CAMINHOS E DESCAMINHOS NO ENSINO DE CIÊNCIAS
David William Carraher, Terezinha Nunes Carraher,
Analúcia Dias Schliemann
Ciência e Cultura, 37(6), Junho de 1985
(Este trabalho foi, em parte, apresentado no II Simpósio Sul-Brasileiro de Ensino de Ciências, em Florianópolis, SC, julho de 1984.)
RESUMO. O ensino das ciências envolve problemas peculiares, como o desenvolvimento de um modo de conhecer especializado e a transmissão de conhecimentos que não são do domínio público, o que resulta em questionamentos sobre sua relevância. Entre as deficiências atuais do ensino de ciências no Brasil salientam-se a adoção de objetivos para este campo de ensino que o tornam irrelevante para a maioria dos alunos, a adoção tácita de um modelo implícito de ensino-aprendizagem inapropriado, um desconhecimento do aluno por parte do professor e a falta de pesquisas na área que possam orientar a educação científica.
O ensino de matemática e ciências no Brasil, segundo o parecer n9 853/71 do Conselho Federal de Educação, visa "tornar o educando capaz de explicar o meio próximo e remoto que o cerca e atuar sobre ele, desenvolvendo para tanto o espírito de investigação, invenção e iniciativa; o pensamento lógico e a noção da universalidade das leis científicas e matemáticas. Com base neste parecer, o ensino das ciências no Brasil deveria ser, então, preparar o cientista, pois os objetivos explícitos refletem a imagem do cientista em nosso meio. Os objetivos propostos para o ensino das ciências pelas secretarias de educação são coerentes com tais objetivos, assim como o são, de modo geral, os objetivos propostos pelos livros de ciências para o 1º grau. No entanto, as semelhanças de conteúdo entre os vários livros de ciências existentes para o primeiro grau, já apontada por Pretto (19), sugere uma notável ênfase na transmissão de conteúdos. programáticos sem a devida consideração das particularidades do ensino de ciências.
A educação científica constitui uma área da educação que envolve problemas peculiares, os quais a distinguem de outros campos de atuação da escola. Ensinar a ler e escrever, por exemplo, envolve a transmissão de conhecimentos sobre um objeto acabado — um sistema de escrita já determinado — e de domínio público, assim como o desenvolvimento da habilidade de usar bem esse sistema. A educação científica, por outro lado, envolve a transmissão de conhecimentos em construção, freqüentemente desconhecidos do público em geral, o desenvolvimento da habilidade de usar esses conhecimentos e, além disso, o desenvolvimento de um modo de conhecer também especializado, que permite a criação de novos conhecimentos científicos. Se o ensino de ciências visar apenas a transmissão de conhecimentos, o aluno provavelmente aprenderá apenas a repetir o que aprendeu. Se o ensino de ciências promover apenas a utilização do conhecimento, o aluno poderá ser um bom técnico. Mas, para formar um cientista, além de ser necessário informá-lo sobre os conceitos científicos correntes e levá-lo a aprender a usar esses conhecimentos para resolver novos problemas, é necessário prepará-lo para as atividades e o modo de conhecimento envolvidos na criação de novas explicações científicas. O modelo vigente de ensino das ciências, concretizado pela prática educacional corrente, parece tratar o ensino das ciências como um problema principalmente de transmissão de informações e, ocasionalmente, de utilização dessas informações para resolver problemas já resolvidos por outros através de rotinas para solução de problemas já praticadas com o professor.
Um contraste rápido entre as atividades de um cientista e aquelas de um aluno de ciências ilustra esta direção da prática educacional para a transmissão de informações. Comparando as atividades listadas no Quadro 1, pode-se abstrair a ênfase dada pela escola à transmissão de informações.
O CIENTISTA O ALUNO DE CIÊNCIAS
Observa Confirma observações
Analisa Memoriza
Questiona Responde
Busca respostas Aprende respostas
Descobre Só sabe se alguém ensinar
O modelo subjacente ao ensino de ciências em sua forma atual — abstraído a partir do exame de livros de ciências, de observações em sala de aula e da análise das atividades propostas para aprendizagem e avaliação do aluno — parece incluir os pressupostos apresentados a seguir.
Primeiro, os problemas científicos são tratados como se fossem, no fundo, problemas lingüísticos ou matemáticos. O ensino focaliza a aprendizagem de termos e definições, no campo lingüístico, e de fórmulas e rotinas para a computação de respostas, no que diz respeito à matemática. Desde a leitura do índice de livros de ciências já podemos constatar a ênfase na aprendizagem de termos, pois os índices são, eles próprios, listas de palavras desconhecidas do estudante, indicando o que ele virá, no decorrer do ano, a memorizar - cinemática, lei de Proust, extrativismo mineral, equinodermos etc.
A função habitual de um índice, que seria a de informar um provável leitor sobre o conteúdo de um livro a fim de que ele possa verificar se o livro é de seu interesse, é impossibilitada pela própria ênfase em termos. As atividades propostas para os alunos consistem freqüentemente de preencher lacunas, responder questionários e resolver palavras cruzadas, atividades que envolvem, via de regra, simplesmente escrever os termos científicos apropriados ou suas definições, como, por exemplo: "A malária é causada por um Protozoário chamado Plasmódio e transmitida pelo mosquito Anófeles" ou "O que é um filo? Ë um conjunto de classes" (Napoleão e Odair. "Seres vivos, funções e relações’: 6ª série p., 12 e 7, Livro do professor.)
Segundo, a prática educacional no campo do ensino das ciências parece refletir também a crença de que a formalização matemática representa a cientificidade; se alguém sabe usar fórmulas e calcular respostas é porque domina os conhecimentos científicos relacionados a essas fórmulas e problemas. No entanto, embora crianças da 4ª série saibam calcular a velocidade de um veículo, dados a distância percorrida e o tempo, pode-se observar sua dificuldade em compreender o conceito de velocidade quando lhes propomos questões que envolvem coordenar observações sobre os pontos de partida e chegada, as distâncias percorridas e os intervalos de tempo, sem que os valores das distâncias e tempo sejam numericamente fornecidos. Similarmente, em estudo sobre o conceito de proporcionalidade, observou-se que calcular a altura de um edifício, dados o comprimento de sua sombra, o da sombra de um poste e a altura do poste, é mais fácil do que identificar, dentre certos parâmetros sugeridos, aqueles que são relevantes para se calcular a altura do edifício (7).
O tratamento de problemas científicos como problemas essencialmente de linguagem ou de memorização de rotinas para o cálculo de respostas pode ser visto como refletindo uma crença ainda mais geral e profunda da prática educacional: a crença de que a linguagem controla o pensamento. Segundo este ponto de vista, se a criança aprender termos, definições ou explicações verbais e for capaz de repeti-los verbalmente, ela terá compreendido a matéria. Não se pode deixar de mencionar aqui que esta crença deve ser altamente questionada a partir de dados obtidos no campo da psicologia cognitiva. Existem evidências de que saber uma regra verbal para a solução de um problema pode não ser suficiente para orientar as ações do sujeito ao resolver o problema (10), ou suas previsões sobre as conseqüências de sua ação (17). Além disso, sabe-se também que o ensino de rotinas para calcular respostas em matemática não garante a solução correta de questões semelhantes e pode mesmo resultar em uma percentagem de erro maior do que aquela observada quando a criança não utiliza os ensinamentos escolares (8).
Terceiro, a prática educacional vigente no ensino de ciências parece refletir também a noção de que, para fugir ao ensino livresco, é necessária uma tecnologia sofisticada representada por laboratórios de ciências. A crítica que os professores de ciências fazem à sua atuação centra-se na ausência de recursos materiais para manutenção de laboratórios (4). As poucas atividades sugeridas por livros de ciências que envolvem observação revelam a verdadeira "cegueira" da pedagogia atual com relação ao mundo que cerca o aluno. Como exemplo chocante desta cegueira podemos mencionar a sugestão de um certo livro de ciências de que as crianças sejam levadas a um jardim zoológico para que possam ver animais.
Quarto, o único trabalho valorizado pela escola em nossa sociedade e dentro deste modelo pedagógico é o que a escola considera "o trabalho intelectual", que é aquele feito em sala de aula ou no laboratório. O trabalho manual, feito no campo ou nas oficinas, é visto como independente do intelecto e algo que deve ser realizado por outros, talvez menos dotados intelectualmente. Assim, um professor de biologia pode queixar-se por não dispor de coleções de insetos ou plantas para mostrar a seus alunos, pois considera o trabalho de capturar os insetos e prepará-los como independente de seu saber em biologia. Desta forma, ele não reconhece provavelmente sua própria ignorância em biologia, pois não saberia onde procurar muitos dos insetos ou como atraí-los, se necessário. A valorização do trabalho de sala de aula e desvalorização da execução de passos necessários à solução de problemas reais reflete-se, por exemplo, na prática da resolução de problemas no papel com medidas fornecidas pelo professor quando, freqüentemente, o aluno não tem noção de como essas medidas são obtidas na realidade. A necessidade de estágios para os profissionais formados nas universidades e as dificuldades dos estagiários na execução mesmo das tarefas mais simples revelam a incompetência do aluno formado apenas em salas de aula e laboratórios para a resolução de problemas reais que envolvem o seu campo de estudos nas ciências.
Finalmente, os professores de ciências vêem sua prática pedagógica como desvinculada da formação de cientistas. Pretto (19), através de um questionário aplicado a professoras de ciências, coordenadoras e supervisoras na Bahia, observou que aproximadamente 80% das entrevistadas nada respondiam às perguntas "Quais as características do cientista?’’ e ‘‘Quem pode ser um cientista?’’, como se sua prática enquanto professores de ciências não exigisse reflexão sobre este tema. Dentre aquelas que respondiam a essas questões, as respostas tratam as características do cientista como traços pessoais — vocação, capacidade intelectual, interesse etc. —, o que certamente desvincula a formação do cientista da atuação de seus professores de ciências.
Em contraste com o modelo subjacente às práticas pedagógicas atuais em ensino das ciências, propõe-se aqui que as maiores dificuldades para o ensino das ciências não decorrem da falta de recursos, mas dos fatores discutidos a seguir:
1. o padrão de ensino de ciências parece ser uniformemente baixo, sendo que esta uniformidade provavelmente resulta da utilização quase cega de livros-textos que, como observou Pretto (19), constituem cópias uns dos outros;
2. o ensino se apoia principalmente nas capacidades de copiar e memorizar e, portanto, não envolve, de fato, a compreensão ou a observação do cotidiano pelo aluno;
3. os professores encontram dificuldades em preencher o tempo destinado às aulas e procuram fazê-lo cobrindo maior quantidade de matéria ao invés de aprofundar tópicos de maior importância ou interesse;
4. as dificuldades do ensino, quando admitidas, são atribuídas à falta de recursos e de apoio e orientação dos supervisores, o que desvia a atenção do professor de sua própria ação para condições de trabalho externas a ele;
5. os autores de textos e os professores ignoram as características do desenvolvimento intelectual da criança em suas diferentes etapas, o que resulta numa assincronia entre o desenvolvimento da criança e o que dela é exigido na aprendizagem de ciências;
6. a criança, no modelo pedagógico vigente, é tratada como uma "tabula rasa", sem qualquer noção sobre os fenômenos da ciência que deve estudar na escola, o que resulta na aprendizagem de ensinamentos escolares desvinculados de suas ideias e observações anteriores;
7. o modelo pedagógico vigente não considera a importância, já salientada inúmeras vezes na literatura sobre ensino de ciências (9, 13, 14), de incluir outros objetivos para este estudo além da formação do cientista, pois apenas uma pequena parcela dos estudantes tornar-se-á pesquisadora, o que significaria manter o ensino das ciências como irrelevante para a grande maioria dos alunos do primeiro grau.
As deficiências do ensino de ciências discutidas acima foram identificadas a partir de várias fontes de informação, sendo as principais discutidas a seguir.
a) Seminários do projeto "Aprender Pensando" envolvendo professores de ciências
O projeto "Aprender Pensando", desenvolvido por pesquisadores em psicologia cognitiva da UFPE, já trabalhou com aproximadamente 150 professores de ciências em cinco diferentes oportunidades, em discussões sobre o tema "Bases Cognitivas da Aprendizagem das Ciências" e 210 professores de matemática em sete seminários discutindo as "Bases Cognitivas da Aprendizagem da Matemática". Especialmente nos quatro últimos seminários sobre ciências, em que o contato com os professores foi mais prolongado, foi possível observar nos próprios professores a defasagem entre a habilidade de calcular a resposta para um problema apresentado formalmente e aquela de analisar e resolver o mesmo problema na realidade. Vários tópicos foram explorados nesses seminários —como o conceito de densidade, de força e equilíbrio numa balança, velocidade e aceleração —, mas discutiremos apenas um, a título de exemplo.
Se informarmos aos professores que a altura de um poste é igual a 9m, o comprimento de sua sombra é igual a 3m e o comprimento da sombra de um prédio é de 12m, estes não têm qualquer dificuldade em calcular a altura do prédio. Porém, quando pedimos aos professores que procurem calcular a altura de um prédio a partir da sombra que ele projeta, surgem as mais diversas dificuldades: 1. muitos não pensam sequer em obter as outras medidas a fim de aplicar o cálculo proporcional; 2. medir a sombra do prédio, por si só, já representa um problema, pois "medir" para muitos professores parece significar "ler um valor em um instrumento" e eles não dispõem, na ocasião, de um instrumento que ofereça a possibilidade de obter uma leitura do comprimento da sombra; 3. as respostas obtidas freqüentemente não são submetidas a um exame crítico, aparecendo, por exemplo, respostas como uma altura de 27m para um prédio de 20 andares. Portanto, tanto a escolha das medidas relevantes como o processo de obtenção de medidas e a avaliação das respostas obtidas podem constituir dificuldades para os próprios professores de ciências quando estes resolvem problemas. As dificuldades observadas nos professores provavelmente resultam do fato de que sua própria formação em ciências deu-se a partir do mesmo modelo pedagógico que propicia apenas oportunidades para estudo desvinculadas da realidade, sendo que o professor já oferece de antemão as medidas necessárias nos parâmetros relevantes.
b) Pesquisas anteriores sobre a compreensão de conceitos científicos
Estudos sobre a compreensão de conceitos científicos em nosso meio revelam a ineficácia do ensino de ciências tanto na escola primária como na universidade. Carraher e Carraher (6) observaram, em estudantes de escolas noturnas, que um conceito científico estudado na escola, como o de densidade, não era melhor compreendido do que um outro ainda não estudado, como o de probabilidades, embora ambos requeiram teoricamente o mesmo nível de desenvolvimento intelectual para sua compreensão. Na universidade, D. Carraher (5) observou que o estudo especifico de um problema científico não tornava os estudantes desse problema necessariamente mais aptos a resolverem questões a ele relacionadas do que estudantes universitários que não haviam abordado o problema na universidade. Carraher observou, por exemplo, que estudantes de medicina, os quais já haviam cursado a disciplina de genética, mostravam um índice de acerto de 39% em um problema sobre a determinação da cor dos olhos, enquanto os estudantes de engenharia que responderam à mesma questão exibiam uma percentagem de acerto igual a 42%.
Resultados como os acima salientam a importância de estudos que indiquem novos caminhos para o ensino das ciências, pois indicam que as deficiências do ensino atual são tão acentuadas que estudar um conceito científico pode não oferecer ao aluno qualquer vantagem na análise de problemas que envolvem aquele conceito sobre alunos que não o estudaram.
c) Análise dos livros mais frequentemente utilizados nas escolas para o ensino de ciências
Foram consideradas nesta análise duas coleções de livros: Napoleão e Odair, 5ª a 8ª séries (15) e Carlos Barros, também 5ª a 8ª séries (1). Estes livros foram escolhidos por serem ambos amplamente usados em Recife e constarem entre as obras utilizadas por professores de ciências que participaram dos seminários do projeto "Aprender Pensando". Deve ser salientado que a análise apresentada não considera qualquer questão sobre a correção/incorreção dos conteúdos apresentados mas apenas comenta como eles são apresentados, que é a questão que nos interessa no presente projeto.
As semelhanças entre as duas coleções parecem mais importantes do que as diferenças, pois as duas coleções revelam a mesma concepção de ensino das ciências. Primeiro, a organização do material de ensino volta-se para a aprendizagem daquilo que podemos denominar "conceitos fundamentais do ensino de ciências". São, por exemplo, tópicos em ambas as coleções: o átomo, o ar, pressão atmosférica, gases etc. Tal forma de organização revela descaso pela perspectiva do aluno de ciências no que diz respeito a "explicar o meio que o cerca" e revela também a ênfase, já comentada antes, na transmissão de informações. O aluno do primeiro grau tem certamente muitas questões sobre o mundo que o cerca — de onde vem a água da chuva, por que o carro precisa de gasolina, como é que o fósforo faz o fogo, por que os aviões não caem — mas, certamente, entre suas preocupações não constam questões sobre a existência do átomo e do ar ou o sentido da pressão atmosférica. No estudo do átomo, por exemplo, dá-se um histórico de "quem descobriu o átomo", mas não há nos textos qualquer tentativa de levar o aluno a descobrir, ele próprio, a idéia de átomo, embora já existam estudos de Piaget e Inhelder (18) indicando que, com apenas um copo de água com açúcar, é possível levar o aluno de 9-10 anos a recriar uma teoria atômica elementar.
Em segundo lugar, cabe mencionar que, coerentemente com a ênfase na transmissão de informações, aproximadamente 60% das atividades propostas pelos textos em discussão constituem leituras, responder questionários, preencher lacunas em frases e resolver palavras cruzadas envolvendo termos científicos.
Terceiro, a ordem no programa e a provável idade em que os tópicos são discutidos exibe a assincronia referida anteriormente entre desenvolvimento intelectual e ensino escolar. Segundo os estudos de Piaget e Garcia (16), entre os problemas científicos mais precocemente compreendidos (em torno dos 8 anos), encontram-se aqueles ligados à conservação de quantidades sólidas, de líquidos e de movimentos, como a composição interna da matéria, a digestão (11), a transmissão de movimentos etc., enquanto problemas científicos envolvendo a conservação de volume, como aqueles que dependem do papel do ar ou de gases (sobre os quais o sujeito não age ou que são percebidos somente em função de seus efeitos), são resolvidos apenas mais tarde, na adolescência (operações formais). No entanto, nos textos analisados, o ar e os gases são tópicos para a 5ª série, constando entre os primeiros tópicos de física a serem estudados no primeiro grau.
Finalmente, não se pode deixar de analisar o caráter das experiências propostas pelos textos consultados, que constituem aproximadamente 40% das atividades previstas, pois a sua flagrante deficiência merece ser documentada. Quatro pontos serão observados quanto a essas experiências. Primeiro, elas não envolvem problemas propostos pelos alunos ou suas prováveis preocupações, mas são tratadas como provas de alguma "questão científica". Ë altamente improvável que um aluno do primeiro grau se preocupe em provar a existência do ar ou a de gases dissolvidos na água, por exemplo. Segundo, estas experiências nada oferecem no sentido de desenvolver a capacidade de observar ou de despertar a curiosidade do aluno, pois os resultados já se encontram desenhados no livro ao lado das instruções sobre "o que fazer". Terceiro, elas nada podem ilustrar sobre o "método experimental", pois não envolvem nem controle nem mensuração de variáveis. Quarto, as conclusões a serem formadas a partir da observação não são conclusões a que o estudante chegaria com base nos dados disponíveis. Além disso, elas são apresentadas ao lado de outras incorretas para identificação pelo estudante, o que, provavelmente, resulta na eliminação de qualquer esforço inferencial do aluno.
Estes pontos são bem ilustrados pelos exemplos analisados a seguir. No primeiro deles (ver Quadro II, transcrito de Barros), sugere-se que a criança colete material do meio ambiente para estudo. No entanto a "observação" sugerida deve ser feita a partir de uma série de nomes previamente memorizados já apresentados no texto. Assim a observação não leva à descoberta mas torna-se apenas uma forma de repetir dados memorizados.
Quadro II
EXPERIËNCIA
Vamos abrir uma flor?
Para conhecer melhor a flor, você deve vê-la por dentro. Por isso, realize esta experiência.
Consiga o seguinte material:
Algumas flores grandes, como tulipa, lírio ou hibisco; cartolina; tesoura; faca; estilete (você pode fazê-lo amarrando uma agulha de costura na ponta de um pedaço de madeira); papel preto.
Proceda da seguinte maneira:
Corte vários pedaços retangulares de cartolina e escreva neles os nomes das diversas partes de uma flor. Utilizando a tesoura, separe as várias partes da flor, começando pelas mais externas, como, por exemplo, as pétalas. Em seguida, coloque cada parte sobre o cartão correspondente.
Agora esfregue com cuidado uma das anteras sobre o papel preto e reúna todos os grãos de pólen que você conseguir.
Tome o ovário e Corte-o ao meio. Observe que dentro dele existem pequenos compartimentos onde estão armazenados os óvulos. Esses compartimentos são chamados lojas. Em seguida, com a ajuda do estilete, conte os óvulos contidos no ovário.
O segundo exemplo consiste em um experimento sugerido na maioria dos livros de ciências. Trata-se da demonstração da pressão do ar através da tentativa de colocação de um ovo em uma garrafa. Esse experimento em um texto (1: 21-22) é anunciado pelo título "O ar exerce pressão". Em outro caso (15: 17-18), juntamente com outras demonstrações. o mesmo experimento é apresentado para provar que "realmente o ar existe".
Para realizar o experimento são necessários um ovo cozido e descascado, uma garrafa, algodão, álcool e fósforo. O tamanho do ovo deve ser tal que ele não pode passar totalmente pelo gargalo da garrafa. Visto isto, joga-se no interior da garrafa o pedaço de algodão embebido em álcool e, com o fósforo, ateia-se fogo ao algodão. Coloca-se imediatamente o ovo na boca da garrafa e, agora, anunciam os textos, o ovo entra. A explicação do fenômeno é apresentada nos textos à medida que são dadas as instruções e descritos os resultados. Assim, a criança, caso consiga realizar o experimento, já o faz sabendo o que deverá ocorrer e que aquilo ocorre porque, ao queimar-se o algodão, a pressão no interior da garrafa ficou menor que a pressão do exterior e, por isso, o ovo é empurrado para dentro pela pressão de fora.
Tentamos fazer realizar este experimento por duas crianças, uma de 12, outra de 14 anos, que não haviam lido as instruções do livro, mas receberam apenas instruções verbais sobre como realizar a experiência, sem explicações sobre o papel da pressão. O primeiro problema que apareceu foi que o ovo, ao ser cozido, estourou e não serviu para a experiência. Entre si, as crianças levantaram algumas questões e hipóteses sobre por que o primeiro ovo estourou e, com cuidado, cozinharam um segundo ovo. O problema seguinte foi que, ao jogar o fósforo na garrafa, o algodão incendiou-se mas apagou-se imediatamente, embora estivesse bem embebido em álcool. As crianças tentaram ainda, com vários fósforos e manipulando a altura em que o algodão ficava, conseguir um fogo mais duradouro. Constataram que na boca do frasco o algodão queimava mas, logo que era empurrado para seu interior, o fogo se extinguia. Resolveram afinal ver se o ovo entrava na garrafa e, só com alguns empurrões, é que conseguiram. Foi-lhes, então, fornecida a descrição do que deveria ter acontecido e levantou-se a hipótese de que, talvez, o ovo fosse grande demais para que a experiência desse certo. Pedimos, então, às crianças que explicassem por que, depois de botar fogo no interior da garrafa, o ovo entraria. Uma das explicações foi que o ovo, com o calor, ficava "engilhado" e menor; outra que o gargalo da garrafa aumentava, e uma terceira que o calor puxava o ovo para dentro. Como uma das crianças já havia estudado o tema "Pressão Atmosférica" na escola, sugerimos que poderia ser um problema de pressão e a partir daí ela chegou à resposta pedida pelo livro.
Este relato indica por um lado que a experiência sugerida não é tão fácil de ser realizada com sucesso como parece. Por outro lado, durante o seu desenrolar outros problemas envolvendo conceitos físicos surgiram naturalmente e despertaram a curiosidade da criança e a busca de soluções através da modificação das situações. Ainda, outro aspecto que parece ficar claro é que as explicações para o fenômeno não derivam da observação do mesmo, mas são fornecidas de fora.
d) Observações de professores de ciências
Durante um seminário de 32 horas sobre as bases cognitivas da aprendizagem das ciências, oferecido em outubro de 1983, na Universidade Federal de Pernambuco, a equipe do projeto "Aprender Pensando" teve contato com 32 professores que ensinam ciências no primeiro grau em Recife. Durante o seminário, devido ao grande número de atividades de equipe, foi possível determinar quais eram os indivíduos mais dinâmicos e entusiasmados com as idéias discutidas. Quando foi proposto um acompanhamento nas escolas, 26 dos professores se ofereceram para reunir-se com os instrutores do seminário semanalmente, a fim de tentar pôr em prática as idéias discutidas, para melhorar o ensino das ciências. Três professores foram selecionados pela equipe para receber o acompanhamento. Um assistente de pesquisa se associou a cada professor e fez observações, uma ou duas vezes por semana, durante 7 semanas. Estas observações proporcionaram um retrato do que é o ensino das ciências em três escolas. Apresentamos, a seguir, um resumo do que foi constatado:
1. Relativamente pouco tempo por semana é efetivamente utilizado para o ensino das ciências. Oficialmente, os alunos recebem 2h30 por semana em aulas de ciências. Muitos fatores reduzem, substancialmente, essa cifra, na realidade: atrasos e ausências do professor, o uso de tempo para atividades burocráticas (coleta de dinheiro de apostilas, por exemplo) e interrupções (conversas com pessoas). Os professores parecem dispostos a acolher tais interrupções, prolongando, por exemplo, conversas com visitantes durante a aula, enquanto os alunos esperam, sem tarefas. Nossa interpretação desse fenômeno é que eles têm grande dificuldade em programar o uso do tempo na sala de aula e preferem ensinar muito menos que as horas previstas.
2. Em nenhuma das três escolas os alunos compravam os livros de ciências, presumivelmente por
falta de dinheiro. Em duas das escolas os professores não dispunham de papel. Em alguns casos o professor reproduzia uma tarefa através de mimeografia e os alunos compravam a folha na sala de aula.
3. Não havia nenhuma tarefa de observação científica realizada e acreditamos que os professores não oferecem aos alunos oportunidades de observar e refletir sobre observações feitas na sala de aula.
4. A programação de ensino é feita pelos próprios professores. Seus programas, porém, são quase idênticos aos índices dos livros adotados.
5. A orientação que os professores desejam é no sentido de cumprir o programa, ao invés de fazer um programa. Assim, o professor W. pediu a um membro da equipe ajuda para organizar uma aula sobre "vertebrados e invertebrados". A equipe sentiu, por outro lado, a necessidade de substituir essa concepção de ciências, baseada em taxonomias e nomenclatura, por uma concepção em que a observação e o raciocínio da criança prevalecessem. Conseqüentemente, enquanto o professor encara o programa não criticamente, a equipe do presente projeto reconhece a necessidade de estudar e mudar a concepção de ciências implícita no programa. Os programas precisam ser modificados — substituindo "conteúdos a serem transmitidos ou cobertos" por "atividades a serem desenvolvidas". Essa meta é substancialmente mais complexa que o trabalho de "operacionalização de programas" e necessita pesquisas sobre as concepções científicas de crianças, bem como sobre a realização de atividades científicas.
Nossas observações indicam, claramente, que a concepção de "ensinar e "aprender" implícita nos livros e aulas dos professores está firmemente enraizada no nosso sistema educacional — ver (2, 3) para análise mais detalhada e (12) para a base filosófica desta concepção. Os professores acreditam que ensinar é transmitir informações e técnicas; aprender seria memorizar e imitar as mesmas.
Mudar essa concepção promete ser uma tarefa árdua, mesmo com um número limitado de professores. Em última analise, o professor depende dos textos adotados. Ë claro, portanto, que um projeto que visa melhorar o ensino das ciências precisa oferecer textos alternativos ~e orientar professores sobre sua utilização). Porém, para se ter textos que promovem o desenvolvimento da compreensão, observação e raciocínio sobre "fenômenos científicos", é necessário, em primeiro lugar, conhecer a compreensão científica de crianças sobre tais fenômenos e, em segundo lugar, pesquisar sobre as atividades que são propostas para substituir o ensino baseado em conteúdos.
REFERÊNCIAS
1. Barros,C. 1984. Ciências. 5ªa 8ª séries. São Paulo, Ática.
2. Carraher, D. W. 1983. Educação tradicional e educação moderna. in T. Carraher org. Aprender pensando: contribuições da psicologia cognitiva para a educação. Recife, Secretaria de Educação de Pernambuco/UFPE.
3. Carraher, D. W. 1983. Processos cognitivos e educação. Trabalho apresentado na XIII Reunião da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto. outubro.
4. Carraher, D. W. Observações sobre a prática em ensino de ciências. Relatório de pesquisa não publicado. Universidade Federal de Pernambuco.
5. Carraher, D. W. 1984. O senso crítico do estudante universitário. Relatório de pesquisa não publicado. Universidade Federal de Pernambuco.
6. Carraher, T. N. e Carraher, D. W. 1981. Piagetian stages describe the reasoning of unschooled adults? The Quarterly Journal of the Laboratory of Comparative Human Cognition, 3(4), 61-68.
7. Carraher, T. N., Carraher, D. W. e Schliemann, A. D. 1985. Mathematics in the streets and in the schools. The British Journal of Child Development, no prelo.
8. Carraher, T. N. e Schliemann, A. D. 1983. Adição e subtração na escola primária. Algoritmos ensinados e estratégias aprendidas. Revista Brasileira de Estudos Pedagôgicos, 64(148): 234-242.
9. D’Ambrosio, U. 1980. Adequate mathematics for third Worl countries: consideranda and strategies. Science Teacher, 23, (3/4), 32-52.
10. Gagné, R. M. e Smith, E. C. 1962. A study ofthe effects of verbalization on problem solving. Journal of Experimental Psychology, 63, 12-18.
11. Gruber, H. 1970. Understanding digestion. Relatório de pesquisa não publicado. Rutgers University, Nova Jersey.
12. Inhelder. B. e Piaget. J. 1968. lhe gaps in empiricism. In: Koestler, A. e Smythies, J. org. Beyond reductionism. Boston, Beacon Press.
13: Knamiller, G. W. 1979. Environmental education and the Third Wonld. Journal of Environmental Education, 10(4), 7-12.
14. Knamiller, G. W. e Obeng-Asamoah. J. 1979. lhe chield in the community. Journal of Environmental Education, 10(4), 21-28.
15. Napoleão Lima Fernandes e Odair B. Carvalho.. s.d. Ciências 5ª a 8ª séries. São Paulo, Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas.
16. Piaget, J. e Garcia. R. Les explications causalea Paris, Presse Universitaires de France.
17. Piaget, J. e Gréco, P. 1974. Aprendizagem e Conhecimento. Rio de Janeiro, Freitas Bastos. (lª edição em francês, 1959.)
18. Piaget, J. e Inhelder, B. 1975. O desenvolvimento das quantidades físicas na criança. Rio de Janeiro, Zahar; Brasília, MEC. (1ª edição em francês, 1962.)
19. Pretto, N. D. L. 1983. Os livros de "ciências" da primeira a quarta série do primeiro grau. Salvador, Universidade Federal da Bahia. (Tese de mestrado.)
20. Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco. 1974. Proposta Curricular para o ensino de 1º grau: Ciências.
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O Mundo só será feliz à partir do dia em que enforcarmos o último político, usando como corda, as tripas do último lider religioso e cremarmos seus corpos utilizando como combustível, seus podres livros sagrados!
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