CONSTITUCIONALISMO NO MUNDO MUÇULMANO:

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Pug
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CONSTITUCIONALISMO NO MUNDO MUÇULMANO:

Mensagem por Pug »

O governo dos EUA afirma que o conteúdo deste artigo não refletem necessariamente sua posição ou politica.

Permito-me do mesmo modo afirmar que a opinião expressa neste artigo é da responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a minha posição ou politica


Fonte do artigo

CONSTITUCIONALISMO NO MUNDO MUÇULMANO:
Entrevista com Noah Feldman


Nesta entrevista, o professor de Direito e especialista em Islamismo Noah Feldman reflete sobre suas experiências em dois dos mais novos processos constitucionais do mundo. Ele assessorou o Departamento de Estado em questões de liberdade religiosa durante a elaboração da Constituição afegã. No Iraque, foi consultor sênior de assuntos constitucionais para a Autoridade Provisória da Coalizão de meados de abril a julho de 2003. Continua a assessorar vários membros do Conselho de Governo iraquiano e prestou consultoria na redação de alguns dos documentos constitucionais provisórios.

EM SEU LIVRO, After Jihad, America and the Struggle for Islamic Democracy, o senhor argumenta que Islamismo e democracia não são incompatíveis e que os valores islâmicos e os ideais democráticos podem coexistir em uma sociedade bem-sucedida. O que o levou a essa conclusão?

Feldman: Há várias questões em jogo aqui. A primeira é que muitas pessoas no mundo muçulmano dizem publicamente que acreditam que a democracia e o Islamismo podem funcionar bem juntos. É claro que há países islâmicos democráticos e relativamente bem-sucedidos com a democracia. A Turquia é o exemplo mais óbvio, mas também é possível olhar para a Indonésia ou para Bangladesh como democracias que estão encontrando seu caminho. Além disso, recentemente foram realizadas reformas democráticas em vários outros países muçulmanos – a nova Constituição em Bahrein é um exemplo expressivo.

Em termos práticos, vemos que as democracias islâmicas podem existir e de fato existem, e em termos teóricos, um número crescente de estudiosos e pessoas comuns no mundo muçulmano argumentam que as tradições do Islamismo e a democracia não são incompatíveis e podem funcionar juntas.

Pergunta: Na hora de elaborar uma Constituição democrática em um país islâmico, quais são as considerações especiais e os desafios específicos?

Feldman: Bem, as primeiras considerações são em nível teórico. As pessoas devem passar a ver que as abordagens genéricas desses dois conceitos não são incompatíveis. Algumas pessoas pensam que porque Deus é soberano no Islã, o povo não pode dar a última palavra em sua governança. Talvez haja dificuldade na conciliação do poder político do povo com a soberania de Deus.

Mas na teoria, acho que é possível responder que no Islã, embora Deus seja soberano, as leis de Deus são interpretadas por seres humanos, e no dia-a-dia a governança se dá pela ação das pessoas, não de Deus. Além disso, na democracia acreditamos que existem alguns direitos fundamentais que transcendem o que as pessoas podem ou não considerar que era certo em determinado momento, como o direito à vida e à liberdade.

Depois há o processo prático de determinar na Constituição as instituições que farão a mediação entre os valores islâmicos e os democráticos quando, para observadores externos, eles pareçam estar em conflito.

AFEGANISTÃO

Pergunta: No Afeganistão, que tipos de questões estruturais foram enfrentadas pelos constituintes?

Feldman: Os tipos de questões que são importantes no processo de elaboração de qualquer Constituição. Elas não estão relacionadas especificamente com a questão Islamismo-democracia. É possível ter um Executivo forte ou um Executivo fraco em uma democracia islâmica. Essas questões são muito importantes para qualquer Constituição do mundo.

No Afeganistão foi preciso lidar com o fato de que a Constituição declara o Islamismo a religião oficial do Estado. Mas também declara o Estado afegão como tendo eleições e valores democráticos.

Foi preciso lidar com a questão estrutural de quando aplicar a lei islâmica. Foi apresentado um dispositivo constitucional, que originalmente apareceu no texto preliminar da Constituição iraniana de 1906, afirmando que nenhuma lei feita pelo homem deve ser contrária ao Islã.

Também foi criado um tribunal constitucional que presumivelmente tem o poder de julgar se uma dada lei viola os valores do Islã. Aqui vemos um exemplo onde foi identificado um conflito potencial e ele foi julgado. Para ser mais preciso, criaram uma instituição para julgar o conflito.

Pergunta: Entendo que a alta corte será uma combinação de juizes de Direito profano e juizes islâmicos. O senhor está otimista quanto ao sucesso desse sistema?

Feldman: É uma experiência. Tem a possibilidade de funcionar, mas certamente não há garantias. É uma experiência com um órgão que será capaz de fazer a mediação entre esses dois conjuntos diferentes de valores e fazer isso de modo que seja percebido como legítimo pelo povo afegão.

Pergunta: A Sharia [o conjunto das leis islâmicas] desempenha algum outro papel na Constituição, além do papel que desempenha na alta corte e na parte a que o senhor acabou de se referir, quando afirmou que nenhuma lei deve ir contra o Islã?

Feldman: Existe uma garantia de que onde a Sharia é aplicada, a escola em particular da Sharia a que uma determinada pessoa pertence será respeitada, de modo que ninguém será obrigado a seguir uma vertente da Sharia que não seja a sua própria. Esse dispositivo está garantido na Constituição. Esse é provavelmente o ponto mais proeminente onde a Sharia desempenha um papel. É interessante observar que não há nenhum dispositivo dizendo especificamente que a Sharia é uma fonte de legislação ou fonte de legislação na Constituição.

Pergunta: Há ambigüidades ou brechas deliberadas na Constituição afegã? Por exemplo, questões que não puderem ser decididas ou para as quais não se obter consenso ou acordo que serão deixadas para o futuro de algum modo?

Feldman: A Constituição garante a igualdade das mulheres, mas não aborda a questão do que aconteceria se determinados dispositivos da lei islâmica fossem vistos como incompatíveis com essa igualdade.

Talvez o tribunal constitucional venha simplesmente a interpretar a Sharia como sendo igualitária, e esse seria um resultado possível. Essa questão não é abordada de maneira explícita. Portanto, sim, há uma espécie de brecha deixada lá. Ficará a critério desse tribunal lidar com isso.

Pergunta: Grupos de mulheres demonstraram preocupação de que a garantia dos direitos das mulheres na Constituição não está tão claramente afirmada ou tão forte quanto gostariam.

Feldman: Há um número específico reservado para as mulheres no Legislativo e uma garantia expressa de igualdade para as mulheres na Constituição. Também há uma garantia de que o Afeganistão se sujeitará às obrigações de acordos internacionais, o que inclui a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women – Cedaw) [da ONU].

Essas são três garantias bastante fortes, notavelmente porque nenhuma delas é mencionada na Constituição dos EUA. Não temos um número reservado para as mulheres no Legislativo. Não temos uma menção explícita das mulheres como iguais na nossa Constituição, tampouco jamais ratificamos a Cedaw. Sempre poderia ser melhor, mas é um bom começo para o Afeganistão, na minha opinião.

IRAQUE

Pergunta: Vamos passar para o Iraque. O Conselho de Governo iraquiano adotou a chamada “Constituição provisória” em 8 de março. Qual sua função e por quanto tempo ficará em vigor?

Feldman: Sua função em princípio é criar uma estrutura para o governo, primeiro durante o período de transição anterior às eleições nacionais em janeiro de 2005, e também fornecer uma estrutura sobre como o governo se parecerá depois da realização dessas eleições. Na realidade, ainda continua em aberto se a Constituição entrará em vigor como está escrita ou se será alterada. Neste momento, os membros do Conselho de Governo concordaram em segui-la após 30 de junho.

Pergunta: Há indicações de que haverá muita pressão para alterar a Constituição provisória?

Feldman: Já há pressões para alterá-la. No mesmo dia em que foi assinada, o líder xiita aiatolá Al Sistani disse que ela tinha problemas. Outros líderes xiitas parecem ter feito coro a essas preocupações. A preocupação expressa recentemente pelo aiatolá Al Sistani em uma carta ao representante especial das Nações Unidas, Lakhdar Brahimi, foi de que a presidência tripartite criada pela Constituição provisória não é suficientemente majoritária. Na carta ele afirma que espera que a resolução do Conselho de Segurança da ONU não venha a endossar o documento inteiro como está, mas reconheça que a Assembléia Nacional tem autoridade para emendar esse documento. Ele indicou especificamente que gostaria de ver uma emenda para a presidência tripartite.

Pergunta: Então a estrutura do governo é de um sistema presidencialista e não parlamentarista?

Feldman: Não, na verdade é um sistema parlamentarista, com um primeiro-ministro e depois uma presidência tripartite, que tem alguns poderes reais, alguns poderes de veto, mas que não é o Executivo básico.

Pergunta: O que a Constituição provisória tem a dizer sobre direitos humanos e liberdade religiosa?

Feldman: Ela garante a liberdade de religião, a liberdade de consciência, a liberdade de pensamento em uma redação emprestada da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ela também especifica uma relação completa de direitos humanos básicos comuns nos documentos internacionais de direitos humanos: direitos contra a tortura, direitos à proteção igual dos cidadãos, direitos ao processo legal justo e assim por diante.

Pergunta: Então está próxima de ser uma completa Declaração de Direitos Humanos?

Feldman: Eu a descreveria como uma detalhada declaração de direitos humanos. Ela garante igualdade para todos os iraquianos, sejam homens ou mulheres, independente de sua religião, etnia ou origem nacional. É uma lista bastante abrangente de direitos, um documento notável nesse sentido.

Pergunta: Ela prevê mulheres no governo?

Feldman: Sim. A Lei Administrativa de Transição afirma: “A Assembléia Nacional deve ser construída de tal modo a garantir que 25% de seus representantes sejam mulheres”. Agora, há alguma discussão se é uma cota exata ou se é uma meta a ser almejada. A redação é dúbia, mas eu diria que está mais próxima de uma exigência expressa de que a Assembléia Nacional seja composta de pelo menos 25% de mulheres.

Pergunta: O senhor espera que haja um amplo debate público sobre o documento?

Feldman: Sim, espero. O documento foi redigido sem grande participação pública. Essa é uma falha reconhecida por todos. Haverá agora um debate, primeiro, sobre o caráter da lei de transição em si. Espero que haja um debate sadio sobre isso. E depois espero que haja um outro debate sobre a questão de quais aspectos desse documento devem ser alterados ou devem permanecer iguais em uma Constituição permanente subseqüente que deve ser redigida e ratificada pela Assembléia Nacional.

Pergunta: Em termos de atividade política, a Constituição provisória proíbe, como faz a Constituição afegã, partidos políticos organizados em torno de grupos regionais ou étnicos?

Feldman: Ela não proíbe, nem poderia fazer isso e continuar compatível com as organizações políticas associadas com os partidos curdos. O Partido Democrata Curdo e a União Patriótica estão organizados em torno da identidade curda e são provenientes do Curdistão.

Pergunta: Se as constituições no Iraque (por fim) e no Afeganistão desfrutarem de algum sucesso e promoverem a estabilidade e novas liberdades para seus cidadãos, que impacto o senhor acha que isso terá no resto da região?

Feldman: Acho que isso colocará em evidência a falta de liberdade e democracia em alguns dos países vizinhos. O Irã teve alguns desdobramentos muito promissores que agora parecem ter entrado em curto circuito, e se houver clérigos xiitas no Iraque pedindo eleições livres e abertas e clérigos xiitas no Irã pedindo eleições limitadas, isso terá influência no Irã, porque os iranianos verão ainda mais claramente o quão falido se tornou seu sistema.

De modo similar, na Arábia Saudita, as pessoas assistirão pela tevê via satélite debates públicos sobre importantes questões constitucionais e verão que esses tipos de debates não necessariamente “trazem a casa abaixo” e isso aumentará a pressão por abertura e liberalização no país.

Também na Síria acho que haverá um maior entendimento da necessidade de mais reformas do que as que foram feitas até o momento. Acho que isso terá um efeito positivo em todos os lugares da região.

Se a democracia falhar no Iraque, isso terá um efeito negativo em todos os lugares da região. Os defensores da liberalização e da democratização irão cada vez mais achar que a democracia não é uma estrutura governamental viável em países de maioria muçulmana. Isso seria uma vergonha terrível.

Pergunta: A pergunta que muitas pessoas fazem é: “O que acontece se extremistas islâmicos forem eleitos democraticamente?” Em seu livro o senhor dá um exemplo inquietante da Argélia.

Feldman: Uma coisa que deve ficar clara sobre a Argélia, apesar do que muitas pessoas possam relembrar, é que de fato não foram os islamitas que conduziram o país à guerra civil. Eles não disseram que aboliriam a democracia. Pelo contrário, disseram que estavam dispostos a participar democraticamente. No entanto, nunca tiveram a chance de provar isso de um modo ou de outro, porque o governo militar cancelou as eleições e foi ele que de fato causou uma perda de liberdade no país.

Realmente acho que as eleições em todos os lugares do mundo muçulmano, onde foram de certa forma livres nos últimos anos, fizeram com que os partidos islâmicos fossem muito bem. Minha expectativa é que a mesma coisa aconteça no Iraque e também no Afeganistão.

Essa é a tendência geral que pode ser observada. Isso não significa que esses partidos vão necessariamente agir de maneira antidemocrática. A Turquia é um exemplo onde o partido que está no poder é um partido islâmico moderado, apesar de não ter esse nome. O laicismo oficial da Turquia dita que eles não podem estar no poder, mas eles estão. Eles têm governado de uma maneira muito democrática.

Pergunta: Então, ao chegar ao poder eles se tornaram mais moderados?

Feldman: Na Turquia, eles eram relativamente moderados quando estavam concorrendo ao governo. A realidade de ser uma democracia é que você tem de conseguir a reeleição. Na medida em que você tem de ser reeleito, não pode governar de uma maneira que vá alienar grandes segmentos da população. No Irã, ao contrário, onde os governantes chegaram ao poder pela revolução, eles conseguem escapar impunemente com medidas opressoras, muito embora o povo as rejeite profundamente. Há obviamente uma diferença significativa entre chegar ao poder de uma maneira legítima e chegar ao poder pela força.



Noah Feldman é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York, na cidade de Nova York. Ex-funcionário da Suprema Corte, doutorou-se em pensamento islâmico pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, como bolsista da Rhodes. É autor de. After Jihad: America and the Struggle for Islamic Democracy. Foi entrevistado por Leslie High.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a posição nem as políticas do governo dos Estados Unidos.

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