Deus e o Jardim das Delícias
Hélio Schwartsman
Já que a comparação que fiz entre missas e comportamentos histéricos em minha coluna da semana passada irritou bastante gente, proponho hoje desenvolver um pouco mais o tema.
Convenhamos que religião e nosso conhecimento do mundo não andam exatamente de braços dados. De um modo geral, virgens não costumam dar à luz (especialmente não antes do desenvolvimento de técnicas como a fertilização "in vitro") e pessoas não saem por aí ressuscitando. Em contextos normais, um homem que veste saias e proclama transformar pão em bife sempre que dá uma espécie de passe seria prudentemente internado numa instituição psiquiátrica. E não me venham dizer que a transubstanciação é apenas um simbolismo. Por afirmar algo parecido --a "impanatio"--, o teólogo cristão Berengar de Tours (c. 999-1088) foi preso a mando da Igreja e provavelmente torturado até abjurar sua teoria. Ele ainda teve mais sorte que o clérigo John Frith, que foi queimado vivo em 1533 por recusar-se a acatar a literalidade da transformação.
Quando se trata de religião, aceitamos como normais essas e muitas outras violações à ordem natural do planeta e à lógica. A pergunta que não quer calar é: por quê?
Ou bem Deus existe e espera de nós atitudes exóticas como comer o corpo de seu filho unigênito ou o problema está em nós, mais especificamente em nossos cérebros, que fazem coisas estranhas quando operam no modo religioso. Fico com a segunda hipótese. Antes de desenvolvê-la, porém, acho oportuno lembrar que a própria pluralidade de tabus ritualísticos depõe contra a noção de Verdade religiosa.
Se existe mesmo um Deus monoteísta, o que ele quer de nós? Que guardemos o sábado, como asseguram judeus e adventistas; que amemos ao próximo, como asseveram alguns cristãos; que nos abstenhamos da carne de porco, como garantem os muçulmanos e de novo os judeus; ou que não façamos nada de especial e apenas aguardemos o Juízo Final para saber quem são os predestinados, como propõe outra porção dos cristãos?
Talvez devamos eliminar os intermediários e extrair a Verdade diretamente nos livros sagrados. Bem, o Deuteronômio 13:7-11 nos manda assassinar qualquer parente que adore outro deus que não Iahweh; já 2 Reis 2:23-24 ensina que a punição justa a quem zomba de carecas é a morte. Mesmo o doce Jesus, fundador de uma religião supostamente amorosa, em João 15:6, promete o fogo para quem não "permanecer em mim".
E tudo isso em troca do quê? A Bíblia é relativamente econômica na descrição do Paraíso, mas o nobre Corão traz os detalhes. Lá já não precisamos perder tempo com orações e preces, poderemos beber o vinho que era proibido na terra (Suras 83:25 e 47:15), fartar-nos com a carne de porco (52:22) e deliciar-nos com virgens (44:54 e 55:70) e "mancebos eternamente jovens" (56:17). O Jardim das Delícias parece oferecer distrações para todos os gostos, mas, se banquetes, prostíbulos e saunas gays já existem na terra, por que esperar tanto... --poderia perguntar-se um hedonista empedernido.
Volumes e mais volumes podem ser escritos para apontar as incoerências e desatinos dos chamados textos sagrados. Se acreditamos que um Deus pessoal chancelou ou ditou cada uma dessas obras, temos, na melhor das hipóteses, um Ser Supremo com transtorno dissociativo de identidade, também conhecido como personalidade múltipla. Espero que, no fim dos tempos Ele esteja judeu de novo. Tenho um primo que faria bom uso do Paraíso...
Voltando às coisas sérias, uma possibilidade mais plausível é que o chamado cérebro espiritual, os módulos neuronais que criam e processam ideias religiosas, seja menos permeável aos circuitos lógicos. Quem faz uma interessante análise do problema é o médico e geneticista americano David Comings em seu monumental "Did man create God?", uma ampla revisão de quase 700 páginas em que o autor esmiúça o caso de Deus sob todas as vertentes da ciência, em especial a neurologia.
Para ele, ao contrário do mais provocativo Richard Dawkins, a religião dá prazer, foi fundamental na evolução de nossa espécie e só será extinta quando o último homem morrer. Mais importante, Comings acredita que os cérebros racional e espiritual, embora funcionem de modo independente um do outro, podem de algum modo ser conciliados no que o autor chama de "espiritualidade racional". Cuidado aqui, o espiritual é uma esfera que abarca a religião, mas é mais ampla do que ela. Inclui outras tentativas de tocar a transcendência.
Num resumo algo grosseiro da mensagem central de Comings, só o que precisaríamos fazer é admitir que foi o homem que criou a ideia de Deus e escreveu os livros supostamente sagrados. Assim, nenhuma religião é verdadeiramente "a Verdadeira" ou intrinsecamente superior às concorrentes. Já não é necessário que guerreemos para descobrir se é o Deus cristão ou muçulmano que está certo. No limite, entregamos Deus para conservar uma espiritualidade menos belicosa, que nos permita a experimentar a transcendência a baixo custo.
É uma proposta engenhosa, mas, receio, muito difícil, quase impraticável. O monoteísmo já traz em germe a ideia de que existe um único caminho para a salvação e todo os que não o seguem estão condenados. Embora a maioria das pessoas consiga enxergar e valorizar as semelhanças entre os Deuses das várias religiões, sempre emergirão grupos mais intolerantes que exigirão o exclusivismo. Por paradoxal que pareça, não se os pode acusar de irracionais. Eles apenas levam realmente a sério o que está escrito. Numa abordagem puramente lógica, o Deus dos católicos e o de Calvino, por exemplo, não podem estar certos ao mesmo tempo. O conflito é uma decorrência do cérebro racional processando uma ideia espiritual.
É claro que podemos e devemos incentivar posições pró-tolerância como a de Comings. Os níveis de guerras religiosas variaram ao longo das épocas, num processo que certamente tem algo a ver com o modo mais ou menos pluralista utilizado pelos clérigos em suas prédicas. Não devemos, contudo, ser ingênuos a ponto de imaginar que o conflito possa ser extinto. O mundo é um lugar cheio de problemas.
De minha parte, embora ímpio contumaz, também acredito em transcendência. Para mim, ela está em atividades biologicamente inúteis às quais nos dedicamos e atribuímos valor, como literatura, música, pintura, filosofia e, por que não?, teologia. Elas podem ser extremamente prazerosas e, no limite, preencher nossas vidas com um significado que a natureza apenas não lhes dá. Mas não é porque a literatura nos leva à transcendência que devemos achar que Aquiles ou Brás Cubas existem.
* Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pens ... 5384.shtml
Deus e o Jardim das Delícias - Hélio Schwartsman
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Mais uma do Hélio Schwartsman
07/02/2008
A fé na ciência
Minha coluna da semana passada, em que defendi a ciência de ataques neocriacionistas e "humanitários", gerou mais controvérsia do que eu poderia supor. Leitores questionaram-me acerca da eugenia, das bases epistemológicas do darwinismo, do caráter laico do Estado e até da validade do discurso científico. Acreditar na ciência, sugeriram alguns, exige tanta fé quanto crer em Deus.
Será? Aceito a provocação, de modo que vou tentar mostrar hoje por que a ciência não é uma religião.
Comecemos pelas semelhanças. Como qualquer um que já abriu um livro de epistemologia sabe, a ciência busca seus fundamentos em meia dúzia de postulados, ou seja, de premissas que, a exemplo dos dogmas religiosos, são tomadas como auto-evidentes, isto é, consideradas verdadeiras sem necessidade demonstração.
Para o monoteísmo, sentenças como "Deus criou o mundo" constituem verdades inquestionáveis. Já na ciência, quem desempenha esse papel são princípios como o de identidade e o de não-contradição. O primeiro afirma que, se A=A, então A=A, e o segundo reza que, se A=não-B, na ocorrência de A não ocorre B, e vice-versa. Convenhamos que não são idéias revolucionárias e nem mesmo particularmente brilhantes, mas já aí começam a emergir algumas das diferenças entre ciência e religião.
Um juízo como "Deus criou o mundo" é contingente, ou seja, eu posso, ainda que apenas no plano da lógica, conceber um mundo criado pelo acaso, pelo diabo ou até pelo presidente Lula ("nunca antes na história desse universo..."). Já os postulados científicos são em tese mais fortes, pois lidam com juízos necessários: para imaginar que uma coisa seja diversa dela mesma, eu preciso renegar ou pelo menos suspender os fundamentos da lógica.
Até aqui, a vantagem é da religião. Ela já está emitindo pareceres sobre o mundo, enquanto a ciência permanece presa ao reino das abstrações matemáticas. Se queremos que a ciência fale sobre o mundo --e, para possuir alguma utilidade, ela tem de fazê-lo--, precisamos dar um passo temerário. Precisamos autorizá-la a lidar com induções, ou seja, admitir que, partindo de casos particulares observados, proceda a generalizações. Exemplo: o sol nasceu hoje e em todos os dias que antecederam o dia de hoje, logo, o sol nascerá também amanhã.
Ao aceitar esse tipo de raciocínio, conquistamos o direito de proferir juízos sobre a realidade física, mas sacrificamos o plano sólido das certezas matemáticas no qual antes caminhávamos. Com efeito, o fato de o sol ter nascido todos os dias no passado não encerra a garantia lógica de que também nascerá amanhã. Isso é no máximo muito provável, mas de maneira alguma necessário.
Por paradoxal que pareça, esse súbito rebaixamento do grau de certeza com que lidam as ciências é uma excelente notícia. Juízos científicos tornam-se daqui em diante verdades provisórias. Não contam mais com nenhum tipo de garantia lógica, uma vez que se baseiam em meros encadeamentos entre experiências passadas e raciocínios generalizantes --processo que sabemos falível e propenso a erro.
Assim a ciência, diferentemente da maioria das religiões, perde o direito até mesmo de pretender afirmar verdades acabadas. Tudo que ela pode fazer é gerar hipóteses a ser testadas e refutadas empiricamente. Quando essas suposições passam muito tempo sem ser cabalmente desmentidas, como é o caso da evolução mediante seleção natural, dizemos que são corroboradas. É claro que esse é um processo em aberto, pois o fato de não terem sido refutadas até aqui não encerra a garantia de que não o serão amanhã. Isso é o mais perto da "prova" que a ciência pode chegar.
Essa precariedade epistemológica cerca toda a ciência, do neordarwinismo, à chamada lei da gravidade. Embora não ouçamos com muita freqüência gente afirmando que a gravidade é "só uma teoria", é exatamente isso que ela é. O que o neocriacionismo travestido de 'design inteligente' faz é embaralhar o sentido de teoria em suas acepções fraca (a do dia a dia) e forte (epistemológica) para, em meio à confusão conceitual, semear seus pressupostos algo dogmáticos. O fato de o neoevolucionismo apresentar, como toda teoria, algumas lacunas de maneira alguma nos autoriza a inferir um deus logo à primeira dificuldade.
A incerteza e a subseqüente maleabilidade da ciência vão ainda mais longe. No limite, ela admite até que seus próprios "dogmas" sejam revistos. Algumas hipóteses da mecânica quântica, por exemplo, vão de encontro ao princípio da não-contradição. Seria como se a religião negasse Deus em determinadas situações. Os dogmas da ciência se articulam de maneira tão particular que a tornam o menos dogmático dos discursos.
É claro que estamos aqui falando na teoria. No mundo real, encontraremos cientistas tão fanáticos quanto o mais exaltado dos padres inquisidores. Encontraremos indivíduos que de bom grado mandariam queimar todos os que ousassem desafiar o "mainstream" científico. Ainda assim, é digno de nota o fato de que, enquanto a religião só existe com o dogma, a ciência como método trabalha para falsear idéias aceitas e noções estabelecidas --em uma palavra, para falsear dogmas. Não acho que eu avance muito o sinal quando afirmo que essa diferença ajuda a explicar o fato de que mesmo o mais tacanho positivismo produziu menos fogueiras do que a mais tolerante das religiões.
Podemos eventualmente nos deparar com um cético radical, para o qual dogmas, postulados e axiomas são todos indiscerníveis entre si e valem a mesma coisa, isto é, nada. É oportuno lembrar que o filósofo e matemático austríaco Kurt Gödel (1906-78), com seus teoremas da incompletude, se não colocou em xeque, ao menos criou dificuldades para a própria lógica formal. Mas, mesmo nesse registro hiperbólico, a ciência apresenta vantagens sobre as religiões.
Ela tem como subproduto tecnologias, que constituem uma "prova" indireta não tanto de sua "exatidão", mas pelo menos de que o métodos científico leva a algum lugar. O foguete que eu construo com base em minhas idéias sobre a física, desde que corretamente lançado, me levará à Lua quer eu seja judeu, ateu, católico, muçulmano ou corintiano. Já com as religiões, as mesmas ações que levariam o partidário de uma ao paraíso atiram-no no inferno segundo a doutrina da outra.
Tomemos uma dessas medidas indiretas, a evolução da expectativa de vida ao nascer. Estima-se que o tempo médio de vida do homem de Neanderthal fosse de 20 anos. No Paleolítico Superior, o Homo sapiens chegava a algo como 33 anos. Na Idade do Bronze, com o advento da agricultura e o aumento do tamanho dos assentamentos humanos (mais doenças e guerras mais mortíferas), a expectativa de vida cai para 18 anos.
Noções de higiene desenvolvidas por gregos e romanos (saneamento) conseguem elevar a média para 36-45 (Grécia clássica) 20-30 (Roma clássica). Mas, no século 20 e início do 21, na chamada era científica, assistimos a um um verdadeiro salto da esperança de vida, que atinge os 67 anos (média global), quase 80 se considerarmos só os países desenvolvidos. Um cético hiperbólico diria que a correlação nada prova. Um dogmático religioso diria que este é o plano de Deus. Já eu prefiro atribuir tal avanço a subprodutos da ciência como antibióticos, vacinas e grandes excedentes agrícolas. Em poucas palavras, embora a ciência esteja conosco de forma razoavelmente bem estabelecida há apenas 200 anos, já fez mais pelo bem-estar da humanidade do que todas as rezas e mandingas de religiosos durante milênios.
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Re: Deus e o Jardim das Delícias - Hélio Schwartsman
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31/01/2008
Ciência sob ataque
Se eu fosse exagerado, diria que a ciência brasileira está sob ataque. Como não sou, parece mais adequado afirmar que ela vem enfrentando percalços imprevistos. Há duas semanas a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, participou de um evento criacionista e, em seguida, defendeu o ensino de teorias "alternativas" ao darwinismo. Poucos dias depois, reportagem da Folha (só para assinantes) mostrava que cerca de uma centena psicólogos, advogados, antropólogos e educadores procurava, através de um abaixo-assinado, impedir um grupo de neurocientistas de levar a cabo pesquisa que pretende esquadrinhar o cérebro de 50 adolescentes homicidas de Porto Alegre em busca de marcadores biológicos.
Investidas anticientíficas não são propriamente uma novidade, que o digam Giordano Bruno e Galileu Galilei. Mesmo em tempos de maior liberdade intelectual, como a Grécia Antiga, experimentadores do quilate de Eratóstenes e Arquimedes enfrentavam um certo desdém de filósofos puramente especulativos, então mais afinados com o "Zeitgeist".
O inquietante no caso brasileiro é que os ataques partam, senão de aliados, ao menos de grupos e instituições que deveriam em tese apoiar a ciência. Afinal, Marina Silva, na condição de ministra, representa o Estado brasileiro. Já psicólogos, antropólogos e pedagogos, embora não costumem militar nas fileiras da "hard science", são --ou deveriam ser-- aquilo que antigamente chamávamos de "Geistwissenschaftler", ou seja, simplificando um pouco, cientistas sociais, os quais deveriam, pelo menos etimologicamente, estar comprometidos com o método científico.
Comecemos pelo caso mais gritante, que é o dos patrulheiros epistemológicos. De minha parte, considero a neurociência um campo fértil e promissor, do qual tem emergido muito material interessante para "insights" e reflexões. Admito, entretanto, que nem todo mundo precisa pensar como eu. É perfeitamente possível tachar sociobiologia, psicologia evolutiva e genética como "reducionistas" --o que quer que isso signifique. Mais até, é legítimo preocupar-se com o efeito que determinadas descobertas possam ter sobre a sociedade. Imagine-se, por hipótese, que se desenvolva um método de diagnosticar, ainda antes do nascimento, indivíduos mais propensos a tornar-se criminosos quando adultos. Tais embriões poderiam ser abortados? Se sim, por decisão de quem? Do Estado? Dos pais? São questões apaixonantemente controversas. E, por mais intransigentes que possamos ser na defesa da vida e da pluralidade humanas, nada justifica deixar de realizar um estudo cujos protocolos éticos se mostrem adequados, como é o caso do experimento gaúcho. Ele não implica nenhum risco ponderável para as "cobaias" e só ocorrerá se os pesquisadores obtiverem o consentimento esclarecido dos jovens e de seus pais ou responsáveis e também a autorização da Justiça.
Não é porque os nazistas cometeram atrocidades evocando a genética --equivocadamente, ressalte-se-- que devemos renunciar a compreendê-la. Se um dia investigações nesse campo levarem a tecnologias eugênicas, precisaremos discutir caso a caso a moralidade de sua aplicação. De minha parte, como princípio geral, acho que pais devem poder escolher se vão ou não ter filhos com determinadas doenças incapacitantes.
Qualquer que seja nossa posição pessoal, quer acreditemos que a vida é um dom de Deus, quer a consideremos o encontro inopinado de átomos de carbono com um pouco hidrogênio e oxigênio, não faz muito sentido que um cientista social --ou qualquer outra pessoa minimamente ilustrada-- se oponha à realização de um experimento capaz de ampliar nosso conhecimento por temor das implicações que tal conhecimento possa ter. Se os nossos solertes "Geistwissenschaftler" estão tão certos de que a empreitada dos neurocientistas dará com os burros n'água --possibilidade bastante real-- que critiquem, como convém ao método científico, os resultados do experimento, não sua realização. Se estão tão certos de que a neurociência encerra o ovo da serpente, que o demonstrem com base em evidências e encadeamentos lógicos, não com ilações e palavras de ordem. Minha sensação é a de que essa gente, ao defender a proibição pura e simples, repete os argumentos com os quais a Igreja Católica impedia a dissecação de cadáveres e promovia outros vetos francamente obscurantistas.
Voltemos agora ao mais delicado caso do criacionismo ministerial. Marina Silva tem, como cidadã, o direito de professar a fé que bem desejar. Mais até, não é porque se tornou ministra de um Estado nominalmente laico que precisaria deixar de comparecer aos cultos de sua igreja, a Assembléia de Deus. Ela, entretanto, avançou o sinal quando participou do 3º Simpósio sobre Criacionismo e Mídia, promovido pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo, e, à saída, ainda deu uma entrevista na qual, no melhor estilo dos "neocons" dos EUA, sustentou que visões de mundo criacionistas devem ser ensinadas nas escolas, para que os alunos possam decidir por si mesmos.
Estamos aqui diante de dois problemas. Em primeiro lugar, Marina deveria ter-se recusado a participar do evento, pela simples razão de que não foi convidada para falar na condição de simples fiel da Assembléia, ou teóloga, mas sim por ser ministra do Meio Ambiente, ou seja, uma representante do Estado. E, nos termos do artigo 19 da Constituição, é vedado ao Estado "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança". Essa, entretanto, é a falta menos grave, que seria facilmente perdoável, se a ministra não tivesse em suas declarações abraçado também a pedagogia ultraconservadora, que pretende transformar fatos comprováveis em comprovados em questões abertas a escrutínio religioso.
Não conheço as opiniões hidrostáticas do papa, mas não importa o que ele pense ou decrete acerca da fervura da água, o fato é e será que, em condições normais de temperatura e pressão, ela ferve a 100ºC. De modo análogo, independentemente do discurso religioso, as bases gerais da teoria evolutiva mais ou menos como postulada por Charles Darwin no século 19 estão cabalmente comprovadas. Falácias criacionistas não vão mudar isso. O rol de evidências pró-Darwin é extenso. Vai da totalidade do registro fóssil até aqui coletado --e nunca falseado por nenhum despojo geologicamente impossível_ até a capacidade de fazer previsões sobre o futuro, como o surgimento de cepas de bactérias resistentes a novas classes de antibióticos.
O criacionismo em sua mais nova roupagem --o tal do design inteligente-- sustenta que a evolução é "apenas" uma teoria e cheia de supostas dificuldades, como se tudo em ciência não fosse "apenas uma teoria", aí incluída a teoria da gravidade. Seu argumento básico é o de que seres vivos são complexos demais para ter surgido "por acaso": se eu encontro um relógio, a sutileza e a precisão das roldanas e engrenagens, me autoriza a supor um relojoeiro; de modo análogo a arquitetura de estruturas como asas e olhos permitiria inferir um Criador.
"Non sequitur", que, em bom português, significa: é pura bobagem, coisa de quem não entendeu (ou fingiu que não entendeu) o bê-á-bá do darwinismo. Embora mutações nos seres vivos de fato ocorram aleatoriamente, a seleção subseqüente --que conserva o que é útil e despreza o que não o é-- nada tem a ver com acaso. Ela é, se quisermos, o avesso do acaso. Trata-se, na verdade, de um dos poucos processos naturais que conseguem simular o trabalho de projetistas. Só que funciona ao contrário. Ao preservar traços mesmo que milimétricos de utilidade e descartar todas as mutações que não servem para nada (a maioria delas resulta em cânceres, é oportuno lembrar), a seleção consegue, ao longo de inúmeras gerações, produzir estruturas que passam por entidades concebidas por uma inteligência.
O que o criacionismo faz é, apoiando-se nessa ilusão, impingir raciocínios capengas que soarão convincentes a alunos com pouco treinamento epistemológico e já socialmente orientados a "aceitar a palavra de Deus". Admitir que padres e pastores profiram tais sandices em epistemológicas em seus templos é uma necessidade democrática. Mas não faz nenhum sentido repeti-las nas salas de aula de um Estado laico. Fatos sobre o mundo não são matéria que se decida com base em convicções pessoais ou maiorias.
E, infelizmente, os neocriacionistas não se contentam em acreditar em Deus. Querem, sabe-se lá por qual motivo, revestir seu delírio de vestes científicas. Só que estas não lhe cabem.
O grande erro da comunidade científica norte-americana foi ter esperado tempo demais antes de reagir às investidas criacionistas, deixando que o discurso pseudocientífico e aparentemente democrático prosperasse e ganhasse terreno. Infelizmente, nós, no Brasil, estamos repetindo esse equívoco. Vale lembrar que o pio casal Garotinho já introduziu o ensino do criacionismo nas escolas da rede pública do Rio de Janeiro. Consertar as coisas agora será um deus-nos-acuda.
Não deixa de ser irônico que os mesmos sociólogos, advogados e psicólogos que até há pouco se erigiam em defensores máximos das liberdades agora propugnem pela censura a pesquisas, e os mesmos religiosos criacionistas que poucos séculos atrás queimavam livros e pessoas agora recorram à liberdade de pensamento para apregoar tolices na escola pública. Não acredito em deuses, mas, é forçoso reconhecer que eles têm um senso de humor infernal.
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Re: Deus e o Jardim das Delícias - Hélio Schwartsman
Devemos ensinar nas escolas a teoria "alternativa" de que os negros são inferiores aos brancos e deixar que os alunos decidam por si mesmos?