Debate com Malê de Balê sobre Liberdade e Islã
Malê de Balê é brasileiro convertido ao Islã e estudioso da religião muçulmana.
Mensagens trocadas originalmente no Fórum Religião é Veneno no Forumnow, entre o fim de 2003 e o início de 2004.
Algumas mensagens constituintes do debate não puderam ser recuperadas enquanto outras foram parcialmente apagadas pelo Forumnow.
Postado em 2/12/2003 09:50:00
Malê de Balê escreveu:Todos os louvores para Allah, o Senhor dos Mundos,
Salaam a todos, salaam Acauan,
Parabéns pela percepção do momento correto de começar um tema, respeitando o mês de Ramadan. A cortesia é algo muito valorizado no Islam, e é essencialmente a habilidade de reconhecer a necessidade do outro.
Acauan escreveu:Salve Malê,
Espero que seu Ramadã tenha sido generoso para você e os seus.
Malê de Balê escreveu:Insha´llah poderemos esclarecer este tema, sem fazer falsas concessões a pretexto de sermos politicamente corretos. Começando.
3. O Islã pode se conciliar com os principais valores do Ocidente, tais como democracia, liberdade de pensamento e economia de mercado?
Conciliar não. Para o muçulmano, ele pode aprimorar. A questão é que os pretensos valores ocidentais são pseudo universalismos.
Acauan escreveu:Tenho pouco a acrescentar aos seus comentários anteriores, mas aqui começam os pontos de discordância.
Os valores primordiais do Ocidente são o reconhecimento do indivíduo, o respeito pela sua liberdade, pelo seu direito de fazer o que bem quiser de sua vida, dentro dos limites da lei e dentro destes limites buscar a prosperidade material como fruto de seu trabalho.
Creio que estes são valores universais sim, não acho que um tuaregue não valorize a liberdade, que um mercador sírio não ambicione o sucesso financeiro ou que mesmo um aluno de Madrassa paquistanesa não se reconheça como pessoa individual e queira que sua individualidade seja reconhecida e respeitada pelos demais.
Você pode ter pensado “mas o Islã não nega nada disto”, se pensou, é uma amostra de que a universalidade destes valores não é tão falsa assim.
Malê de Balê escreveu:Acontece que o conceito de livre-mercado original de Smith foi abandonada em favor de uma função reguladora do Estado na economia.
Acauan escreveu:O liberalismo original de Smith foi mais modernizado do que abandonado, é o que se conclui da obra de Friedrich Hayek, um liberal suficientemente moderno.
A defesa da função reguladora do Estado na economia é fortemente Keynesiana, mas é aceita apenas como um mal necessário temporariamente por teóricos como Milton Friedman.
No mais, a essência de “A Riqueza das Nações” é que a prosperidade é produto da melhor combinação entre liberdade e trabalho, o que até hoje não se provou falso.
Malê de Balê escreveu:A livre iniciativa por fim precisa de limites, a livre concorrência é uma utopia, a competição perfeita, no sentido de ofertantes paralelos que não interferem entre si não existe, e o mercado não tende necessariamente ao equilíbrio.
Acauan escreveu:Os mercados não têm que ser perfeitos para funcionar e no geral mercados imperfeitos com alto grau de auto-gerência têm se mostrado mais eficientes do que seus similares submetidos a regulamentações externas excessivas.
Apontar a inexistência real da livre concorrência é como dizer que as órbitas dos planetas são elípticas apenas como modelo ideal, mas que não existem órbitas verdadeiramente elípticas, como não existem mercados que tendem ao equilíbrio. Ambas as afirmações verdadeiras, mas o modelo de Kepler é suficientemente bom e até a hoje não surgiu modelo melhor. O mesmo ocorre com a teoria dos mercados.
Malê de Balê escreveu:Daí se mostra justificada a interferência da shariah na economia.
Acauan escreveu:Malê, a shariah pode ser justificada como instrumento de regulamentação da economia exclusivamente pela fé religiosa, mas nenhum pensamento econômico baseado em fatos estatísticos referenda sua conclusão.
Malê de Balê escreveu:Mas isso não basta. A troca de dinheiro por dinheiro, presente na economia monetária de forma cada vez mais intensa, e da qual ela parece depender cada vez mais, é um recurso negado pelo Islam, não por estar contra uma economia de mercado, mas por, dentro da shariah, não constituir um mercado real (na prática, os juros sempre existiram nos países islâmicos, mas de forma limitada, um pouco como o álcool é tolerado quando em situações de emergência). Isso não nega a necessidade do lucro, que é de natureza distinta. Um banco islâmico não empresta dinheiro, mas torna-se um sócio temporário de um empreendimento, ou um intermediário na compra de um bem. Embora muito possam dizer que os dois, no final das contas, se equivalem, e isso é verdade a ponto da maior parte das operações financeiras vigentes poderem permanecer com ajustes, as consequências para a relação das duas partes muda drasticamente quando uma delas se aliena do bem ou direito da operação em prol dos juros descompromissados.
Acauan escreveu:Resumindo, o capital é o motor da economia e os juros são a remuneração do capital. Sem juros, sem investimento, sem investimento sem crescimento econômico, sem crescimento econômico pobreza certa.
Não há como fugir, tanto que você mesmo admite que o Islã tem que criar subterfúgios para contornar regras que se seguidas a risca tornariam o mundo muçulmano ainda mais pobre do que já é.
Malê de Balê escreveu:Até que ponto um sistema econômico pode suportar essa dependência é algo para se investigar, mas me parece claro a ponto de discutir com quem desejar que isso é uma anomalia mercantil. Todos o bem realizado pela modernidade poderia ter existido sem esse recurso, e muito do mal atual deriva dele.
Acauan escreveu:Você está deixando seu pensamento moral religioso contaminar seu raciocínio econômico.
Para que haja crescimento econômico e prosperidade social, é preciso que os níveis de poupança sejam suficientes para sustentar os investimentos necessários. Os juros são fator preponderante nesta dinâmica.
A idéia do agiota de dedos longos se cruzando no gesto de amealhar é um estereótipo tão antigo quanto inválido em economia.
Malê de Balê escreveu:O livre pensamento, no que me consta, e já chegamos a mencionar isso, é uma invenção ocidental (Já voltamos ao vocabulário convencional) porque a repressão ao pensamento também é.
Acauan escreveu: Em parte é correto, só que o Islã se baseia na hegemonia do pensamento religioso, que pode ou não tolerar outros. O Ocidente não conheceu um pensamento hegemônico, pois mesmo o cristianismo foi marcado por cismas desde a sua origem e como você bem sabe, o pensamento cristão nunca dominou a vida social européia tão completamente quanto o pensamento muçulmano domina o Islã.
Malê de Balê escreveu:Creio que a questão aqui é: pode o Islam permitir a negação do Islam?
Por analogia. Pode a Democracia permitir a negação da Democracia? Seria possível um monarquista absolutista ou um neonazista ser eleito para presidente do Brasil com amplos poderes para seguir sua ideologia e aplicá-la? Podemos cair em longas discussões sobre a legitimidade dessa situação, mas em termos práticos, podemos admitir que algum dia um nazista seja presidente. Nesse caso, como fazer?? Permitir que ele crie um novo Holocausto?
A questão aqui é que existe um sistema legal que limita suas ações, que defende certos valores que, supostamente, vão contra o totalitarismo de forma (a continuação desta postagem foi apagada pelo Forumnow).