O conceito de identidade pessoal

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Res Cogitans
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O conceito de identidade pessoal

Mensagem por Res Cogitans »

O conceito de identidade pessoal

Ao ser julgado por homicídio, você decide defender-se a si próprio. Alega não ser o assassino; o assassino é outra pessoa. O juiz pede-lhe que apresente provas. Tem fotografias de um intruso com bigode? Não é verdade que as suas impressões digitais coincidem com as da arma do crime? Pode provar que o assassino é esquerdino? Você responde "não". A sua defesa será muito diferente. Eis os seus argumentos conclusivos:

Concedo que o assassino é dextro, tal como eu, tem as mesmas impressões digitais que as minhas e tem o rosto barbeado, como eu. Inclusive, assemelha-se exactamente a mim nas fotografias das câmaras de vigilância apresentadas pela defesa. Não, não tenho um irmão gémeo. Na verdade, admito lembrar-me de haver cometido o crime! Mas o assassino e eu não somos a mesma pessoa, uma vez que sofri mudanças. A banda rock favorita dessa pessoa era os Led Zeppelin; agora prefiro Todd Rundgren. Essa pessoa tinha um apêndice, mas eu não; o meu foi removido na semana passada. Essa pessoa tinha vinte e cinco anos de idade; eu tenho trinta. Eu e esse assassino de há cinco anos não somos a mesma pessoa. Por conseguinte, não podem punir-me, pois ninguém é culpado de um crime cometido por outra pessoa.
Como é óbvio, nenhum tribunal aceitaria este argumento. E no entanto, o que há de errado nele? Quando alguém sofre mudanças, quer física quer psicologicamente, não é verdade que ela "não é a mesma pessoa"?

Sim, mas a expressão "a mesma pessoa" é ambígua. Há dois sentidos em que podemos afirmar duas pessoas serem a mesma. Quando uma pessoa se converte a uma religião ou rapa o cabelo, torna-se dissemelhante de como era antes. Não permanece qualitativamente a mesma pessoa, digamos. Então, num sentido ela não é "a mesma pessoa". Mas noutro sentido ela é a mesma pessoa: nenhuma outra pessoa tomou o seu lugar. Este segundo género de identidade é chamado "identidade numérica", uma vez que se trata do mesmo tipo de identidade denotada pelo sinal de igualdade em expressões matemáticas como "2 + 2 = 4": as expressões "2 + 2" e "4" representam o mesmo número. Você é numericamente a mesma pessoa que era quando era um bebé, apesar de ser qualitativamente muito diferente. Os argumentos conclusivos do julgamento confundem os dois tipos de identidade. Você de facto mudou desde o cometimento do crime: qualitativamente não é a mesma pessoa. Mas você e o assassino são numericamente a mesma pessoa; nenhum outro assassinou a vítima. É verdade que "ninguém pode ser punido por crimes cometidos por outrem". Mas "outrem" significa aqui alguém numericamente distinto.

O conceito de identidade numérica é importante para as relações humanas. Determina quem podemos punir, uma vez que é injusto punir alguém numericamente distinto do transgressor. Também desempenha um papel crucial em emoções como a antecipação, o arrependimento e o remorso. Não pode sentir pelos erros dos outros o mesmo tipo de arrependimento ou remorso que sente pelos seus próprios erros. Não pode antecipar os prazeres de que outra pessoa terá experiência, por mais que essa pessoa seja semelhante a si, em termos qualitativos. A questão de saber o que torna as pessoas numericamente idênticas ao longo do tempo é conhecida dos filósofos como a questão da identidade pessoal.

A questão da identidade pessoal pode ser dramatizada através de um exemplo. Imagine que está muito curioso acerca de como será o futuro.

Um dia encontra Deus particularmente bem-humorado; ela promete ressuscitá-lo quinhentos anos após a sua morte, para que tenha experiência do futuro. Ao princípio fica compreensivelmente entusiasmado, mas depois começa a duvidar. Como irá Deus garantir que você existirá no futuro? Daqui a quinhentos anos você terá morrido e e o seu corpo apodrecido. A matéria que o compõe agora ter-se-á então dispersado pela superfície da terra. Deus poderia facilmente criar a partir de outra matéria uma nova pessoa que se assemelhasse a si, mas isso não o consola. Quer ser você mesmo a existir no futuro; alguém meramente parecido consigo não serve.

Este exemplo torna o problema da identidade pessoal particularmente intenso, mas repare que as mesmas questões são levantadas pela mudança trivial ao longo do tempo. Recordando fotografias da infância, você diz "este era eu". Mas porquê? O que faz que aquele bebé e você sejam a mesma pessoa, apesar de todas as mudanças que sofreu com o correr dos anos?

(Além de pessoas, os filósofos também reflectem na identidade de objectos ao longo do tempo; reflectem no que faz um electrão, árvore, bicicleta ou nação serem a mesma coisa em tempos distintos. Estes objectos levantam muitas das mesmas questões que as pessoas, além de algumas questões novas. Mas as pessoas são particularmente fascinantes. Por um lado, apenas a identidade pessoal se liga a emoções como o arrependimento e a antecipação. Por outro lado, nós somos pessoas. É natural que nos interessemos em particular por nós mesmos.)

Então, como poderia Deus fazer você existir no futuro? Como vimos, não basta reconstituir, a partir de outra matéria, uma pessoa fisicamente similar. Seria mera semelhança qualitativa. Adiantaria usar a mesma matéria? Deus poderia recolher todos os protões, neutrões e electrões que agora constituem o seu corpo, mas que então estarão dispersos pela superfície da Terra, e transformá-los numa pessoa. Como bónus, ela poderia até fazer esta nova pessoa parecer-se consigo. Mas não seria você. Seria uma nova pessoa criada a partir da sua velha matéria. Se não concorda, então pense nisto. Esqueça o futuro; tanto quanto sabe, a matéria que agora compõe o seu corpo em tempos compôs o corpo de outra pessoa, há milhares de anos. É altamente improvável, mas contudo possível, que a matéria de um antigo estadista grego se tenha reciclado pela biosfera vindo a acabar em si. Claramente, isso não o tornaria numericamente idêntico àquele estadista. Você não deveria ser punido pelos crimes daquele; não poderia arrepender-se dos seus feitos. A coincidência da matéria não é condição suficiente para a identidade pessoal.

Nem é necessária. Pelo menos, a exacta coincidência da matéria não é condição necessária da identidade pessoal. As pessoas sobrevivem constantemente a mundanças graduais na sua matéria. Ingerem e segregam, cortam o cabelo e perdem porções de pele, e por vezes fazem implantes de pele ou de outra matéria nos seus corpos. Na verdade, o processo normal de ingestão e excreção reciclam quase toda a sua matéria de anos a anos. No entanto, você continua a ser o mesmo. A identidade pessoal não está especialmente ligada à coincidência da matéria. Então com o que está ela ligada?

Leia mais em:
Identidade pessoal
Theodore Sider
Universidade de Rutgers

http://www.criticanarede.com/met_idpessoal.html
*Estou REALMENTE muito ocupado. Você pode ficar sem resposta em algum tópico. Se tiver sorte... talvez eu lhe dê uma resposta sarcástica.

*Deus deixou seu único filho morrer pendurado numa cruz, imagine o que ele fará com você.

Trancado