A tentação da raça

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spink
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A tentação da raça

Mensagem por spink »

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A tentação da raça

Stéphane Foucart

Nós a achávamos enterrada de uma vez por todas. Norta pela ciência. Reduzida a migalhas pela genética, cujos primeiros resultados apontavam que a humanidade inteira constitui uma única, mesma e grande família. Mas não era bem assim! Eis que a noção de raça volta a ter vida própria. E quem a faz renascer não é qualquer um: o americano James Watson em pessoa, o co-descobridor, junto com Francis Crick e Rosalind Franklin, da estrutura do DNA (ácido desoxirribonucléico).

Numa entrevista que ele concedeu em meados de outubro ao "Sunday Times", para a promoção do seu mais recente livro - "Avoid Boring People" ("Evite pessoas chatas", editora Oxford University Press), o Prêmio Nobel de medicina de 1962, que hoje tem 79 anos, explicou sem rodeios que ele estava "profundamente pessimista em relação ao futuro da África". Por quê? Porque, disse ele, "todas as nossas políticas de desenvolvimento se baseiam no fato que a sua inteligência (a dos africanos) é a mesma que a nossa (ocidentais brancos), ao passo que todos os testes dizem que este não é verdadeiramente o caso". "Aqueles que tiveram de lidar com empregados negros", acrescentou, "sabem do que eu estou falando".

Será que nós estamos assistindo ao retorno de um "racismo científico" que todos achavam extinto? Ou será que aquilo não passava de meras elucubrações de um homem idoso que, alguns dias mais tarde, se disse "mortificado" pelas suas próprias palavras, enquanto todas as suas conferências no Reino Unido eram canceladas e que a sua instituição, o Cold Spring Harbor Laboratory, o dispensava sem demora.

O fato de James Watson desvendar hoje o seu pensamento, de maneira tão crua e sem complexo algum, a respeito de um assunto tão sensível, nada deve ao acaso. O co-inventor da dupla hélice do DNA, conforme explica o geneticista Axel Kahn, diretor do Instituto Cochin, "situa-se na escola, ou na tendência, da direita determinista anglo-saxônica, uma antiga vertente de pensamento não-igualitarista e cientificista, que não raro apresenta afinidades com o racismo". Ora, segundo Kahn, este movimento ideológico está passando por um renascimento: "Depois da Segunda Guerra Mundial, tudo aquilo em que havia resultado o paroxismo desta visão, além do horror que ela havia provocado em todo o mundo, desqualificaram este movimento de maneira duradoura, e, para assim dizer, puseram-no entre parênteses. Mas este parêntese, atualmente, está se dissipando".

Os tabus estão sendo derrubados. Em setembro de 2005, a revista "Science" - uma das mais prestigiosas instituições científicas no mundo - publicou os estudos de uma equipe de pesquisadores americanos relativos a dois genes envolvidos na microcefalia: ASPM e MCPH-1. Estas duas seqüências genéticas sofreram duas mutações, que ocorreram respectivamente há 5.800 anos e 37.000 anos, mutações estas que eles pensam estarem envolvidas no aumento do volume cerebral. A rápida difusão destas mutações na população mostraria, segundo os autores, que estas duas características são submetidas a uma forte "pressão seletiva". Ou seja, em outras palavras, que a seleção natural foi exercendo o seu papel no decorrer dos séculos, favorecendo os humanos portadores destes dois genes mutantes, por estes proporcionarem melhores capacidades intelectuais.

Evidentemente, isso não é tudo. "Os autores acrescentavam sem pestanejar que estas duas mutações estavam amplamente presentes nas populações européias e asiáticas e, ao contrário, que elas se revelavam raras na África", explica Axel Kahn. "Desde então, foi comprovado que tudo aquilo era falso, mas o que está dizendo hoje James Watson nada mais é que a tradução daquilo que estes pesquisadores pretenderam, equivocadamente, ter demonstrado".

Na época, a comoção, discreta, provocada por este artigo na revista "Science", transpareceu muito pouco na imprensa voltada para o grande público. Em sua maior parte, ela permanece limitada a debates técnicos sobre a fragilidade das estatísticas que são utilizadas nas demonstrações. "Muitas foram as equipes que analisaram novamente os seus dados. Não há prova alguma da tese que elas defendiam", confirma François Balloux, um pesquisador no departamento de genética humana da Universidade de Cambridge (Reino Unido).

Resta a noção de raça. Será que ela foi mesmo eliminada pela genética? Ou, ao contrário, será que os mais recentes métodos de análise tendem a operar uma distinção entre os povos, classificando alguns deles aqui, e os outros ali? Um número considerável de estudos científicos dedica-se, há alguns anos, a fazer levantamentos das particularidades genéticas de uma ou outra população, em função da geografia ou das origens étnicas.

Em dezembro de 2002, uma equipe americano-russa já havia publicado na revista "Science" um dos artigos mais citados sobre o assunto: ao analisarem mais de 300 marcadores genéticos em cerca de mil indivíduos que pertencem a 52 populações diferentes, os pesquisadores conseguiram isolar 5 a 6 grandes grupos humanos, coerentes com os grandes conjuntos geográficos. Será possível falar de raças, então? Não exatamente. Trata-se, conforme explica o geneticista Vincent Plagnol (da Universidade de Cambridge), "de uma simplificação da realidade", uma vez que neste tipo de modelo "ninguém pertence numa proporção de 100% a um grupo, e que os indivíduos são descritos como pertencendo a uma combinação desses conjuntos". Com isso, a noção "científica" de raça deveria continuar sendo no campo virtual.

E até mesmo uma inépcia. "A noção de raça não é cientificamente pertinente", avalia assim Lluis Quintana-Murci, um geneticista das populações (do CNRS-Institut Pasteur). "É impossível isolar uma raça: as variações das populações humanas são graduais e contínuas, da Europa do Norte à China meridional. Nunca existe qualquer discrepância genética entre duas etnias".

"Mesmo quando se tem acesso ao genoma de um indivíduo, é impossível especificar o seu vínculo com alguma raça 'no sentido popular' da palavra", prossegue o pesquisador. "Vamos imaginar que eu, Lluis Quintana-Murci, cometa um crime e que os investigadores encontrem no local uma amostragem do meu DNA. Eles poderiam dizer, sem precisarem exagerar as coisas, que o criminoso é originário do Oriente Médio, por causa do meu cromossomo Y que pertence à linhagem J, uma combinação que é particularmente freqüente no meu tipo de DNA. E isso, apesar do fato de a minha família ser, até onde fui informado, espanhola desde sempre". A recente profusão de estudos que visam a segmentar e categorizar geneticamente as populações humanas não se deve a uma repentina neurose classificadora. Nem a algum racismo latente.

Ela se deve, sobretudo, e de maneira recente, a um objetivo importante das pesquisas biomédicas. A circulação de patologias genéticas em certas comunidades ou no âmbito de determinadas etnias é bem documentada. Assim como é a predisposição genética a certas doenças causadas por múltiplos fatores. É o caso da talassemia ou da hemofilia em certos países árabes muçulmanos, onde a união entre primos não é proibida. É também o caso da doença neurodegenerativa progressiva conhecida como síndrome de Tay-Sachs entre os judeus da Europa do Leste. Ou ainda dos distúrbios cardiovasculares que são duas a três vezes mais freqüentes entre os afro-americanos do que nas outras comunidades da América do Norte, etc.

Uma predisposição à doença não caracteriza uma raça. Contudo, a genética, daqui para frente, busca se aprofundar no que diz respeito à diferenciação. Alguns pesquisadores procuram detectar mecanismos genéticos de tolerância ou de resposta a uma ou outra molécula, que estão mais provavelmente presentes em certas comunidades do que em outras. As motivações destes estudos poderiam ser econômicas. "Infelizmente, existem muito poucas novas moléculas terapêuticas que aparecem no mercado, uma vez que um bom número dentre elas, cuja pesquisa exigiu pesados investimentos, apresenta uma quantidade excessiva de efeitos indesejáveis, mesmo se variáveis, dependendo dos indivíduos", argumenta François Balloux. "Com isso, existe uma forte tentação a reabilitar algumas dessas moléculas, destinando-as a determinadas categorias da população".

Enquanto seguimos aguardando o desenvolvimento anunciado de uma medicina individualizada, na qual cada tratamento seria administrado em concordância com as particularidades genéticas do paciente, alguns laboratórios farmacêuticos poderiam apostar numa medicina étnico-racial. Uma medicina na qual o paciente declara, por iniciativa própria, o grupo ao qual ele pertence, na mesma situação em que ele descreve os seus sintomas.

Um dos primeiros sinais desta tendência foi a autorização dada para o BiDil, em 2005, nos Estados Unidos, um medicamento contra a hipertensão arterial especificamente destinado aos afro-americanos. Em 1997, a sua comercialização havia sido inicialmente recusada pela Food and Drug Administration (FDA). Além disso, esta medicina "racializada" ainda não convenceu a totalidade da comunidade médica nos Estados Unidos. Longe disso. Num artigo de opinião que foi publicado no final de setembro na revista "PLoS Medicine", um grupo de médicos americanos contesta a sua pertinência e critica a classificação necessariamente redutora dos pacientes que, segundo eles, "pode conduzir a erros de diagnóstico e a tratamentos inapropriados".

Nos Estados Unidos, a tentação étnico-racial nas pesquisas biomédicas vai se tornando oficial. Desde 2001, os pesquisadores financiados pelos Institutos Nacionais Americanos da Saúde (NIH) devem categorizar os indivíduos que participam de testes num dos cinco conjuntos étnico-raciais predefinidos pela administração: os ameríndios ou nativos do Alasca; os asiáticos; os negros ou afro-americanos; os nativos do Havaí ou de qualquer outra ilha do Pacífico; os brancos.

Não há dúvida de que as variações genéticas, tênues e invisíveis, que desta forma são reafirmadas pela biologia, serão recuperadas para fins ideológicos de hierarquização. Mas, lembra Axel Kahn, tanto a predisposição a uma doença quanto a resposta a um tratamento medicamentoso, se devem a variações relativamente simples "que envolvem um número reduzido de genes". "Ao passo que as capacidades cognitivas se baseiam, por sua vez, num equilíbrio extraordinariamente sutil entre o inato e o adquirido", conclui o geneticista. "Um equilíbrio a respeito do qual hoje nós não sabemos praticamente nada".
"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma." (Joseph Pulitzer).

NeferNeferNefer
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Re.: A tentação da raça

Mensagem por NeferNeferNefer »

Diferenças. Somente.
Diferentes não são melhores, nem piores. São diferentes. Só.
Livre pensar é só pensar!

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zumbi filosófico
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Mensagem por zumbi filosófico »

O co-inventor da dupla hélice do DNA


:emoticon12: Poxa, Watson é bom mesmo hein!
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myg
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Re.: A tentação da raça

Mensagem por myg »

Watson é Deus...

Trancado