha sorte. Alguma vez o meu nome estará unido a algo gigantesco – de uma crise como jamais houve na Terra, a mais profunda colisão de consciência, de uma decisão tomada, mediante um conjuro, contra tudo o que até este momento se acreditou, se exigiu, se santificou. Eu não sou um homem, eu sou dinamite." De fato, Nietzsche declarou guerra à tradição do pensamento ocidental.
Este livro, concentrado basicamente na figura chave do pensamento dele, o super-homem, preocupou-se em explorar todas as possíveis vertentes que influíram na construção daquela figura emblemática da filosofia e da concepção de vida de Nietzsche.
Assim, perdoe-nos o leitor por não ter-se saltado pela janela da estética ou entrado pela porta da crítica cultural que ele deixou aberta na sua obra. Contentem-se, pois, com a genealogia do super-homem tal como ele se encontra no Zaratustra. Afinal, como ele mesmo deixou registrado no prefácio do Ecce Homo: "Entre os meus escritos, meu Zaratustra está sozinho. Com ele dei à humanidade o maior presente que ela jamais recebeu."