Acauan escreveu:zumbi filosófico escreveu:Me causa total estranheza observar como pessoas racionais podem preferir "salvar a vida" de células com ácidos nucléicos humanos pelo seu potencial de desenvolverem um SNC funcional, mesmo que quando desenvolvam esse SNC funcional, sejam indesejadas pelos próprios pais, ou aconteça o que acontecer dali por diante; não ocorreu aborto, então podem respirar aliviados, e o que acontece depois do nascimento de uma criança indesejada é menos importante. Por que o mesmo não é defendido quanto à vida dos óvulos? Ou à embriões produzidos por clonagem, agora aceitos como alternativa mais moral para pesquisa com células embrionárias? Ambos não envolveram a fecundação.
Esta estranheza ocorre sempre que se projeta no interlocutor uma idioticie presumida antes de considerar a possibilidade de ele já haver ponderado estas questões, analisado os argumentos pró e contra que são suficientemente divulgados e repetidos
Eu não estou presumindo que ninguém seja "idiota", apenas, apesar de diversas discussões aqui em outros lugares, nunca vi argumentos razoáveis para se valorizar como "vida humana" apenas os zigotos produzidos por fecundação e não óvulos ainda não fecundados ou, mais recentemente, os embriões produzidos por clonagem.
A sua, se não me engano, para os primeiros era uma racionalização genética; o óvulo, apesar de já ter sua identidade genética diferenciada da mãe, ainda não não tem exatamente o mesmo genótipo do indivíduo/zigoto diplóide, mas na verdade tem apenas um potencial consideravelmente vasto de possibilidades de recombinação, e isso faria dele um "não-indivíduo", e portanto sua morte não seria assassinato.
Isso é mais ou menos análogo a não se ter problema algum em se fazer algo que irá matar pessoas que tenham perdido seus RGs ou impressões digitais, ou pessoas a esmo, sem saber dessas dados (ou de forma que se torne impossível saber), sendo assassinato apenas se você tem alvos específicos bem estabelecidos e conhecidos. O que importa, se o óvulo terá seus ácidos nucléicos recombinados com os desse ou daquele espermatozóide, desse ou daquele indivíduo? Em qualquer das combinações possíveis que se evita ao não se fecundar, matando o óvulo, o que resultaria seria um ser humano (ou mais de um), não importando que não se saibesse "exatamente" quem ele seria; ao mesmo tempo, em defesa da individualidade do óvulo, pode-se defender que essa indeterminação genética não é diferente de outras tantas indeterminações que ocorrem mais tarde, depois da fecundação ou até do nascimento, é apenas um estágio natural da vida. Pode-se dizer que uma pessoa muda muito fundamentalmente depois que se casa, ou que escolhe a profissão, ou passa por alguma experiência marcante qualquer, mas essas coisas não estão escritas nos genes, podendo ser até muito mais relevantes do que terem sido um óvulo fecundado por um espermatozóide ou outro, ou mesmo tendo tido um pai ou outro. E caso se considere a determinação de quem é o pai algo muito importante, algo que possivelmente muitas pessoas concordariam muito mais do que o seu genótipo ter sido o seu próprio e não o de um potencial irmão, pode-se também se defender uma posição pró-vida anti-DIU ou anti qualquer tipo de contracepção, de qualquer forma.
Nessa sustentação, ou há um quê de uma defesa bioquímica determinista da "humanidade", que "somos os nossos genes", coisa que você mesmo combate em outras circunstâncias, ou uma arbitrariedade que, por acaso é genética, apenas para conveniência de demarcação de individualidade. Mas que coincidentemente, só vale para zigotos provenientes de fecundação, e não clonados; esses devem poder ser usados para pesquisas médicas...
Sobre os argumentos estúpidos e sem vergonha, é bem possível que existam mesmo, mas certamente existem dos dois lados, como por exemplo, a mentira propagada pelos pró-vida de que aborto está ligado ao câncer de mama. E se for para desconfiar mais de algum lado nessa coisa toda, o lado mais suspeito é o conservador, dado o conhecido histórico anti-científico.
Não que não possa haver desonestidade do outro lado; acho que não é uma característica inerente ao conservadorismo ou ao liberalismo, é algo bastante independente, ainda que faça companhia a ambos em muitos casos. Acho que uma das maiores correlações talvez seja quando alguém se faz muito de vítima ou de herói... o mais provável é que uma bandeira que defendesse algo mais de acordo com a realidade não fosse nada tão heróico defendido por pessoas que nem são tão vítimas.
Vejo disso nos dois lados; heróis defensores da vida dos zigotos e espermatozóides indefesos, e vítimas clamando por socorro por terem seus corpos utilizados contra a vontade como se fossem escravas. Na verdade, o que vejo é de um lado simplesmente uma posição religiosa que, tem o direito de ser exercida (ou uma posição não-religiosa que acho bem esquisita, meio como, sei lá, defensores dos direitos das árvores ou algo do tipo) mas que querem impô-la a todos; e do outro, gente que não concorda com essas práticas e acham que não deveriam serem impostas pelo estado, mesmo que não tenham necessariamente qualquer motivação altamente nobre e heróica salvadora-da-sociedade para defender essa liberdade, mesmo que não estejam sendo vitimadas de forma muito "ativa" com a proibição, ainda tendo alternativas para conseguir os mesmos objetivos (não ter filhos), ou até mesmo se possa viajar para um país desenvolvido e laico onde o aborto seja legal, no caso de quem tenha condições financeiras para tal.
E eu ao menos não utilizei o argumento de que muitos abortos clandestinos e os problemas relacionados seriam evitados, acho um argumento bem fraco, não serve para se dissuadir alguém que acredite que o espermatozóide ejaculado ou a fecundação são sagrados (ou algum equivalente laico) e que a célula fecundada já é um ser humano como qualquer outro. Não acho que, tirando essa parte do valor dos gametas ou embrião sem SNC, de qualquer forma, as outras coisas sejam desprezíveis, de forma alguma, são importantíssimas; apenas não são tão pertinentes para quem considera essas células como seres humanos plenos.
Eu não sei bem sobre os números de abortos clandestinos, mas como já disse, por generalização desconfio um pouco mais do lado conservador, e mesmo que não sejam "alarmantes", uma vez que não considero o aborto como igual a assassinato, por mínimos que sejam os problemas, considero preferível que diminuíssem ainda mais. E fora isso, mesmo que a maior parte dos abortos clandestinos não resultasse em problema algum, ou que fossem pouquíssimos os casos, ainda acho interessante as correlações de diminuição da criminalidade nos estados com aborto legalizado nos EUA, por exemplo. Mas novamente, não é algo de importância fundamental para quem vê a morte de zigotos como igual a morte de pessoas, pois para essas se estaria simplesmente defendendo um genocídio, extermínio em massa para o bem-estar social.