Fonte
Estados Unidos: política externa e religião
Virgílio Arraes
Na política externa norte-americana, há a tradição de enfeixar as linhas gerais formuladas, mesmo se não aplicadas totalmente, sob o nome do presidente. A administração Bush, imbuída desde o início de caráter messiânico, atribuiu a si o encargo de remodelar política e economicamente boa parte do mundo, em especial o Oriente Médio. Para tal, ela idealizou, no início de seu segundo ano de mandato, um tríptico em que se encaixaram Irã, Iraque e Coréia do Norte. O último foi enfileirado com o objetivo de afastar a possibilidade de que houvesse um posicionamento eminentemente antiislâmico e, por conseguinte, de feição cruzada, o que subscreveria a hipótese do choque de civilizações, de Samuel Huntington.
Os três países representariam, de modo extremado, ditaduras opostas ao ideário democrático, de sorte que a guerra antecipatória poder-lhes-ia ser o ato deflagrador de um processo de transição irreversível. Em vez de diplomacia, haveria a utilização da força. De certo modo, a gestão Bush se apresenta como a renovação do mandato de Ronald Reagan (1981-88): na política externa, estabelece um “eixo do mal”, de início alcunhado de “eixo do ódio”, em substituição ao “império do mal” (antiga União Soviética) e advoga fervorosamente a defesa da crença no livre-comércio como forma de diminuir a desigualdade material entre países e promover a democracia, ainda que, na prática, apenas formalmente.
Na interna, efetiva constantes déficits e implementa a redução de impostos sob a justificativa de que se estimularia o desenvolvimento econômico. Como conseqüência real de tal política, há a diminuição significativa de pagamentos dos setores mais bem aquinhoados da sociedade norte-americana, o que amplifica desigualmente a estrutura social. Destarte, há a renúncia à afirmação de políticas universais, apesar de ser indiscutivelmente o país mais rico do globo.
Todavia, com o objetivo de mitigar críticas mais acerbas, os republicanos, desde meados dos anos 1990, quando se situaram na oposição ao mandato de Bill Clinton, emolduram seu projeto político com o rótulo de “conservadorismo misericordioso”, inspirado remotamente no ramo do cristianismo advindo da Reforma do século XVI. Dele, extraem os republicanos os seus fundamentos maniqueístas para administrar o dia-a-dia. De modo geral, os republicanos opõem-se à secularização da política, por acreditar que a justiça social decorre diretamente da tradição cristã.
Derivaria daí, por exemplo, o apoio aos movimentos pró-vida. Indiretamente, há efeitos na política externa: ao evocar tal herança religiosa, os Estados Unidos aproximam-se mesmo da Santa Sé em certos foros internacionais, com reflexos posteriores sobre o eleitorado católico do país. Deste modo, edificar-se-ia uma visão pluralista, cujo espraiamento iria além do cristianismo, ao buscar pontos comuns - valorização da família e do trabalho entre outros - entre os seguidores das inúmeras religiões do país.
Entretanto, o messianismo político dos republicanos na arena externa dissemina discórdia e, por conseguinte, destruição, ao dispor da negociação como meio secundário para o encaminhamento de divergências. A despeito dos reveses intermitentes no Oriente Médio e adjacências, o fervor belicista não se interrompe - dentro da perspectiva teológica, se o mal, personificado em uma ditadura religiosa ou secular, existe, ele deve ser confrontado, apesar dos desgastes experimentados. O paradoxal de tal visão é a seletividade para a sua aplicação: afinal, pouco se menciona sobre Paquistão, Egito, Arábia Saudita, aliados militares, ou mesmo China, a grande parceira comercial.
Para os partidários de Bush, as constantes referências à simbologia cristã não são atributos restritos aos republicanos: democratas, como Bill Clinton ou Franklin Roosevelt, também se valeram dela quando de suas passagens pela presidência. A despeito de se basear no modelo de democracia de Thomas Jefferson ou mesmo do democrata Woodrow Wilson, Bush inspira-se mais, no seu cotidiano, no Evangelho de Mateus ou no Sermão da Montanha para opor-se a tiranias, pinçadas de acordo com o grau de oposição política ao país ou de recursos naturais disponíveis, especialmente se localizadas no Oriente Médio ou no antigo território soviético.
Deste modo, a constante recordação de valores universais por parte da diplomacia estadunidense, a fim de intensificar a atuação de seu país no mundo, impregna-se certamente no cristianismo, mas de modo superficial, dado que incapacitada de ultrapassar a manipulação retórica e, deste modo, traduzir-se em políticas de cooperação de longo prazo.
Por fim, não há nada de quixotesco na política externa do presente governo. A justificativa de afirmar que, graças aos esforços norte-americanos nas últimas cinco décadas, metade da população mundial vive sob democracia, enseja como contraponto a reflexão de que o percentual poderia ser até mesmo superior, caso não houvesse tantas intromissões ou mesmo intervenções estadunidenses no período destacado - vide a região latino-americana.
Virgílio Arraes é professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília).
Estados Unidos: política externa e religião
Estados Unidos: política externa e religião
"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma." (Joseph Pulitzer).