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RicardoVitor
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RicardoVitor
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As Lições de Ludwig von Mises aos Constituintes de 1988

“Será a história um dia reescrita? Se o for, e quando o for, os heróis da Constituinte de 88 parecerão bandidos anti-sociais, fabricantes de pobreza e fraudadores do desenvolvimento. A única coisa que não se lhes pode negar é terem tido boas intenções. Mas na história, as boas intenções são notas de rodapé; só os ‘resultados’ entretecem a trama principal”.

Roberto Campos.

A inadequação da Constituição Federal de 1988 às realidades e necessidades do país são hoje patentes. Tantos foram os problemas a nós legados pelos constituintes que, na tentativa de remediá-los, foram necessárias nada menos que 43 emendas ao seu texto original, terminando por totalizar 250 artigos, com 94 disposições transitórias. A título de comparação, a Constituição dos Estados Unidos da América, ratificada duzentos anos antes da brasileira, possui apenas 7 artigos, aos quais foram acrescidas 26 emendas constitucionais, pouco mais da metade do número brasileiro.

É provável, no entanto, que a multiplicação dos artigos tenha sido um dos menores males. De fato, a quantidade desses artigos colabora menos para a perpetuação de nossos infortúnios do que o conteúdo expresso em alguns deles.

Em verdade, olhando retrospectivamente, é possível dizer que a Constituição nasceu em um momento inoportuno; foi redigida antes do annus mirabilis de 1989 e de todas as transformações dele decorrentes no Leste Europeu. Estávamos, ainda, influenciados em excesso por idéias ineficazes, que já haviam se provado errôneas no passado, mas nas quais insistíamos com uma teimosia tenaz.

O resultado não poderia ser outro. Tão logo promulgada, a Constituição já precisava de emendas. Uma após outra, reformas pontuais foram, ao longo de toda a década de 1990, corrigindo algumas das sandices patrocinadas pelo bom-mocismo demagógico de nossos constituintes. A fatura da farra de “direitos sociais” chegou tão logo foi posto em vigência o texto; e o declínio do estatismo em todo o mundo mostrava que, na verdade, o país havia feito, em 88, a opção pelo atraso.

É sintomático, portanto, que hoje uma das mais ferrenhas defensoras dos termos e desígnios constitucionais seja justamente a esquerda radical do país, que tanto os vilipendiou de início. Tal qual “o sujeito forçado a casar com mulher feia, pela qual depois se apaixonou ao descobrir-lhe insuspeitas virtuosidades na cama”1, como costumava dizer Roberto Campos.

Os erros dos liderados de Ulysses Guimarães foram muitos e alguns deles serão objeto de análise neste ensaio. Mas se resumidos em apenas um tópico, talvez pudessem assim ser sintetizados: acharam por bem, os constituintes, à moda dos “liberals” americanos, incorporar à Carta Magna a ilusão de que é possível separar liberdade econômica das demais liberdades. O próprio Ulysses, na cerimônia de promulgação do texto, explicitava seu “ódio” pela ditadura e pelo autoritarismo, sem perceber que, paradoxal e concomitantemente, estava a ratificar o autoritarismo econômico e o estado de servidão dos cidadãos brasileiros perante o Estado. A mesma contradição foi assim tratada por Mises, em seu “As Seis Lições”2:

The so-called liberals of today have the very popular idea that freedom of speech, of thought of the press, freedom of religion, freedom from imprisonment without trial—that all these freedoms can be preserved in the absence of what is called economic freedom. They do not realize that, in a system where there is no market, where the government directs everything, all those other freedoms are illusory, even if they are made into laws and written up in constitutions3.

Desnecessário dizer que Ludwig von Mises não era leitura freqüente – ou mesmo esporádica – da maioria dos representantes do povo na Assembléia Constituinte. Resultou dela, portanto, a manutenção de uma visão tão intolerante quanto ignorante a respeito das idiossincrasias da economia, a qual espero poder comentar mais detalhadamente nas páginas seguintes.
“Direitos Sociais” e Desequilíbrio Fiscal


Do ponto de vista da liberdade individual e do pensamento liberal, poderia-se discutir a pertinência de quase todas as atribuições que o texto constitucional confere ao Estado. Poderia-se, por exemplo, questionar o grau de liberdade de que goza um indivíduo obrigado a transferir ao Estado uma parcela considerável de sua renda para que este aplique em seguridade social. Seria também possível debater, sob o prisma liberal, a validade de tornar compulsória aos cidadãos brasileiros o financiamento da educação superior de terceiros, por meio das universidades estatais.

No entanto, por mais pertinentes que sejam esses assuntos, além de não serem objeto de análise em “As Seis Lições”, provavelmente mereceriam mais espaço do que o disponível neste ensaio. Melhor, portanto, é analisar os resultados que esses “direitos sociais” trouxeram às contas públicas e à situação fiscal do país, notadamente o inchaço das despesas obrigatórias e o conseqüente desequilíbrio fiscal.

Nos termos constitucionais, foram definidos como “direitos sociais”, “a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Foram os constituintes tão generosos e perdulários em “direitos sociais” e atribuições da União quanto avarentos e restritivos na hora de determinar suas receitas. Foi obra deles, por exemplo, a transferência de inúmeros funcionários públicos do regime celetista (contratos regidos pela CLT) para o regime jurídico único, o que provocou enormes despesas extras, além de uma série de inconvenientes ligados à natureza do contrato que restringiam ainda mais a capacidade do poder público de sanear suas contas; também deve ser a eles creditada a irresponsabilidade fiscal que deu origem ao déficit previdenciário que se tornou o maior obstáculo ao equilíbrio das contas públicas.

É lícito concluir, pois, que a aceitação quase generalizada da farra perdulária dos constituintes demonstra o quanto somos lenientes com o Estado, permitindo que ele e que aqueles que agem em seu nome continuem a nos impor taxações cada vez mais altas, sem atacar as verdadeiras origens dos déficits, conforme explicou Mises:

The government can run at a deficit, because it has the power to tax people. And if the taxpayers are prepared to pay higher taxes in order to make it possible for the government to operate an enterprise at a loss—that is, in a less efficient way than it would be done by a private institution—and if the public will accept this loss, then of course the enterprise will continue.4

Deram, portanto, um grande incentivo ao Estado para que recorresse à inflação para custear parte de seus gastos. Diante desta situação, é lógico que tenhamos atingido em poucos anos um quadro de hiperinflação.

Em verdade, o texto constitucional ignorou, em uma clara afronta à aritmética, princípios básicos de responsabilidade fiscal. Os constituintes, ansiosos por agradares suas bases eleitorais, transferiram a Estados e Municípios receitas que antes eram destinadas à União, sem que houvesse, no entanto, uma proporcional transferência de atribuições. E mais: tornaram obrigatórias um sem-número de despesas, virtualmente impossibilitando um ajuste fiscal profundo, que modificasse a estrutura dos gastos públicos. Um grande volume de receitas passou a ser vinculado a despesas específicas, dificultando ainda mais qualquer tentativa de ajuste fiscal.

A título de ilustração, segundo dados do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, no ano de 1988 as receitas desvinculadas representavam 55,5% do total; cinco anos de vigência da nova Constituição reduziram essa participação, em 1993, para 22,9% e em 2003 para algo em torno de 19,7%.

Tem-se mantido, portanto, desde o fim da década de 1980 e início dos anos 90, um nível médio de receitas vinculadas em torno de 75% do total arrecadado. E a maior parte desse montante é direcionada ao financiamento e custeio dos “direitos sociais” criados pelos constituintes. Uma destas vinculações, por exemplo, determina que o Governo Federal deve obrigatoriamente direcionar no mínimo 18% dos recursos arrecadados à Educação (Art. 212); outra canaliza as receitas provenientes das contribuições sociais descritas no Art. 195 para o financiamento da seguridade social. Além dessas duas, há ainda um outro conjunto de vinculações de receitas que diz respeito a transferências automáticas de recursos para Estados e Municípios5.

Criou-se, portanto, deliberadamente, um problema de financiamento para o Estado brasileiro, que dificultou sobremaneira a implementação de um necessário ajuste fiscal profundo. A despeito das heterodoxias constituintes, Mises, acertadamente, ensinava que não havia soluções mágicas:

There can be no secret way to the solution of the financial problems of a government; if it needs money, it has to obtain the money by taxing its citizens (or, under special conditions, by borrowing it from people who have the money). But many governments, we can even say most governments, think there is another method for getting the needed money; simply to print it.6

Não é sem motivo, portanto, que convivemos durante a década de 90 tanto com a hiperinflação quanto com a alta carga tributária e o elevado endividamento público. Os constituintes de 1988 transformaram os gastos públicos elevados em um preceito constitucional, contra o qual tornou-se complicado manejar a economia.

Mesmo assim poderia ter sido pior, caso tivesse sido posto em prática o absurdo tabelamento de juros que incluíram no texto. A medida era determinada pelo artigo 192, em seu parágrafo terceiro, que limitava os juros reais a 12% ao ano, uma impropriedade medieval que instituía o crime de usura para cobranças de taxas maiores e que, como lembrou Maílson da Nóbrega, expôs o Brasil ao ridículo “de ser o primeiro país a incluir em sua Carta Magna uma idéia abandonada há mais de trezentos anos no mundo ocidental”7.

Para sorte do país, este dispositivo, ao contrário de muitos outros impropérios constituintes, nunca chegou a ser implementado, graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal decidindo que a matéria precisaria de regulamentação em lei.
Investimento Estrangeiro e Relações de Trabalho


A visão que deu origem ao tratamento paternalista dispensado aos trabalhadores no texto constitucional é, em essência, a mesma que discriminou o capital estrangeiro e o pôs, na prática, em uma categoria de “capital de segunda classe”; é mesma visão tão conhecida e disseminada em países subdesenvolvidos, segundo a qual o capital (principalmente o estrangeiro) é intrinsecamente predador, e o trabalhador é essencialmente uma vítima. De acordo com esta crença, este último é sempre o elo mais fraco da cadeia produtiva, comandada inexoravelmente pelo capital. Caberia, portanto, ao Estado balancear as relações de poder na cadeia, protegendo a parte mais fraca e solapando a força do lado mais forte.

Foi esta maneira distorcida de ver a realidade econômica, aliada às vitórias de diversos grupos de pressão (sindicatos, associações de classe, grupos empresariais), que incrustou no texto da Carta Magna os privilégios e vantagens competitivas de que gozam trabalhadores e determinados setores empresariais, sempre em detrimento, ressalte-se, dos consumidores.

Na contramão dos princípios defendidos por Mises, os constituintes preferiram fazer pela via legal o que caberia, em uma economia livre, ao mercado. No que concerne especificamente os trabalhadores, o artigo 7º é o que versa sobre seus “direitos sociais”. Ele assegura diversas garantias, como proteção contra “despedida arbitrária ou sem justa causa”8, seguro-desemprego9, piso salarial “proporcional à extensão e à complexidade do trabalho”10, décimo terceiro salário “com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria”11, etc. Quanto ao salário mínimo do trabalhador, a lei determina que ele deve ser “capaz de atender às suas necessidades vitais e às de sua família com moradia, alimentação, educação, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”12.

Do artigo 7º, entretanto, nenhum item consegue superar, em ridículo e comicidade, os incisos XXVII, que garante ao trabalhador “proteção em face da automação, na forma da lei”, e XXXII, que proíbe “distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos”. A comicidade, porém, existe apenas por não terem efeitos práticos os artigos. Pois se o tivessem, é provável que trouxessem impactos desastrosos ao desenvolvimento do país e à renda do próprio trabalhador.

São decerto indiscutíveis, como bem disse Roberto Campos, as boas intenções dos constituintes que fixaram como “direitos sociais” todos os benefícios acima citados. No entanto, não são as intenções o que se deve questionar, mas os efeitos nocivos e a aplicabilidade prática de normas salariais que não consideram a produtividade do trabalhador como uma variável válida. Nos termos de Mises:

“A businessman cannot pay a worker more than the amount added by the work of this employee to the value of the product. He cannot pay him more than the customers are prepared to pay for the additional work of this individual worker. If he pays him more, he will not recover his expenditures from the customers. He incurs losses and (…) a businessman who suffers losses must change his methods of business, or go bankrupt”.13

Ou seja, como bem disse o próprio Mises, os salários são determinados pela “produtividade marginal do trabalho”. Não é por acaso, portanto, que o operador de uma colheitadeira ganha muito mais que um cortador de cana bóia-fria, assim como o supervisor de uma linha de montagem robotizada tem uma renda muito superior à de um metalúrgico pouco capacitado. A chave, então, para aumentar o salário de um trabalhador não passa pela severidade da legislação ou pelo rigor da fiscalização estatal, mas simplesmente pelo aumento de sua produtividade, pelo acréscimo do valor que ele, o trabalhador, adiciona à produção. Foi esta a fórmula que transformou o perfil da agricultura brasileira, colocando-a, graças às inovações tecnológicas e aos ganhos de produtividade trazidos pelo agronegócio, entre as mais competitivas do mundo.

Assim sendo, os benefícios garantidos aos trabalhadores pelo texto constitucional terminam por prejudicar a todos os agentes do sistema econômico, à exceção do trabalhador empregado. No entanto, mesmo esta exceção desaparece quando se considera que o trabalhador é, ele próprio, como bem lembra Mises, também um consumidor. Ele, como todos os demais consumidores, também sofrerá as conseqüências do aumento nos preços dos produtos em decorrência da necessidade de financiamento de todos esses benefícios. Boa parte dos empresários se verá impedida de contratar e, aqueles que o fizerem, contratarão apenas uma parcela do número de trabalhadores que contratariam caso não fossem obrigados a arcar com tantas obrigações trabalhistas.

São óbvios, então, os malefícios que uma legislação como a nossa trazem aos desempregados, talvez os maiores prejudicados. As tais normas que garantem os “direitos sociais” dos empregados terminam por funcionar como um impeditivo concreto à contratação. E em algumas situações, terminam por gerar o efeito oposto ao pretendido, como é o caso das restrições legais à demissão que, na verdade, restringem apenas as contratações.

O motivo de todas estas inconveniências está diretamente relacionado ao desprezo dos constituintes pelos mecanismos de mercado. Poderiam, seguindo os conselhos de Mises, ter flexibilizado as relações de trabalho, delegando maior poder aos termos dos contratos firmados entre cidadãos livres. Devolveria-se, assim, o poder de fixação dos níveis salariais às mãos dos consumidores. Aos empresários, como em qualquer economia de mercado, caberia apenas a tarefa de captar, interpretar e pôr em prática as ordens dos consumidores.

Outros artigos constitucionais também trouxeram conseqüências nefastas à economia e ao emprego brasileiros, em virtude da mesma aversão ao mercado. Os dispositivos constitucionais que tratam do investimento estrangeiro no país, por exemplo, impediram consideráveis ganhos de produtividade para as empresas e acréscimos na renda para o trabalhador. Isto ocorreu porque, como enfatiza Mises, tais resultados só podem vir a ocorrer se houver investimento – doméstico ou externo. A capacidade brasileira de investimento interno, no entanto, manteve-se nas últimas décadas – e mantém-se ainda nos dias de hoje, diga-se de passagem – bastante comprometida em virtude do baixo nível de poupança interna. Restaria, como saída, a poupança externa, que poderia desempenhar, se dadas as condições necessárias para tal, o mesmo papel que teve no desenvolvimento de inúmeros outros países. Infelizmente, não foi o que aconteceu, em virtude dos motivos que aponta Mises, nesta descrição que se encaixa perfeitamente à realidade da economia do país, principalmente nos idos de 1988:

[…] in many other countries the problem is very critical. There is no—or not sufficient—domestic saving, and capital investment from abroad is seriously reduced by the fact that these countries are openly hostile to foreign investment. How can they talk about industrialization, about the necessity to develop new plants, to improve conditions, to raise the standard of living, to have higher wage rates, better means of transportation, if they are doing things that will have precisely the opposite effect? What their policies actually accomplish is to prevent or to slow down the accumulation of domestic capital and to put obstacles in the way of foreign capital14.

Esta era – e continua a ser – a grande dificuldade do Brasil em acelerar seu desenvolvimento econômico. Ao mesmo tempo em que carecíamos de poupança interna, éramos hostis à poupança externa. Ressalte-se, porém, que ao longo da década de 1990 diminuíram os entraves e a hostilidade do Estado brasileiro em relação aos capitais estrangeiros graças algumas reformas liberalizantes que modificaram, inclusive, diversos artigos da Constituição Federal, por meio de emendas.

Uma dessas emendas constitucionais em particular, a que suprimiu do texto constitucional o artigo 171, em 1995, foi de vital importância para a reversão da imagem externa do Brasil e diminuição do risco inerente às operações estrangeiras no país. Este artigo era a síntese da má-vontade e da xenofobia dos constituintes em relação ao capital estrangeiro. Ele determinava, em seu parágrafo primeiro, que era permitido à lei conceder à empresa brasileira de capital nacional “proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis para o desenvolvimento do País”. E mais: estabelecia também que, sempre que um setor industrial fosse considerado “imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional”, poder-se-ia exigir, como pré-requisito necessário à exploração daquela atividade, que o controle da empresa estivesse em mãos nacionais. Era possível, também, estabelecer percentuais mínimos para a participação de “pessoas domiciliadas e residentes no país ou entidades de direito público interno” no capital da empresa. Por fim, o parágrafo segundo determinava que “na aquisição de bens e serviços, o poder público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional”. Se ainda houvesse qualquer esperança de sensatez econômica por parte dos nossos constituintes, esvaiu-se com esse artigo.

Em resumo, o que o artigo 171 da Constituição estabelecia era um tratamento de segunda classe ao capital estrangeiro; determinava que investidores externos estavam automaticamente excluídos de atividades que concernissem setores especiais aos olhos da burocracia. Sob este argumento, então, proibiram-se contratos de risco no setor petrolífero, foram expulsas companhias estrangeiras que se dedicavam à pesquisa mineral e abriu-se espaço para o estabelecimento de um sistema de proteção à empresa dita “nacional”. Tudo isso em prejuízo não apenas do investimento externo, mas principalmente dos trabalhadores e consumidores brasileiros, uma vez que o capital estrangeiro daqui afugentado certamente haveria de encontrar uma guarida mais hospitaleira e lá criar empregos e prosperidade, ao passo que os consumidores brasileiros continuariam a fazer parte de um sistema econômico não-concorrencial e cada vez mais distante do pleno emprego.
A Verdadeira “defesa do consumidor” e a livre-concorrência


Provavelmente o mais irônico de todo o anacronismo resultante da Assembléia Constituinte é que a pavimentação do inferno veio sempre acompanhada da promessa do céu. A “defesa do consumidor” era um dos princípios gerais escolhidos pelos constituintes para nortear a atividade econômica no país. Tal defesa, no entanto, estava alicerçada em paradigmas bem diferentes dos propostos por Mises, para quem:

(…) all the measures of interventionism by the government are directed toward restricting the supremacy of consumers. The government wants to arrogate to itself the power, or at least a part of the power, which, in the free market economy, is in the hands of the consumers15.

Parte-se, aqui, do pressuposto básico de que os consumidores são “os verdadeiros chefes” e que os empresários, em uma economia de mercado, mantêm-se por meio da satisfação dos anseios dos consumidores. É a eles, aos consumidores, que obedecem os empresários, quando participantes de um sistema de livre-concorrência. Portanto, quando o Estado interfere na maneira através da qual os empresários servem aos consumidores, quando o Estado busca modificar a forma de atuar dos empresários em um sistema de livre-concorrência, ele age de encontro à “supremacia dos consumidores”.

Para os constituintes, entretanto, os consumidores eram apenas mais uma categoria que precisava ser protegida pelo Estado dos “abusos do poder econômico”. Não foi outro o pensamento que também criou, para os trabalhadores empregados e empresas nacionais, condições especiais e proteção contra agentes econômicos considerados potencialmente danosos.

Assim sendo, a Constituição escolheu o caminho da coerção legal para “defender” os consumidores, por meio de recursos como o parágrafo 4º do artigo 173. Ele define que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. É este o item que deu as bases para a “modernização” da legislação antitruste brasileira, norteado os princípios que criaram a lei 8884/94. Foi esta a lei que, entre outras coisas, instituiu o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que instrumentalizou a ação legal contra a dominação de mercados e prejuízos à livre-concorrência.

Há, no entanto, um claro contraste entre a estratégia prescrita pela Constituição e adotada pelo CADE e aquela recomendada por Mises que, em diversas passagens de seu “As Seis Lições”, demonstra a falsidade da argumentação que considera que outros agentes econômicos são mais fortes que o consumidor. Ele lembra que, em sistema econômico de livre-concorrência, é o consumidor sempre o mais forte, o mais livre. Em uma dessas passagens, diz:

People believe that there are in the market economy bosses who are independent of the good will and support of other people. They believe that the captains of industry, the businessmen, the entrepreneurs are the real bosses in the economic system. But this is an illusion. The real bosses in the economic system are the consumers. And if the consumers stop patronizing a branch of business, these businessmen are either forced to abandon their eminent position in the economic system or to adjust their actions to the wishes and to the orders of the consumers16.

Se conhecessem e respeitassem os ensinamentos do economista austríaco, é provável que os constituintes de 1988 tivessem optado por um caminho diverso, mais parecido aquele aconselhado por Mário Henrique Simonsen, quando da publicação desta mesma lei que criava o CADE. Segundo Simonsen, “o grande antídoto contra os abusos de preços não são mais as leis antitrustes, mas a globalização dos mercados. Um fornecedor, ainda que domine 100% do mercado de um país, não tem como impor preços abusivos se os compradores dispuserem da alternativa de importarem produtos similares com tarifas aduaneiras reduzidas”17.

Em outras palavras, melhor que criar mais estruturas burocráticas e emaranhados legais para impedir abusos que dificultem a livre-concorrência seria abrir o mercado brasileiro à concorrência externa, eliminando os entraves à importação que tiram a competitividade dos produtos estrangeiros. Não é por acaso que ainda nos dias de hoje legislações antitrustes sejam um grande empecilho à criação de áreas de livre comércio como a ALCA.

No entanto, entre sacrificar os consumidores – tão carentes de representações formais quanto os pagadores de impostos – e satisfazer os bem representados e barulhentos grupos de pressão empresarial, os constituintes ficaram com a segunda opção.
Conclusão


O saudoso Roberto Campos disse uma vez que o texto aprovado pela Assembléia Constituinte de 1988 era “a culminância de uma década de erros. E talvez outra década fosse perdida para corrigi-los”18. E eis que se passou mais de uma década e meia, e ainda estamos longe de neutralizar todos os males originados ou amplificados pelos constituintes. É lícito hoje dizer que os continuados e veementes alertas de economistas liberais como Mário Henrique Simonsen e o próprio Campos estavam mais do que certos. O tempo provou que o anacronismo do texto não trouxe nem pode trazer nada além dos malogros do passado.

Os erros colossais dos constituintes, além de inchar as atribuições e tamanho da burocracia estatal brasileira, recomendando e determinando intervenções abundantes no sistema econômico ao mesmo tempo em que solapava por completo a liberdade individual em diversos âmbitos da esfera privada, também desviaram o Estado de sua atribuição natural, a única de todas que, para Mises, constitui sua “função legítima”: a “produção da segurança”.

Deste modo, não seria de todo despropositado atribuir também à Constituição de 1988 uma parcela considerável da responsabilidade pelo crescimento do banditismo e do crime organizado que têm feito os cidadãos de bem deste país – e em particular os do Rio de Janeiro – sentirem medo de desempenharem as mais cotidianas tarefas. Se algo a mais que déficits, atraso e demagogia ela nos legou, foram os Fernandinhos Beira-Mar e Elias Malucos da vida.

A reversão deste quadro e dos erros da Carta Magna passa também pelos ensinamentos de Mises. Ele já alertava, 30 anos antes da promulgação da Constituição de 1988, para o poder de que idéias, boas e más, dispunham. Dizia ele:

Everything that happens in the social world in our time is the result of ideas. Good things and bad things. What is needed is to fight bad ideas. We must fight all that we dislike in public life. We must substitute better ideas for wrong ideas. We must refute the doctrines that promote union violence. We must oppose the confiscation of property, the control of prices, inflation, and all those evils from which we suffer19.

De fato, o caso da Constituinte de 1988 é uma prova cabal do poder das idéias. Neste caso em particular, das más idéias. É um caso que mostra os prejuízos da opção pelo obscurantismo, pelo voluntarismo e pela demagogia; enfim, a opção pelo preconceito em relação a qualquer limitação científica e racional à vontade imediata e às aspirações de bem-estar da sociedade.

O problema não foi à época, como também não é agora, a falta de idéias. Boas idéias existem, há muito tempo. A obra de Mises é apenas uma das boas fontes. O que falta ao Brasil, no entanto, são mais pregadores e mais seguidores das boas idéias. Não é o credo liberal que está em crise, mas seus crentes, reduzidos em número e carentes de força política. É preciso, como recomenda Mises, substituir as idéias erradas por melhores. O que não podemos, é continuar a exercitar e estimular a incapacidade tipicamente brasileira de aprender com experiências passadas e escolher os bons pregadores.

Tivéssemos à época escutado os ensinamentos de um Mises, de um Hayek, de um Friedman, de um Bástiat, ou mesmo um Roberto Campos, um Simonsen, um Merquior ou um Meira Penna, certamente estaríamos em outra situação que não esta de inflação de emendas constitucionais a tentar remediar vícios de origem, injetando doses homeopáticas de racionalidade em um doente condenado a conviver com o mal crônico-degenerativo da demagogia populista.

Fonte: Instituto Liberal
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Samael
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Mensagem por Samael »

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RicardoVitor
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Re.: O que acharam do meu avatar?

Mensagem por RicardoVitor »

Samael, tenho uma curiosidade: Já leu José Guilherme Merquior? O que acha do pensamento desse autor?
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Samael
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Re.: O que acharam do meu avatar?

Mensagem por Samael »

Nunca li, Ricardo. Só conheço por alto. Daí, prefiro não lançar julgamento de caso. Mas por que a pergunta?

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RicardoVitor
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Re.: O que acharam do meu avatar?

Mensagem por RicardoVitor »

Esses dois gênios merecem estar no mesmo tópico:

O argumento liberal

José Guilherme Merquior
O argumento liberal
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985


O cerne do argumento liberal é a velha lição de Montesquieu: não basta decidir sobre a base social do poder – é igualmente importante determinar a forma de governo e garantir que o poder, mesmo legítimo em sua origem social, não se torne ilegítimo pelo eventual arbítrio do seu uso. Na raiz da posição liberal se encontra sempre uma dose inata de desconfiança ante o poder e sua inerente propensão à violência. Por isso, o primeiro princípio liberal é o constitucionalismo, isto é, o reconhecimento da constante necessidade de limitar o fenômeno do poder. O mundo liberal é uma ordem nomocrática – uma sociedade colocada sob o império da lei, onde todo poder possa ser experimentado como autoridade e não como violência.

Mas o constitucionalismo, condição necessária da ordem liberal, não chega a ser sua condição suficiente. Uma oligarquia liberal não é, hoje, um princípio de legitimidade, embora o tenha sido em tempos como a Inglaterra whig ou o Brasil da Primeira República. É que, nos nossos dias, não há legitimidade fora do ideal democrático, o que supõe a universalidade da cidadania, dos direitos políticos, e não apenas – como na república de tipo whig – a dos direitos civis. Não é só a segurança do indivíduo que se consagra; é também o seu direito de participação política (para não falar de certos direitos sociais). Até nos socialismos de estado, o ideal democrático nunca é negado, é meramente mediatizado pela preocupação – errônea e fatal – de superar as “liberdades burguesas”, supostamente falsas, por meio de um nivelamento democrático dirigido pelo partido-estado. Por conseguinte, para a vigência de uma ordem liberal moderna faz-se mister a conjunção de constitucionalismo e democratização da cidadania.

Por trás dessa universalização da cidadania, reponta uma tardia vitória de Aristóteles sobre Platão. Entre esses dois filósofos lavrou um dos dilemas políticos mais clássicos da Antiguidade: a alternativa entre o governo da sabedoria ou o governo da lei. Para Platão, os homens deviam ser governados pelos sábios; a república ideal é o reino dos filósofos. Para Aristóteles, essa nobre aspiração repousa num erro, o erro de julgar que a diferença de qualidade entre os homens possua uma extensão e constância capazes de justificar a entrega permanente do poder aos melhores dentre eles. A sabedoria, ao ver do Estagirita, não é um atributo distribuído de forma tão nítida ou tão rígida nas coletividades humanas; e porque não o é, não é razoável preferir o governo dos sábios, da casta filosófica, ao império da lei, que já prefigura a moderna preocupação liberal com a necessidade de limitar o poder. Assim Aristóteles, sem ser democrata, ao refutar o elitismo filosófico de Platão, delineou um dos principais postulados liberais de inspiração, em última análise, democrática.

Porém Aristóteles, tanto quanto Platão, ainda estava bem longe da moral basilar do liberalismo: o individualismo moderno, produto da complexa interação de processos históricos posteriores ao mundo clássico, a começar, naturalmente, pelo cristianismo e o capitalismo. E o individualismo moderno pode ser concebido como a admissão, no nível ético-político, do eclipse, ou colapso, daquele summum bonum em que a moral clássica (e clássico-cristã) via o objeto e a meta do bem viver. Pois o substrato ético da ordem liberal moderna seria a dispersão do bem comum – a tendência ao empirismo em moral, cuja encarnação mais característica viria a ser o utilitarismo.

A doutrina liberal conheceu pelo menos três fases principais. Locke e Montesquieu são, por assim dizer, mais ancestrais que fundadores, porque sua teorização precede o advento da revolução industrial e da Revolução Francesa, e o liberalismo cresceu como ideologia profundamente marcada por ambas. O que Locke e Montesquieu legaram ao pensamento liberal foi precisamente aquele postulado: o imperativo da limitação do poder. Locke o argüiu do ângulo da legitimidade, que desde então passou a repousar no consentimento individual (majority rule, minority rights); e Montesquieu perseguiu o mesmo alvo por meio da análise da mecânica dos poderes. Mas o primeiro ato da ópera liberal, após essa imprescindível ouverture, é o que se estende de Benjamin Constant (1767-1830) a Herbert Spencer (1820-1903).

De Constant a Spencer, floresce o paleoliberalismo. Seu maior mérito foi ter acrescentado à teoria da limitação do poder um conceito decisivamente ampliado de liberdade. À liberdade clássica, de participação pública no poder, somava-se o pleno reconhecimento da liberdade moderna, ou livre exercício privado de agires e fazeres conforme a inclinação de cada um. Em suma: à defesa da liberdade política, baseada na autonomia do indivíduo, cumpria aditar a proteção da liberdade civil, alicerçada na liceidade de suas ações. A inserção dessa perspectiva no tema da limitação do poder é de uma clareza cristalina. Do fato de que o poder legítimo procede de todos, argumentava Constant, não se segue que ele possa se estender a tudo. Logo, é preciso limitar o poder. A Spencer caberá (num grau inferior de sofisticação teórica) descrever a evolução política como o triunfo progressivo desse princípio. Ele viu a história da Europa avançada como a vitória da limitação do poder na esfera religiosa (liberdade de confissão) e, num segundo passo, na esfera econômica (laissez-faire).

Em compensação, esse tipo de liberalismo se mostraria singularmente cego ante a dimensão do estado. Nem Constant nem Spencer souberam ver o que viu Tocqueville: que o crescimento da liberdade civil foi acompanhado, e na realidade pressupôs, uma tremenda expansão da regulamentação da sociedade pela lei, isto é, pelo estado enquanto foco emissor de direito. O robustecimento da sociedade civil não ocorreu contra o estado, e sim sob a sua égide. De modo que, aí pela volta do século, o exorcismo do estado, refrão da política spenceriana, já era sobretudo um arcaísmo sociológico. O evolucionismo acertara em cheio ao pintar o progresso como superação do militarismo pelo industrialismo (do que Constant chamara “espírito de conquista” pelo “espírito de comércio”), porque nem mesmo a persistência do fenômeno bélico (na guerra franco-prussiana, nos conflitos balcânicos e, finalmente, na “grande guerra dos homens brancos”, a catástrofe de 1914-18) desmentia, no âmbito europeu, a obsolescência do imperialismo de cunho clássico e dos valores marciais da cultura. Mas o erro do paleoliberalismo estava em confundir essa tendência com um ilusório perecimento do estado.

Bem antes que a ideologia paleoliberal declinasse, uma outra fase da história do liberalismo começou: a fase social-liberal. O centro da nova perspectiva seria a distinção entre liberdade social e liberdade associal, devida ao inglês L. T. Hobhouse, primeiro lente de sociologia na universidade fabiana, a London School of Economics. A liberdade social, baseada na autodisciplina, é algo a ser desfrutado por todos os membros da sociedade; e consiste “na liberdade de escolher linhas de ação que não envolvem dano a outrem”. Há exatamente cem anos, o filósofo neoidealista oxoniano T. H. Green redefiniu a liberdade como algo valioso apenas na medida em que seja meio para um fim – o bem comum.

Essa restauração da idéia de bem comum tinha endereço nitidamente antiutilitarista. E seu sabor potencialmente antiindividualista não deixava de brigar com a posição daqueles que, como Constant ou, sobretudo, John Stuart Mill, se haviam preocupado com padrões de excelência moral e intelectual, sem, no entanto, abandonar a ótica individualista (tanto Constant quanto Mill tinham perfilhado a ética humanista de Wilhelm von Humboldt, o ideal de uma Bildung ao mesmo tempo moralizadora e emancipatória).
Mas o desvio decisivo em relação à prática política estava na ultrapassagem dos dogmas antiestatistas dos paleoliberais. Green sustentava que a coerção estatal não é o único obstáculo à liberdade – barreiras econômicas e sociais também o são, o que torna legítimo, para removê-las, o recurso à ação do estado. De certo modo, Mill preludiara esse social-liberalismo ao aceitar a legitimidade da intervenção previdenciária do estado (que, aliás, nunca fora recusada por clássicos como Adam Smith ou Bentham); mas Mill permanecera contrário à administração permanente do bem-estar coletivo pelo estado, e fiel à concepção minimalista deste último. Os sociais-liberais do fim do século, como Green e Hobhouse, ou os economistas alemães da Verein für Sozialpolitik, como o influente Gustav Schmoller, ficariam bem mais perto de um “liberalismo de estado”. Liberalismo de estado que, no caso desses sociais-liberais ingleses, prefigura o ânimo igualitário do credo “liberal” no sentido norte-americano dos nossos dias.

A rigor, a época social-liberal pode ser colocada entre Mill e os liberals rooseveltianos – ou melhor, entre Mill e Keynes, já que este foi seu grande economista, o diagnosticador e terapeuta das insuficiências do laissez-faire. De resto, a meia distância entre Mill e Keynes, o pensamento social-liberal se veria reforçado pela emergência de uma importante dissociação: o divórcio de liberalismo e otimismo. De Constant a Spencer, o liberalismo vivera encharcado de otimismo histórico, persuadido de que a desimpedida ação dos indivíduos levava sempre à colaboração e ao progresso harmônico do gênero humano. Não é que faltassem, propriamente, pessimistas. Ninguém menos que Mill foi um insigne arauto dos receios causados pela continuação descontrolada do crescimento econômico; e antes de Mill, Tocqueville concluíra que a conjunção da igualdade com a liberdade nada tinha de fatal. Mas geralmente o tom do liberalismo, estimulado pelo magnífico surto de prosperidade do meio do século, era bem otimista.

Dela se separariam, porém, os grandes liberais atuantes ao tempo da Grande Depressão, Lord Acton ou Benedetto Croce. Repudiando a visão rósea do liberalismo clássico, eles reconheceram que a “história da liberdade” (expressão de Acton) é inseparável do conflito. O Kulturpessimismus finissecular deixou sua marca na tradição liberal. Ora, essa nova desconfiança ante a história era basicamente propícia ao dirigismo socioeconômico. Se a mão invisível da Providência não mais assegurava por si só a harmonia entre os homens, então alguma medida de intervencionismo estatal se impunha – do contrário, a própria liberdade estaria em perigo. Esse corolário ainda não é visível num liberal gladstoniano como Acton; mas já o é em Croce, que emergirá da Segunda Guerra Mundial como adversário do liberalismo econômico.

Do predomínio da ideologia social-liberal na era keynesiana (1930-1973) resultou a entronização política daquilo que Raymond Aron chama de “síntese democrático-liberal”: o complexo de direitos civis, políticos e sociais acatados pelas democracias industriais avançadas, e que combina várias liberdades, nos dois sentidos básicos de participação e não-impedimento. Nascida de uma dialética fecunda entre o liberalismo clássico e a crítica socialista, a síntese democrático-liberal não se define por uma noção de liberdade, mas sim por um permanente diálogo social, no qual os grupos interlocutores jogam com diferentes idéias da liberdade ou das liberdades[1]. Preciosa síntese sociopolítica, ainda tranqüilamente insuperada, no mundo contemporâneo, em sua capacidade de assegurar direitos e liberdades. Quem duvida disso, e especialmente que lhe julgue superior a “construção do socialismo” nas ideocracias grotescamente intituladas “democracias populares”, deveria prestar atenção às reivindicações do Sindicato Solidariedade, e reconhecer que as conquistas dos trabalhadores poloneses na Carta de Gdansk representam liberdades corriqueiramente usufruídas no Ocidente – exceto onde regimes autoritários tenham violado os princípios liberal-democráticos.

Essa menção é bastante para refutar o que Norberto Bobbio tão bem denunciou como falácia genética na argumentação antiliberal do marxismo. Os marxistas acusam o liberalismo de não ver que sua cara liberdade não passa de um privilégio de classe, conquistado pela burguesia na época de sua rebelião contra a sociedade feudal. Porém, admitir essa sua origem de classe absolutamente não nos obriga a pensar que as liberdades “burguesas” não tenham, hoje, um valor e alcance universais. A gênese de uma instituição social é uma coisa; sua função e sentido presentes, bem outra. Por isso é que os trabalhadores poloneses lutam pelo que eram, ainda ontem, liberdades civis e políticas defendidas por burguesias à procura de emancipação.

Qual seria a terceira fase da ideologia liberal? Nesses últimos anos, a voga do antikeynesianismo e a viragem direitista na política anglo-saxônica deram novo lustre ao neoliberalismo. Seu maior profeta, o austro-inglês F. A. Hayek, propõe um verdadeiro desmantelamento do social-liberalismo, um retorno em regra ao estado mínimo e à convicção de que o progresso deriva automaticamente de uma soma não-planejada de iniciativas individuais. Quietismo governamental no plano econômico e simples legalismo no plano político-social. Pois a lei, para Hayek, se caracteriza pela sua neutra generalidade, equivalente à ausência de coerção social no sentido de uma opressão de classe. No entanto, observa Aron, muitas vezes a generalidade da lei não elimina seu aspecto eventualmente impositivo, do ponto de vista de dados grupos sociais, para os quais, em certas circunstâncias, a norma legal pode ser um poder ilegítimo. Afinal, as leis, por mais gerais que se entendam, exprimem com freqüência interesses particulares.

Uma coisa é certa: a utopia liberal-conservadora de um puro e simples reino da legalidade dificilmente atenderá aos impulsos democratizantes das sociedades industriais de modelo liberal – e satisfará menos ainda às exigências sociais dos países, como o Brasil, onde a “síntese democrático-liberal” permanece incompleta. O neoliberalismo só confia no jogo do mercado. Mas nós sabemos que o mercado, conquanto seja instrumento indubitavelmente necessário da criação de riqueza e do desenvolvimento econômico intensivo, nem por isso constitui uma condição suficiente da liberdade moderna, porque não é capaz de gerar, por si só, toda uma série de requisitos e oportunidades para o exercício mais pleno e mais significativo da individualidade de muitos. Se suprimir o mercado é ferir de morte o substrato material das liberdades modernas, deixar tudo entregue ao seu império é restringir significativamente o livre gozo dessas mesmas liberdades a minorias – e a minorias compostas de privilegiados pelo berço, e não só pelo mérito.

O neoliberalismo é, portanto, essencialmente, a reprise do paleoliberalismo; e como verificamos as deficiências deste último em matéria de visão histórica e consciência social, parece inevitável preferir, ao retrocesso neoliberal, uma retomada criadora do social-liberalismo.

Cada uma das grandes ideologias políticas contemporâneas – conservadorismo, liberalismo, socialismo – se encontra hoje afetada de não pequeno grau de desmoralização. Por isso Leszek Kolakowski foi particularmente sagaz ao extrair de cada uma delas o seu núcleo de razão e sabedoria. Em Como ser conservador, liberal e socialista, ele adverte que os conservadores estão certos ao sustentar que nem todos os males humanos têm causas sociais, sendo, pois, elimináveis por simples atos de engenharia social; que os liberais têm razão em pretender que o propósito fundamental do estado deve ser a segurança do cidadão, e que o sistema social não deve ser refratário à iniciativa individual; e que, finalmente, a recusa, pelos socialistas, do pessimismo antropológico dos conservadores, de modo a justificar a realização de reformas sociais, onde e quando necessárias, também é perfeitamente válida.

Gostaria de partir desse lúcido ecletismo de Kolakowski para concluir com uma importante distinção entre o conservadorismo e o liberalismo. Fundamentalmente, essas duas ideologias diferem porque, para o conservador, tanto a autoridade estabelecida quanto o statu quo social tendem a ser sagrados, ao passo que para o verdadeiro liberal nunca o são. Assim como o fundo da ética liberal é o utilitarismo, o fundo de sua epistemologia política é o empirismo, a disposição a submeter a autoridade e a ordem ao teste da experiência, sem sacralizá-las a priori.[2]

Mas há uma outra diferença, atinente às respectivas variedades de pessimismo. Conforme relembra Kolakowski, a visão conservadora obedece a um (até certo ponto) justificado pessimismo antropológico, que evita a ilusão de encarar a política, e as mudanças sociais por ela suscitáveis, como panacéia. A política, ou a revolução, nunca pode resolver tudo, porque o problema humano não é apenas “social” (é nesse sentido, é claro, que Freud foi um conservador). Porém, conforme vimos no início deste ensaio, na raiz da ótica liberal, existe um outro “pessimismo”: a idéia, prudente e realista, de que, quando no poder, todos os homens são, em princípio, suscetíveis de abusar dele – e daí a absoluta necessidade de controlar os governantes, limitando-lhes os poderes. Ora, esse axioma, a que James Mill deu uma formulação epigramática, ao escrever que todos os governantes deveriam, até segunda ordem, ser considerados uns patifes, não encerra, como a crença conservadora, um pessimismo propriamente quanto ao homem, e sim quanto à psicologia do poder.

Talvez por esse motivo, o liberalismo é, das nossas três grandes ideologias políticas, a única a levar profundamente a sério o ideal democrático no sentido rigoroso da palavra, de governo do povo. Os socialismos de estado se querem democráticos por serem igualitários, mas ninguém se atreveria a dizer que pratiquem a democracia como forma de governo – exatamente aquilo que a democracia, antes de tudo, significa. Por conseguinte, é puro confusionismo afirmar que a democracia pode ser “liberal” ou “popular”. Enquanto democracia liberal é realmente democracia, variando apenas no grau de seu teor democrático, a popular, na prática, não o é. O argumento liberal não precisa fugir à realidade; mas o antiliberalismo socialista só consegue se estribar num problemático ideal, promessa continuamente refeita e adiada de um paraíso da liberdade.

Resta escrever uma palavra sobre a sorte dessa democracia sans phrase que é a liberal. François Borricaud, em recente e oportuna análise[3], distinguiu, nas duas paixões democráticas – as paixões de Rousseau: liberdade e igualdade – duas variantes históricas. A liberdade conhece uma versão liberal e uma versão libertária; a igualdade, por sua vez, uma versão meritocrática e outra igualitária, no sentido de niveladora. O que aconteceu, na história da mentalidade ocidental, foi que, por volta de 1950 ou 60, predominavam a variante liberal da liberdade e a versão meritocrática da igualdade. Mas de lá para cá, e ao sabor do gauchisme eclodido em 1968, tendem a prevalecer a versão libertária da liberdade e a variante igualitária da igualdade.

Infelizmente, se essa segunda configuração ideológica viesse a triunfar em definitivo, é possível que o resultado pusesse em risco os próprios valiosos ideais que a inspiraram: a liberdade e a igualdade. Pois o horizonte natural a que tende o liberalismo à outrance é a anarquia, e esta costuma levar a reações despóticas (as situações anárquicas acabam sempre dando razão a Hobbes); e os requisitos operacionais do igualitarismo nivelador induzem a um controle global, um centralismo, de conseqüências, ainda que não de intenções, inescapavelmente liberticidas. Tal é o maior desafio que o moderno liberalismo tem e terá de enfrentar. Do comunismo, a ordem liberal só precisa temer a força, não o poder, tão desgastado, de persuasão. E, todavia, em nossas sociedades cada vez mais permissivas e reivindicatórias, ela não está completamente a salvo da perversão interna de seu próprio ânimo: o velho, nobre espírito de liberdade e igualdade.


[1] Ver Raymond Aron, Estudos Políticos (trad. de Sergio Bath; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1980), especialmente p. 221-51, e minha introdução (pessimamente traduzida do francês por autor desconhecido) ao mesmo volume, seção V.
[2] Sobre essa conexão liberalismo/empirismo, ver Celso Lafer, Ensaios sobre a Liberdade (S. Paulo: Perspectiva, 1980), cap. 3, seção 4.
[3] Le Bricolage Idéologique (Paris: P. U. F. , 1980).

http://jgmerquior.motime.com/
Editado pela última vez por RicardoVitor em 24 Fev 2007, 13:10, em um total de 1 vez.
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Re.: O que acharam do meu avatar?

Mensagem por Samael »

Pelo que eu saiba, ele possui dois ensaios muito bem recomendados nos cursos humanas. Um deles é acerca de Foucault e outro acerca da legitimidade jurídica, acho.

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Re.: O que acharam do meu avatar?

Mensagem por Samael »

Aliás, dando uma olhada nas idéias por cima que ele levanta nesse ensaio que você postou, Ricardo, eu gostaria de ver Merquior dissertando sobre o debate Estado de Classe x Estado de Direito.

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RicardoVitor
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Re: Re.: O que acharam do meu avatar?

Mensagem por RicardoVitor »

Samael escreveu:Nunca li, Ricardo. Só conheço por alto. Daí, prefiro não lançar julgamento de caso. Mas por que a pergunta?


Esse autor costuma ser um incômodo para ambos os lados, liberais e socialistas.
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Re.: O que acharam do meu avatar?

Mensagem por Samael »

Imagino. Me parece um especialista em História das Idéias, coisa que marxistas de carteirinha detestam em absoluto.

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André
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Re: Re.: O que acharam do meu avatar?

Mensagem por André »

RicardoVitor escreveu:
Samael escreveu:Nunca li, Ricardo. Só conheço por alto. Daí, prefiro não lançar julgamento de caso. Mas por que a pergunta?


Esse autor costuma ser um incômodo para ambos os lados, liberais e socialistas.


Lí.Tem coisas que eu concordo outras que discordo.Mas a discordancia não é tanto na analise da realidade,ou da história das correntes, mas no carater de algumas propostas ou visões.

Mas é leitura interessante.
Visite a pagina do meu primeiro livro "A Nova Máquina do Tempo." http://www.andreteixeirajacobina.com.br/

Ou na Saraiva. Disponivel para todo Brasil.

http://www.livrariasaraiva.com.br/produ ... 0C1C301196


O herói é um cientista cético, um pensador político. O livro debate filosofia, política, questões ambientais, sociais, bioética, cosmologia, e muito mais, no contexto de uma aventura de ficção científica.

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betossantana
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Re.: O que acharam do meu avatar?

Mensagem por betossantana »

A-haaaaaaaaaaaaaa!!! Produtividade marginal!!! Poupança interna!!! Grupos de pressão!!! AGORA eu sei o que o Cabeção lê.

Mas os filhos da puta do Instituto Liberal do primeiro texto deixaram passar em brancas nuvens o fato da Constituição brasileira ser em grande parte cópia das Constituições da Europa Continental, o Brasil não INVENTOU tudo aquilo, pelo contrário, muito raramente há originalidade na legislação brasileira, para o bem e para o mal. Por quê? Por quê, pergunto? Porque são filhos da puta.

Aliás, muito interessante esse Merquior!! É tão PARADOXAL que você goste dele, RicardoVitor, o que está ACONTECENDO com você, final?

Bjs
É um problema espiritual, chupe pau!

Trancado