A neuropsicanálise existe?, artigo de Suzana Herculano-Houzel
Não, ou melhor, praticamente não. Seria preciso um revertério nos conceitos... e uma consulta ao pai da matéria
Suzana Herculano-Houzel é neurocientista, pesquisadora do Departamento de Anatomia da UFRJ e autora de O Cérebro em Transformação (Editora Objetiva), entre outros livros. Artigo publicado no “Estado de SP”:
Neuropsicologia, neuropsiquiatria, neuroeconomia, neurofilosofia, e agora neuropsicanálise. A neurociência avança, expande sua área de abrangência, e os neologismos aparecem.
Alguns têm sua utilidade, como o recente “neuroeconomia”: uma interface inusitada entre dois mundos tradicionalmente distantes – as relações econômicas entre pessoas, povos e países e as transações eletroquímicas dentro do cérebro humano –, com economistas e neurocientistas trabalhando em colaboração, merece um novo nome.
Outros termos não vingam por não representar uma nova disciplina nem ser movidos por uma massa crítica, como é o caso da neurofilosofia.
Outros, ainda, são redundantes e dispensáveis: como uma psiquiatria poderia não ser “neural”, se ela por definição intervém sobre o equilíbrio do sistema nervoso?
O termo “neuropsicologia” é um pouco diferente, por indicar uma volta às origens, uma reaproximação entre a psicologia, que nasceu fisiológica mas aos poucos foi se tornando puramente comportamental, e as ciências que investigam como o cérebro gera e organiza o comportamento.
Por isso o termo “neuropsicólogo” designa o profissional que, após uma formação em ciências sociais, se preocupa em conhecer as bases cerebrais do comportamento e aplicar tal conhecimento à prática.
Quando a psicologia resgatar suas origens neurofisiológicas e eventualmente se reconhecer como neuropsicologia, ela terá voltado a seus primórdios, pois já era “neuropsicologia”, e o termo se tornará desnecessário.
O que dizer então de neuropsicanálise, termo proposto pelo psicanalista Mark Solms, fundador, em 2000, da Sociedade Internacional de Neuropsicanálise?
Em teoria, a proposta é promover um trabalho interdisciplinar entre a psicanálise e a neurociência. Na prática, Solms gostaria de usar a neurociência para “comprovar” as teorias de Freud.
Quer que estas sejam usadas como arcabouço intelectual para a neurociência e chega ao extremo de propor a localização cerebral do id (os impulsos inconscientes) e do ego (o aparato executivo da mente).
Até 2005, as reuniões anuais da sociedade de Solms traziam os dois campos separados em seus títulos: eram reuniões sobre as “perspectivas neurocientíficas e psicanalíticas” das emoções, por exemplo.
Em julho de 2005, no entanto, o título do congresso internacional realizado no RJ propunha a discussão de uma suposta “perspectiva neuropsicanalítica dos sonhos e das psicoses”.
O título do próximo, em 2006, já anuncia “perspectivas neuropsicanalíticas sobre o afeto e o desejo”. Daí a pergunta: existe mesmo uma neuropsicanálise que tenha perspectiva própria, como os novos títulos dos congressos anuais de Solms implicam?
Se o termo se refere a uma teoria psicanalítica fundamentada neurocientificamente, a resposta é “não”. É um equívoco, um anacronismo querer buscar confirmação das idéias de Freud nas descobertas atuais sobre o cérebro.
Freud estava muito longe de qualquer neurociência vagamente parecida com a atual; ele propôs o que era cabível à sua experiência profissional e aos seus conhecimentos limitados à neurologia da época, e no contexto de uma Europa vitoriana pós-Darwin, onde era tão problemático quanto importante lembrar que o ser humano tem impulsos como os outros animais.
Claro que há noções importantíssimas na psicanálise que são hoje reconhecidas também pela neurociência.
Mas é apenas esperado que duas áreas independentes que se interessam pelo mesmo assunto – a mente humana – tenham opiniões convergentes e reconheçam os mesmos fenômenos.
Nem a neurociência usa as idéias de Freud ou se preocupa em dizer se ele tinha razão ou não, nem a psicanálise depende de respaldo neurocientífico: ela é um sistema fechado de crenças sobre o comportamento humano de grande utilidade em casos de necessidade de insight e autoconhecimento – e zero utilidade em distúrbios como dependência química, transtornos obsessivos-compulsivos e esquizofrenia.
E se o termo indica uma área de pesquisa, um campo de estudos, a resposta à pergunta “neuropsicanálise existe?” ainda é “praticamente não”.
Nenhum entre mais de 60 mil trabalhos fez menção a Freud ou à psicanálise nos dois últimos anos das reuniões da Sociedade de Neurociências norte-americana.
Em artigos científicos, um ou outro grupo mencionam a psicanálise ao investigar as bases cerebrais de fenômenos específicos reconhecidos por Freud, como a repressão de memórias.
Mas estamos muito longe do cenário idealizado por Solms, em que a psicanálise seria usada como arcabouço intelectual para a neurociência, um conjunto de hipóteses testáveis que norteassem a pesquisa das bases cerebrais da mente.
Há um impedimento prático muito grande para tanto: se a neurociência adotasse a teoria psicanalítica de Freud como um conjunto de hipóteses de trabalho testáveis, a teoria seria refutada em vários aspectos e, como um conjunto, não se aplicaria à pesquisa do cérebro.
Claro que é interessante colocar neurociência e psicanálise lado a lado e comparar o que dizem, posto que ambas tratam da mente humana e têm ensinamentos interessantes.
Claro que é interessante para a neurociência entender as motivações e demais mecanismos da mente humana, assim como é recomendável que psicanalistas e demais psicoterapeutas mantenham atualizados seus conhecimentos neurocientíficos, de tanta valia à prática psiquiátrica e psicoterápica.
Uma fusão, contudo, não é possível. Usar os conhecimentos da neurociência para revisitar a teoria psicanalítica levaria à confirmação de alguns conceitos, sim, mas necessariamente à reformulação de outros.
A neurociência mostra que o carinho na infância é fundamental para o desenvolvimento emocional saudável; que os impulsos, sexuais e de outros tipos, são tão importantes para o comportamento que são orquestrados por um sistema dedicado (o sistema de recompensa); e que tudo opera sob o controle de um sistema executivo que autoriza e torna conscientes apenas alguns desses processos.
Mas doenças mentais não resultam de repressão falha, neuroses não são necessariamente distúrbios de função sexual originados na infância e os sonhos são transparentes, acontecimentos recentes ou passados revisitados pelo cérebro adormecido.
A teoria psicanalítica é uma proposta pontual de uma pessoa em um contexto histórico e científico, que fez escola e abriu caminhos.
Existem hoje várias terapias da mente e do comportamento – mas nenhuma terapia se chama “psicanálise” se não for baseada na teoria psicanalítica de Freud.
Por isso, seria preciso que Freud ressuscitasse para rever os próprios conceitos à luz da neurociência e propor uma neuropsicanálise. Enquanto isso não acontecer, a tal da “neuropsicanálise” continua não existindo.
(O Estado de SP, 25/12)
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*Estou REALMENTE muito ocupado. Você pode ficar sem resposta em algum tópico. Se tiver sorte... talvez eu lhe dê uma resposta sarcástica.
*Deus deixou seu único filho morrer pendurado numa cruz, imagine o que ele fará com você.
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