Pedro Kupfer
Reflexões sobre o mito purânico de Gajamukha
Se você visitar a Índia, verá freqüentemente imagens do Deus Shiva cavalgando um touro branco, Vishnu voando sobre uma imensa águia ou Sarasvati atravessando o universo num belo cisne. E, certamente, o que mais irá chamar sua atenção, é o fato de que Ganesha, o deus com cabeça de elefante cavalga um rato. Você poderá perguntar: mas por que um rato?
Esses animais que aparecem junto aos deuses hindus são os veículos divinos, que em sânscrito se chamam vahanas. Os vahanas são expressões, aliadas ou formas de energia, que chegam onde os próprios deuses não conseguem chegar. Com Ganesha é diferente.
Ganesha está associado na Índia com a boa sorte e a prosperidade. Porém, na tradição do Yoga, ele é muito mais do que isso. Os Puranas são uma extensa coleção de crônicas de deuses, heróis e sábios da Índia antiga. Eles foram elaborados pelos sábios de antigamente para ensinar através de metáforas. Algumas das histórias que encontramos neles têm como objetivo nos ajudar a lembrar algumas lições essenciais na vida espiritual.
A história que segue, e que responde à pergunta do título, é uma das mais importantes dos Puranas. Ela narra a batalha que o deus-elefante travou contra o demônio Gajamukha. Gajamukha era um yogi que, devido a austeridade de suas práticas espirituais, tinha se tornado tão poderoso que era considerado invencível. Infelizmente, como acontece com alguns yogis, perdeu-se no caminho e acabou utilizando sua energia espiritual para fazer o mal. As coisas ficaram críticas para a estabilidade do mundo quando ele expulsou os deuses do céu. Estes, aterrados e, sem poder fazer nada para deter o demônio, chamaram Ganesha para que os ajudasse.
No início do confronto, o deus-elefante não pôde fazer muita coisa, pois Gajamukha era realmente poderoso e nenhuma arma utilizada contra ele conseguia atingi-lo. Eles se digladiaram nos céus por milênios, esgotando suas energias, sem que nenhum dos dois lutadores conseguisse sobrepujar o outro. No fim, Ganesha fez um grande sacrifício e arrancou sua própria presa direita, arremessando-a ao demônio com tanta força concentrada que este ficou seriamente ferido. Ao mesmo tempo, Ganesha lançou-lhe uma maldição, condenando-o a transformar-se num rato. O sortilégio funcionou e Gajamukha virou um roedor. Imediatamente, Ganesha saltou sobre o rato e começou a cavalgá-lo.
Qual é a lição espiritual escondida nesta história esquisita? Neste mito, o deus-elefante representa a Consciência Pura (Purusha, em sânscrito). O elefante simboliza o imenso poder dessa Consciência, que é a essência de cada ser humano. Com sua força inigualável, o elefante é capaz de realizar proezas que nenhum outro animal conseguiria fazer. No entanto, ele dificilmente irá machucar alguém. Ao mesmo tempo, este animal é muito inteligente, sensível, protetor e solidário com seus companheiros. Essas qualidades, aliadas à sua índole pacífica e amorosa, o tornam um ótimo símbolo da Consciência Pura.
No outro extremo, o rato, com seu jeito inquieto, simboliza a mente humana, sempre correndo de lá para cá, perdendo-se em experiências, pensamentos ou fantasias. A mente, assim como o rato, está sempre nervosa, faminta e com medo, e fica continuamente procurando novas experiências para alimentar seus infinitos desejos. E, assim como o rato tem hábitos noturnos, a mente parece estar sempre se escondendo e fugindo da luz do espírito, preferindo caçar furtivamente nas sombras do desejo.
A mente pode ser um belo aliado na caminhada espiritual, mas pode igualmente tornar-se um sério obstáculo, obliterando a luz da Consciência. Quando ela é utilizada de maneira negativa e egoísta, pode ser nefasta. Você não precisa procurar demasiado para achar os Gajamukhas da nossa era: terrorismo, corrupção e violência são alguns dos demônios que assombram nossa civilização. Porém, é possível que identifiquemos nossos próprios demônios interiores: os Gajamukhas do medo, do ódio ou do sofrimento, travando uma batalha diária para suprimir a Consciência.
Quando isto acontecer, está na hora de Ganesha entrar em ação e lutar para colocar sob seu controle as forças negativas da mente. É provável que um rato não consiga enxergar o tamanho real de um elefante. Da mesma forma, é provável que nossas mentes sejam incapazes de perceber a força interior escondida no mais fundo da nossa alma. Quando temos a oportunidade de que nossa alma nos revele sua felicidade intrínseca, a energia mental é automaticamente colocada para trabalhar construtivamente para nosso bem.
Se você olhar para uma imagem qualquer de Ganesha, verá que sua presa direita está sempre faltando. Lembre que ele aniquilou o demônio com ela. Através deste símbolo, os sábios estão nos dizendo que ele está além das dualidades e que sua mente está em estado de unidirecionalidade.
O nome Ganesha deriva da combinação de duas palavras: gana (mais comumente grafada guna) e isha. Os ganas ou gunas são os ingredientes que determinam a forma do universo, ou melhor, as formas em que a natureza se auto-organiza: inércia, ação e equilíbrio (tamas, rajas e sattva). Isha significa inteligência, controle, controlador. Ganesha, portanto, é a inteligência que dirige e organiza as forças da natureza. É por isso que Ganesha é, entre outros atibutos, o senhor do karma, aquele que controla e dirige a lei de causa e efeito.
É provável que os símbolos contidos neste e noutros mitos hindus surpreendam a mente ocidental. No entanto, uma imagem que no início possa parecer grotesca, como a idéia de um Deus com cabeça de elefante, oferece camadas e mais camadas de significações diferentes, que nos serão reveladas somente quando compreendermos que estes símbolos não foram escolhidos aleatoriamente. Eles foram cuidadosamente vislumbrados pelos sábios de outrora para nos ajudar a entender hoje algumas coisas importantes sobre nós mesmos como, por exemplo, quem nós somos e onde podemos chegar.
Estas reflexões foram baseadas no texto escrito por Linda Johnson e publicado na revista Yoga International, sob o nome "Adventures of a Chubby God" em novembro de 2002. [/b]
