Bailes gospel em que se tocam
todos os ritmos viram mania entre
evangélicos no Rio e em São Paulo

BIG BROTHER JESUS
(MC F. Reis)
Cuidado, meu irmão
Pra não ir pro paredão do diabo
Cuidado pra não ser eliminado
Da casa de Deus
Por causa do pecado
Saem as "egüinhas" e "cachorras" dos bailes funk, entram citações bíblicas e loas à virgindade. Nos bailes gospel não tem bebida alcoólica nem cigarro, tem Kelly Krenty (na foto) no papel de Kelly Key e, como é do estilo, muitos versos simples. "Tirei o piercing da barriga / Me livrei da minissaia / Eu encontrei Jesus / E não vivo mais na farra", entoa a moça, de 21 anos. Embalada pelo mais barulhento batidão funk, Krenty (sobrenome artístico de Kelly Regina Flores Rodrigues) faz a juventude evangélica pular nas festas em que se apresenta na Baixada Fluminense. A cantora é a mais nova sensação de bailes que vêm conquistando cada vez mais adeptos entre jovens e adolescentes que seguem os passos de Jesus em ritmo de funk, pagode, rap, forró, soul music, samba e outros estilos musicais até pouco tempo atrás execrados no meio evangélico. Os eventos maiores chegam a reunir 5.000 pessoas numa única noite. O fenômeno, que se alastrou pelo Rio de Janeiro e por São Paulo, com bailes realizados semanalmente nos próprios templos ou em clubes alugados pelas igrejas, já chegou também a outras capitais, como Brasília, Salvador, Vitória e Belo Horizonte.
O ambiente lembra uma boate como outra qualquer: globo espelhado, canhões de luz, estroboscópio, fumaça e, no caso dos eventos mais produzidos, chuva de bolas coloridas. Tem até lounge, como no templo-boate da Igreja Celular Internacional, seita pentecostal que arrendou um clube em Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro, para celebrar cultos e realizar, a cada dois meses, seu baile evangélico. O visual dos freqüentadores também é o mesmo de qualquer tribo urbana juvenil: rapazes tatuados, com brinco, boné e roupas largas, moças de calça justa (mas não muito) e maquiadas (idem). Também fazem sucesso adereços como pulseiras e cordões fosforescentes, muito usados em bailes funk. Mas a semelhança pára aí. O código de conduta é rígido e, se alguém sai da linha, é repreendido por seguranças ou pelos próprios artistas. "No funk, se a pessoa não tomar cuidado, dá um rebolado mais ousado e se insinua para alguém. A gente está na pista para corrigir isso", diz Kelly Krenty. A recém-convertida Natalin França da Silva, 26 anos, que há dois meses trocou as pistas dos bailes funk na Favela da Rocinha e em boates da Zona Sul do Rio pela noite evangélica, não reclama das restrições. "É até melhor não ter bebida alcoólica, porque no dia seguinte você acorda bem", afirma. Difícil é fazer com que todos sigam à risca as regras do baile. "Tem de respeitar, Jesus está vendo", diz o estudante Demétrio Dworak, com um sorriso maroto.
O que fez os evangélicos incorporar estilos musicais que sempre foram condenados por eles, como o funk (geralmente associado à violência do tráfico de drogas nas favelas) e o forró (ritmo do bate-coxa por excelência), foi o interesse em um segmento que as religiões têm dificuldade de conquistar: os jovens. "As igrejas tentam falar uma linguagem antenada com a visão de mundo da garotada", afirma a antropóloga Márcia Leitão Pinheiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que passou mais de dois anos freqüentando bailes gospel para escrever uma tese de doutorado sobre o tema. Na condição de religião que mais cresce no país (seus seguidores passaram de 9% da população, em 1991, para 15,4%, em 2000, pelo censo do IBGE), as igrejas evangélicas perceberam que têm de se manter em sintonia com uma fatia expressiva de seu rebanho – jovens e adolescentes totalizam 4,8 milhões de fiéis pelo Brasil, segundo dados do Censo 2000 sobre a população de 15 a 24 anos de idade.
A noitada gospel começou a ganhar força há pouco mais de dois anos, quando a equipe de eventos Gospel Night, ligada à igreja Projeto Vida Nova, do subúrbio do Rio, lançou um CD com cânticos evangélicos remixados com batida funk. "Nossa primeira tentativa de promover uma festa nesse estilo, em 1998, não deu muito certo. Só apareceram quatro pessoas, e mesmo assim porque fomos chamá-las na rua. Mas, depois do CD, o negócio tomou outra proporção", conta o DJ Marcelo Araújo, um dos pioneiros da noite gospel. Hoje, são pelo menos dez festas por fim de semana só no eixo Rio–São Paulo, sem contar as que ocorrem esporadicamente em outras capitais. As festas não chegam a gerar cifras muito expressivas, já que o ingresso barato e o veto às bebidas alcoólicas não contribuem para o movimento do caixa, mas começam a fomentar uma série de atividades entre os fiéis, como programas em rádio e TV e até sites especializados em divulgar a badalação noturna evangélica.
Além disso, o fenômeno vem conquistando espaço na indústria fonográfica evangélica, até então hostil aos novos ritmos. Uma das grandes gravadoras desse segmento, a Gospel Records, possui em seu cast artistas de rap, sertanejo e samba gospel. E um de seus campeões de venda é justamente um dos mais badalados artistas da night gospel, o rapper DJ Alpiste, que chegou a vender 100.000 cópias de um dos CDs lançados. "O mercado fonográfico gospel melhorou muito de dois anos para cá", comemora o DJ. Os artistas que ainda não conseguem traduzir em vendas o sucesso que fazem nas pistas de dança dizem não se importar, pois para eles o mais importante é levar adiante a palavra do Senhor. Diz Kelly Krenty: "O fundamental para mim é saber que eu sempre terei sucesso com o Pai".
