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o texto é longo, mas vale a pena.
Tramas do dr. Aranha
Ele fez a partilha da Palestina e virou herói em Israel. Mas este é o lado menos estudado de sua biografia
Laura Greenhalgh*
Abraham Cheinfeld dá as boas-vindas em nome da comunidade. Depois, café, suco e bolacha para os visitantes que vieram de longe até o Bror Chail, um kibutz à entrada do deserto de Negev, em Israel, onde se fala português, curte-se roda de samba, joga-se futebol à moda Ronaldinho e, vez por outra, acorda-se ao som de bombardeio árabe. “Sempre foi assim”, suspira Abraham, 70 anos, pioneiro entre os 180 moradores do assentamento fundado por egípcios em 1948 e assumido pouco depois por brasileiros de origem judaica. Abraham fala de uma história erguida da estaca zero - desde o mutirão das primeiras casas, a semeadura dos campos de trigo, o início da criação de gado leiteiro, a formação dos pomares, enfim, a montagem de uma fazenda-modelo cuja produção era repartida pela comunidade. Hoje, Bror Chail virou agroindústria. Vende o que produz, além de faturar com uma fábrica de pizza e uma empresa de softwares. “Privatizaram o kibutz”, admite Abraham. Perdeu-se, quase que por completo, o modelo socialista implantado no passado, segundo o qual todos contribuem com o que podem e recebem o que necessitam.
Abraham puxa o grupo de estrangeiros para uma saleta com bandeiras e fotografias na parede. Dentro de uma estante com tampo de vidro, documentos e um martelo de madeira. Então começa a falar do patrono do kibutz, o homem que um dia bateu aquele martelo na ONU, numa sessão histórica: Oswaldo Aranha, gaúcho de Alegrete, advogado, ministro de Vargas, embaixador do Brasil nos EUA, chanceler, que chegou ao mais alto posto ocupado por um brasileiro na ONU, “eterno” candidato à presidência da República (sem nunca tê-lo sido de fato), indicado ao Nobel da Paz de 1948 (ano em que não se outorgou o prêmio). Enquanto revisitam o passado, três discretos parentes do diplomata brasileiro são alvo de fotógrafos e cinegrafistas. Abraham continua. Lembra de outros diplomatas latino-americanos (cujos parentes assistem à mesma cerimônia), também importantes na elaboração do plano de partilha da Palestina, em 1947. Mas Aranha foi decisivo, ressalva. Alguém resmunga em espanhol: por que gastar duas horas visitando um martelo?
O QUARTETO LATINO
Não faz muito tempo Mahmud Ahmadinejad, presidente do Irã, sustentou que Israel deveria sumir do mapa e o sionismo é uma identidade do Satã. Na mesma batida, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, afirmou que “os descendentes dos que assassinaram Cristo agora querem o ouro do planeta”. Ainda que as declarações repisem o tom ameaçador com o qual tanto Ahamadinejad quanto Chávez desafiam Israel, principal aliado dos EUA no Oriente Médio, elas calam fundo. A diplomacia israelense não crava, mas nove entre dez analistas de política internacional juram que a recente Conferência de Annapolis, nos EUA, convocada por Bush sob pretexto de reabrir o processo de paz entre árabes e israelenses, teve por finalidade específica acuar a retórica iraniana. Quanto a Chávez, a diplomacia israelense até crava: algum gesto público deveria ser feito para esvaziar o discurso anti-semita do venezuelano.
O gesto público veio na forma de uma homenagem a quatro diplomatas latino-americanos que, em 1947, estiveram à frente das negociações na ONU para aprovar a Resolução 181, estabelecendo a divisão da Palestina entre árabes e judeus, ao fim da tutela britânica na região: Enrique Fabregat, do Uruguai, Jorge García Granados, da Guatemala, Arturo García Salazar, do Peru, e Oswaldo Aranha, do Brasil, todos falecidos. Familiares dos diplomatas foram convidados a participar de uma programação intensa, que incluiu de inauguração de praça a sessão solene no Parlamento israelense, a Knesset, na última segunda-feira, com a presença de Ehud Olmert e Shimon Peres. Como ressaltaria Itzhak Navon, quinto presidente do país, “o povo judeu não pode se esquecer da memória”. O kibutz Bror Chail mudou muito. O mundo, idem. Mas o martelo está lá, doado pela família Aranha - o que só parcialmente responde à pergunta da incomodada senhora da delegação guatemalteca.
RECONSTRUINDO O MUNDO
Em 29 de novembro de 1947, a partilha da Palestina foi aprovada na 49ª Sessão da 2ª Assembléia-Geral da ONU, sob a presidência do diplomata brasileiro, com o seguinte placar: 33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções. Foi o fim de um processo febril de negociações. E o começo de uma era sem fim de confrontos. O projeto sionista de uma pátria para os judeus ganharia ali legitimidade internacional, o que levou à criação do Estado de Israel no ano seguinte. Meses antes da partilha, porém, formou-se um grupo nas Nações Unidas - o Unscop, United Nations Special Committee on Palestine - para estudar a divisão. Fabregat, García Granados e García Salazar atuaram nele, inclusive trabalhando ao lado dos judeus num alojamento ainda hoje preservado num bairro residencial de Jerusalém. Oswaldo Aranha, não. Recebeu a proposta nos EUA, aparou divergências e levou-a a votação - para vencer.
Era um pró-partilha. Até hoje se diz que construiu a vitória pressionando delegados da assembléia. “Não, ele advogou a favor de uma maioria e conduziu os trabalhos de forma processual”, opina o ex-embaixador Rubens Ricupero, com a experiência de ter estado na ONU por anos, como secretário-geral da Unctad. “Foi eficiente justamente por ter sido processual no meio da confusão”, argumenta o ex-chanceler brasileiro Celso Lafer. “ Era de uma inteligência poderosa e hoje estou convencido de que estudou muito para advogar a partilha.” Assim como poucos sabem que a tradição de o Brasil abrir a Assembléia-Geral da ONU se deve à passagem de Aranha por lá, também poucos imaginam por que, afinal de contas, esse homem presidiu a assembléia num tempo de paz incerta e homens incomuns - Churchill, Stalin, Ben Gurion, Trumann.
Os 60 anos da Resolução 181 trazem de volta uma figura singular da política brasileira. Em 1947, Aranha já dispunha de uma biografia de estadista: fora um dos articuladores da Revolução de 30; ministro da Justiça (quando criou a OAB e reformulou o Supremo); ministro da Fazenda e negociador da dívida externa no governo provisório; embaixador nos EUA de 1934 a 37, deixando o cargo por rejeitar o Estado Novo; voltou ao governo no ano seguinte como chanceler; foi atacado por Goebbels, chefe da propaganda nazista (“o sr. Aranha faz o possível para criar caso com o Reich”); construiu a posição brasileira na 2ª Guerra em favor dos aliados; e de novo saiu do governo em 1944, depois que Filinto Müller, chefão da polícia getulista, fechou a Sociedade Amigos da América, da qual era presidente. Para Lafer, Aranha chegou à ONU com uma densidade política que os diplomatas de carreira não têm. Teve uma relação ambígua com Vargas, gaúcho como ele, e uma antipatia sem disfarces em relação a Dutra, eleito presidente em 1945. Fora do jogo político, resolveu advogar. E colecionar cavalos de raça.
O ROSTO DA ‘TIME’
“Ele surge como líder mundial só depois da reunião de Cleveland”, lembra Ricupero. “Sim, mas já era conhecido nos EUA”, diz Luiz Aranha Corrêa do Lago, neto e biógrafo de Aranha. Antes de entender Cleveland, parênteses: em 1934, quando apresentou as credenciais de embaixador ao presidente Roosevelt, de quem se tornaria amigo, falou em francês para não exibir o inglês rudimentar. Em seguida viajaria pela América com um professor a tiracolo, querendo dominar o idioma. Em janeiro de 1947, quando foi a Cleveland convidado pela revista Time, para participar da reunião anual do Council on World Affairs, - encontro de notáveis para repensar o mundo do pós-guerra - já tinha fama de tribuno nos EUA. “O povo que desintegrou o átomo tem agora a missão de integrar a humanidade”, sapecou no discurso, chamando a atenção de Henry Luce, o poderoso editor da Time (em 1942, Aranha havia sido capa da revista como promotor da articulação pan-americana contra o Eixo).
Depois do êxito em Cleveland, veio a mão do destino. Morre o representante do Brasil na ONU, Dutra não tem outro nome para subsituí-lo no momento em que o Brasil assumiria a presidência do Conselho de Segurança, pelo sistema rotativo. Dutra engole em seco e nomeia Aranha. “Meu avô hesitou, falou com a família, mas aceitou a missão. Sua presença no conselho fez com que fosse eleito presidente da Assembléia Especial para a Palestina, em abril de 1947. Trabalhou tão bem que o elegeram presidente da 2ª Assembléia-Geral, quando então aprovou a partilha. Uma atuação foi puxando a outra, porque ele estava lá nos EUA. Era o homem certo, no lugar certo, no momento certo”, explica o neto.
Há concordância quanto à personalidade: homem sedutor, ouvia os interlocutores, tinha espírito de conciliação. A socióloga Aspásia Camargo, vereadora pelo PV do Rio e autora de uma das biografias de Aranha, disse esta semana ao Aliás: “A ousadia dele incomodava. Tinha intimidade com o mundo certamente por ter podido estudar na Europa muito jovem, lidando até com a 1ª Guerra de um ponto de vista além-fronteiras”. Nahum Sirotsky, um dos primeiros jornalistas brasileiros credenciados na ONU, entrega outra faceta: “Bonitão, sempre com aquele cigarro no canto da boca, ah, as mulheres ficavam loucas...” No livro Personal Witness, o diplomata e escritor israelense Abba Eban, contemporâneo de Aranha na ONU, refere-se a ele como “um homem com fervor quase religioso pela idéia de criar o Estado judeu”. No lado oposto, seria visto como um americanófilo ardiloso. Camille Chamoun, outro contemporâneo e futuro presidente do Líbano, colocou-o no centro de “um sistema tirânico de abordar delegações em quartos de hotel e corredores, ameaçá-las com sanções econômicas ou dar propinas”.
Naquele complicado 1947, a posteridade acenou para Aranha dificultando-lhe o caminho: ele chegara à presidência da Assembléia-Geral sem o entusiasmo do governo brasileiro, que preferia uma vaga no Conselho Econômico e Social; sabia que Truman apoiava a partilha, ao contrário de boa parte do Departamento de Estado; os judeus contariam com o voto dos soviéticos, interessados em solapar o imperialismo britânico, mas os ingleses continuariam a jogar a carta árabe; e a Guerra Fria mal começara. O lobby sionista se desdobrou. Árabes tentaram adiar a votação, jogando-a para um futuro incerto. Aranha impediu a manobra, ainda sem a certeza da vitória. Em 27 de novembro, diante de uma assembléia exausta, perguntou: “Senhores, é justo que num feriado nacional, Dia de Ação de Graças, ocupemos o staff americano com uma votação que pode ser perfeitamente adiada para o dia 29?” Liberou o plenário. Na verdade, conseguiu ganhar tempo para as últimas negociações, indo para a votação certo do resultado. Assim bateu o martelo que Abraham guarda no kibutz.
A VIDA E AS REPETIÇÕES
Retornando ao Brasil, foi de novo ministro da Fazenda. Mas, com o suicídio de Vargas, de novo se refugiou na advocacia. Em 1957, a convite de JK, de novo chefiou a delegação brasileira na ONU. Aproximou-se de novo de Luís Carlos Prestes, líder do PCB, reatando um elo do passado, o que levou a Time, mais uma vez, a falar dele. Estaria se “esquerdizando”. Cortejado pelo PTB para ser vice na chapa do marechal Lott, candidato à presidência, recusou: “A essa altura da vida não quero mais ser segundo de ninguém”. Morreu em janeiro de 1960, aos 65 anos, do coração. Além de patrono de kibutz, Oswaldo Aranha é nome de rua em Jerusalém. Uma cidade que nunca chegou a conhecer, num país que ajudou a fundar.
* A jornalista assistiu às homenagens a Oswaldo Aranha a convite do governo de Israel.
"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma." (Joseph Pulitzer).