Der Spiegel
16/08/2006
Entrevista com Jimmy Carter, ex-presidente dos EUA: "Os EUA e Israel estão isolados"
da Redação
O ex-presidente americano Jimmy Carter fala com DER SPIEGEL sobre o perigo que George W. Bush representa para os valores americanos, a difícil situação no Oriente Médio e a saúde de Fidel Castro.
Der Spiegel - Senhor Carter, em seu novo livro o senhor escreve que somente a população americana pode garantir que o governo dos EUA retorne aos antigos princípios morais do país. O senhor está sugerindo que a atual administração de George W. Bush age de maneira imoral?
Jimmy Carter - Não há dúvida de que esta administração se afastou radicalmente das políticas básicas de todos os governos anteriores, incluindo os de presidentes republicanos e democratas.
DS - Por exemplo?
Carter - Sob todos os seus antecessores houve um compromisso com a paz, em vez da guerra preventiva. Nosso país sempre teve uma política de não ir à guerra, a menos que nossa própria segurança estivesse diretamente ameaçada, e hoje temos uma nova política de ir à guerra em uma base preventiva. Outro sério afastamento das antigas políticas é a separação entre Igreja e Estado, que descrevo no livro. Esta foi uma política desde o tempo de Thomas Jefferson, e minhas próprias crenças religiosas são compatíveis com ela.
Outro princípio que descrevo no livro é a justiça básica. Nunca tivemos um governo que aprovasse tão aberta e claramente leis fiscais que visavam unicamente beneficiar as pessoas mais ricas do país às custas ou em detrimento das famílias dos trabalhadores americanos.
DS - O senhor também mencionou o ódio pelos EUA em todo o mundo árabe, que foi conseqüência da invasão do Iraque. Diante dessa circunstância, é uma surpresa que o apelo de Washington por democracia no Oriente Médio tenha sido desacreditado?
Carter - Não, na verdade as preocupações que eu expus tornaram-se ainda piores agora com os EUA apoiando e encorajando Israel em seu ataque injustificado ao Líbano.
DS - Mas Israel não foi atacado primeiro?
Carter - Não acho que Israel tenha qualquer justificativa legal ou moral para esse bombardeio maciço do Líbano. O que aconteceu foi que Israel está detendo quase 10 mil prisioneiros, por isso quando os militantes no Líbano ou em Gaza capturam um ou dois soldados Israel vê isso como justificativa para um ataque à população civil do Líbano e Gaza. Não acho que se justifique, não.
DS - O senhor acha que os EUA ainda são um fator importante para garantir uma solução pacífica para a crise no Oriente Médio?
Carter - Sim, na verdade, como você sabe, desde que Israel é uma nação os EUA forneceram a liderança. Todo presidente em todos os tempos fez isto de maneira bastante equilibrada, incluindo George Bush pai, Gerald Ford e outros, incluindo eu mesmo e Bill Clinton. Este governo não tentou absolutamente nos últimos seis anos negociar um acordo entre Israel e qualquer de seus vizinhos ou os palestinos.
DS - O que o torna pessoalmente tão otimista sobre a eficácia da diplomacia? O senhor é o pai das negociações de Camp David, por assim dizer.
Carter - Quando me tornei presidente, havíamos tido quatro guerras terríveis entre os árabes e israelenses. Com grande dificuldade, especialmente porque Menachem Begin foi eleito, eu decidi tentar a negociação, ela funcionou e temos um tratado de paz entre Israel e o Egito há 27 anos, que nunca foi violado. Você nunca pode ter certeza antecipadamente de que as negociações em circunstâncias difíceis terão sucesso, mas você pode ter certeza antecipada de que se não negociar o problema vai continuar e talvez até piore.
DS - Mas as negociações não impediram os bombardeios a Beirute e Haifa.
Carter - Estou muito triste. Mas acho que as propostas que foram feitas nos últimos dias pelo primeiro-ministro libanês Fuad Siniora são muito razoáveis. E acho que eles devem declarar um cessar-fogo imediato de ambos os lados; o Hizbollah disse que aceitará, espero que Israel aceite, então haverá necessidade de longas e cansativas negociações para estabilizar a fronteira norte de Israel. É preciso haver uma troca de prisioneiros. Já houve trocas de prisioneiros com sucesso entre Israel e os palestinos, e é algo que pode ser feito agora.
DS - Deveria haver uma força de paz internacional na fronteira libanesa-israelense?
Carter - Sim.
DS - E o senhor pode imaginar soldados alemães participando dela?
Carter -Sim, posso imaginar isso.
DS - Mesmo com sua história?
Carter - Sim. Seria certamente satisfatório para mim pessoalmente, e acho que a maioria das pessoas acredita que já passou bastante tempo para que os fatos históricos possam ser ignorados.
DS - Um dos principais pontos do seu livro é a estranha coalizão entre fundamentalistas cristãos e o Partido Republicano. Como essa coalizão dos piedosos pode levar a catástrofes morais como o escândalo da prisão iraquiana de Abu Ghraib e a tortura em Guantánamo?
Carter - Os fundamentalistas acreditam que têm uma relação única com Deus, e que eles e suas idéias são as idéias de Deus e as premissas de Deus sobre essa questão. Portanto, por definição, já que eles estão falando por Deus, qualquer um que discorde está inerentemente errado. E o passo seguinte é: os que discordam deles são inerentemente inferiores, e em casos extremos - como o de alguns fundamentalistas ao redor do mundo - isso torna seus adversários sub-humanos, de modo que suas vidas não têm importância.
Outra coisa é que um fundamentalista não pode negociar com pessoas que discordam dele porque um processo de negociação em si é um indício de igualdade implícita. E por isso este governo, por exemplo, tem uma política de simplesmente recusar-se a falar com qualquer um que discorde fortemente dele - o que também é um afastamento radical da história passada. Então esse é o tipo de coisa que me causa preocupação. E, é claro, os fundamentalistas não acreditam que podem cometer erros, por isso quando permitimos a tortura de prisioneiros em Guantánamo ou Abu Ghraib é simplesmente impossível para um fundamentalista admitir que se cometeu um erro.
DS - Como essa proximidade com o fundamentalismo cristão se manifesta politicamente?
Carter - Infelizmente, depois do 11 de Setembro houve um surto na América de intenso sofrimento e de patriotismo, e o governo Bush foi muito hábil e eficaz em pintar qualquer um que discorde de suas políticas como antipatriótico ou até traidor. Durante três anos, eu diria, as principais empresas de mídia de nosso país foram cúmplices nessa subserviência ao governo Bush por medo de serem acusadas de deslealdade. Acredito que nos últimos seis meses mais ou menos parte da mídia começou a ser crítica. Mas demorou muito.
DS - Sua colega democrata, a senadora Hillary Clinton, pediu recentemente a renúncia do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld. Mas ela, como muitos outros, permitiu que o presidente Bush invadisse o Iraque sob um falso pretexto.
Carter - Correto.
DS - O país inteiro estava em risco de perder seus valores básicos?
Carter - Durante algum tempo sim. Como você possivelmente sabe, historicamente nosso país teve a capacidade de autocorrigir seus próprios erros. Isto se aplicou à escravidão em 1865, aplicou-se à segregação racial legal há cerca de cem anos. Aplicou-se à era de Joe McCarthy quando o anticomunismo teve uma fase temível no país, como o terrorismo hoje. Por isso temos uma capacidade de nos corrigir e acredito que hoje está ocorrendo uma autocorreção. Na minha opinião, o resultado da eleição em Connecticut [a derrota na primária do senador Joseph Lieberman, defensor da guerra] foi um indício de que os americanos perceberam muito claramente que cometemos um erro ao entrar no Iraque e ficar lá por tanto tempo.
DS - Hoje até o presidente Bush parece ter aprendido alguma coisa com a catástrofe no Iraque. Em seu segundo mandato ele assumiu uma abordagem mais multilateral e parece voltar à cooperação internacional.
Carter - Acho que o governo aprendeu uma lição, mas não vejo
qualquer indício de que o governo um dia admitirá que cometeu um erro e precisava aprender uma lição. Não vi muitos indícios, aliás, da sua premissa de que este governo agora está se reconciliando com os outros países. Acho que neste momento os EUA e Israel provavelmente estão mais isolados do que nosso país esteve em muitas gerações.
DS - O senhor escreveu sobre seu encontro com Fidel Castro. Ele parece seriamente doente e os exilados cubanos já estão festejando nas ruas de Miami. Provavelmente o senhor não estava no clima para unir-se a eles.
Carter - Não, é verdade. Só porque alguém está doente não acho que deva haver uma comemoração da morte potencial. E minha própria opinião é que Fidel Castro vai se recuperar. Ele é dois anos mais moço que eu, portanto não é um caso sem esperança.
DS - O senhor tentou normalizar as relações com Castro, mas isso nunca aconteceu. Alguma coisa foi conquistada através do isolamento de Cuba?
Carter - Na minha opinião, o embargo reforça Castro e perpetua o comunismo em Cuba. Um grau máximo de comércio, turismo, visitas entre nosso país e Cuba traria um fim mais rápido para o regime de Castro.
DS - O senhor já foi chamado de consciência moral de seu país. Como vê a si mesmo? É um forasteiro na política americana hoje em dia, ou representa um eleitorado que poderá talvez eleger o próximo presidente dos EUA?
Carter - Eu acho que represento a vasta maioria dos democratas deste país. Acredito que uma parte substancial da população americana concorda completamente comigo. Não posso dizer uma maioria porque há partes fragmentadas em nosso país e divisões sobre o controle de armas, a pena de morte, o aborto e o casamento gay.
DS - Como presidente, seu desempenho foi muitas vezes criticado. Mas o trabalho que o senhor fez para promover os direitos humanos foi amplamente elogiado. A vida foi injusta com o senhor?
Carter - Eu tive sorte na vida. Tudo o que fiz trouxe grande prazer e gratificação para mim e minha mulher. Estive quatro anos na Casa Branca - não foi um fracasso. Alguém que serviu como presidente dos EUA, você não pode dizer que é um fracasso político. E tivemos os melhores anos de nossas vidas desde que deixamos a Casa Branca. Tivemos uma vida muito plena.
DS - O senhor acha que conquistou mais fora do cargo do que quando era presidente?
Carter - Bem, eu usei o prestígio e a influência de ter sido presidente dos EUA da maneira mais eficaz possível. E depois, ainda consegui realizar meus compromissos com a paz e os direitos humanos, a qualidade ambiental, a liberdade, a democracia e assim por diante.
DS - Os EUA precisam de uma mudança de regime?
Carter - Como eu disse antes, existe um aspecto de autocorreção em nosso país. Eu acho que o primeiro passo vai ser na eleição em novembro deste ano.
Este ano, os democratas têm uma boa probabilidade de dominar uma das câmaras do Congresso. Eu acho que o Senado vai ser uma decisão muito apertada. Meu filho mais velho é candidato para o Senado pelo estado de Nevada. E se ele e alguns outros tiverem sucesso e você tiver o Senado americano nas mãos dos democratas, isso fará uma diferença profunda e imediata.
DS - Senhor Carter, obrigado pela entrevista.
Entrevista com Jimmy Carter
Entrevista com Jimmy Carter
"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma." (Joseph Pulitzer).