Então vejamos o que pensa, defende, fez e faz uma destas profissionais. Mãe, esposa, avó e escritora.
EM DEFESA DE QUEM PRATICA A PROSTITUIÇÃO
Ailton Magioli - EM Cultura
Seção : Arte e Livros - 19/04/2009 08:26
Prostituta Gabriela Leite defende sua profissão.
Ela luta para melhorar as condições de vida das colegas e lança livro para enfrentar o preconceito contra o ofício mais antigo do mundo
Ela adora homem. “Sexo sempre foi prioridade na minha vida”, avisa. Gosta de falar o que pensa e de preservar a liberdade, acima de tudo. Autora de Filha, mãe, avó e puta – A história de uma mulher que decidiu ser prostituta (Objetiva), a paulistana Gabriela Leite, de 58 anos, vai direto ao assunto e leva o leitor, com clareza e objetividade, a seu mundo “proibido”. Ex-estudante de filosofia e sociologia da Universidade de São Paulo (USP), foi na Boca do Lixo que Gabriela enfrentou os próprios preconceitos ao decidir se prostituir, aos 22 anos. Trabalhou no Rio de Janeiro, onde atualmente administra a organização não governamental Davida e a grife de roupas Daspu, e em Belo Horizonte.
Nos anos 1980, Gabriela atuou na zona boêmia da capital mineira, nos hotéis Lírio e Catete. Comparada à holandesa Amsterdã por manter hoteizinhos de programa em pleno Centro, BH atrai Gabriela até hoje. “Adoro a cidade, a zona boêmia é uma região muito aprazível para trabalhar, por se tratar de uma rua aberta em que há todo tipo de comércio”, elogia. Ela revela que seu livro enfrentou a ira de alguns belo-horizontinos, por dizer que as transas por aqui são “bem rapidinhas”.
Mãe de duas filhas e avó, desde 1991 ela vive com o jornalista Flávio Lenz, de 56 anos. Gabriela é a defensora das prostitutas brasileiras e latino-americanas. “Decidi escrever o livro porque, além de comum, minha vida é complexa como todas as outras”, diz. Depois de militar no PT carioca, acabou desistindo da carreira. “Ninguém é perfeito, eu já fui petista”, afirma, convicta de que a sua militância passa longe dos partidos. No caso dela, remonta a 1979, quando o delegado Wilson Rizzetti, ligado ao odiado Sérgio Fleury, começou a perseguir prostitutas, na Boca do Lixo paulistana, e sumiu com algumas delas. Gabriela também está à frente da Rede Latino-Caribenha de Trabalhadoras do Sexo (Retrasex).
Sua história é surpreendente, porque a senhora chegou à prostituição depois de uma decisão longamente amadurecida. Como isso se deu?
É, conheço muita gente que chega à prostituição com uma decisão assim, amadurecida. As pessoas encontraram definição para uma questão complexa. A antiga imagem de prostituta é a da mulher que não gosta de trabalhar, de sem-vergonha. Fora a ideia de que as pessoas são levadas por conta da questão social. Acaba ficando só nisso.
Como resolveu a questão em família?
Em se tratando de família, tudo é difícil. Principalmente quando se faz uma opção como a minha. Eu já tinha uma relação conflitante, queria a liberdade que minha mãe achava que não deveria ter. Então, foram muitos altos e baixos, mas hoje convivemos muito bem. Somos uma família de mulheres. Escrever o livro me fez reconciliar internamente com a minha mãe. Ela é uma mulher fortíssima, sempre quis o melhor para nós. Mas uma coisa eu digo: é difícil assumir a prostituição, por conta do estigma e do preconceito. Depois que você assume, as coisas se tornam mais fáceis. Duro é ter vida dupla.
O que leva uma pessoa à prostituição?
O que leva a qualquer outro trabalho. Fui porque gosto da noite, gosto da vida boêmia. Sou da geração da virada, fiquei jovem em plena revolução sexual, o que se deu com o advento da pílula anticoncepcional. Ficava ali, vendo as mulheres da Boate La Licorne, de São Paulo, chegando tarde da noite. Senti vontade de ter a mesma vida.
Mas não se trata de atividade de alto risco?
Viver é um risco, você sai na rua e já está se arriscando. Tem um pouco mais de risco do que outras profissões devido à escuridão e à marginalidade, por ser uma coisa escondida debaixo do tapete. Então, onde se proíbe algo, cria-se a máfia. Aí você tem a terra de ninguém, questão muito séria na prostituição. Principalmente na baixa prostituição. Os riscos são maiores. Mas a gente luta para mudar isso. Estou há quase 30 anos militando para mudar toda essa história.
Qual é a principal violência sofrida pelas prostitutas?
A policial, que é muito séria em algumas cidades. Mas já melhoramos muitíssimo. O fato mais importante é mostrar a cara e dizer: ‘Olha, nós existimos, não adianta tanta hipocrisia. Nós estamos aí’. Estamos fazendo o levantamento da violação dos direitos humanos da prostituta em 11 capitais do país. O que já vimos da pesquisa-piloto, no Rio, é que a maior violência é a policial, além, claro, da familiar, da marital e a da própria clientela. O problema da polícia é a corrupção. A prostituição é algo tolerado, pois as casas são proibidas. Para poder funcionar, os donos de hotel pagam para a polícia. A prostituta que está ali, como não tem a quem reclamar de nada – trata-se de terra de ninguém –, acaba vítima de violência. No interior, ainda é terrível.
A figura do cafetão ainda é forte?
As meninas costumam dizer que o serviço, hoje, é feito por cafetão de prato de comida, diante da quantidade de homens desempregados que estão ali. Antigamente, cafetões eram fortíssimos e fizeram história. Alguns tinham até 20 mulheres. Em São Paulo, um deles virou grande fazendeiro. Quando entrei no meio, já eram mais ou menos decadentes. Hoje não há mais aqueles fortões, há apenas caras que estão precisando de dinheiro e as bobas que dão dinheiro para eles.
E as cafetinas?
As cafetinas são os patrões, os donos do bordel. A gente quer colocar essa gente na regularidade da lei, para que pague todos os deveres para com as prostitutas. Elas ganham muito dinheiro com as meninas, sem qualquer vínculo trabalhista. Lutamos, por exemplo, por melhores condições higiênicas. A maioria das mulheres que trabalham em zona fala alto e gritando, pois a música altíssima causa problemas sérios de audição.
Fala-se muito da relação entre poder e prostituição. Volta e meia, vêm à tona escândalos envolvendo políticos e prostitutas. O que há de real nisso?
As altas casas de prostituição são frequentadas por políticos e por poderosos. Às vezes, as mulheres são contratadas para ir a festas. Então, acaba-se sabendo de histórias como a da famosa agenda daquela cafetina de Brasília. Em Bauru, no interior de São Paulo, havia uma cafetina cuja casa era frequentada por Juscelino Kubitschek. Os caras frequentam a prostituição, mas, quando chegam ao Congresso, não querem legislar em favor das prostitutas. Para se ter uma ideia, o programa mais barato no Café Photo, em São Paulo, custa de R$ 1,5 mil a R$ 2 mil. Não é para qualquer um, concorda?
O que a senhora tem a dizer sobre o tráfico de mulheres?
Estamos discutindo essa questão na ONU. Estive em Washington há poucos dias para isso. Tráfico de seres humanos é uma coisa; prostituição é outra. Todos nós devemos lutar contra o tráfico. Já prostituição é outra questão, como a exploração sexual de crianças e adolescentes. Nós, prostitutas, podemos ajudar no combate a tudo isso, desde que as pessoas entendam que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Não adianta dizer que, em nome da luta contra o tráfico, vamos acabar com a prostituição. Isso é tapar o sol com a peneira.
E o turismo sexual?
Gostem ou não gostem as feministas, se todo mundo no Rio de Janeiro – camelô, garçom, dono de bar, dono de loja – ganha dinheiro com turismo em Copacabana, a prostituta também pode ganhar o seu." (Estado de Minas, 19/04/2009)
http://www.gpgbh.com.br/defesadasprostitutas.htm