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Tags: totalitarismo cripto-totalitarismo
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Placa de trânsito nos EUA: Segunda feira, 6 da tarde, quero descarregar meu caminhão. Posso estacionar aqui?
cript(o)-
[Do grego kryptós]
1.=’escondido’, ‘oculto’, ‘obscuro’.
Quando somos oprimidos por um sistema que nos impõe regras cristalinamente draconicanas, como “está imposto toque de recolher e quem for encontrado fora de sua residência após as 6 da tarde será sumariamente executado”, fica claro (1) que algo opressivo está ocorrendo e (2) como articular de que opressão gostaríamos de nos libertar.
As pessoas, porém, não gostam muito de serem oprimidas, e tendem a reagir. É verdade que sistemas totalitários são baseados na força e não precisam realmente de justificativas, mas, mesmo que estejamos no comando de um sistema convictamente e desavergonhadamente totalitário, existem formas mais fáceis e mais difíceis de fazer as coisas, e, nem que seja por motivos puramente pragmáticos, é em geral conveniente fazer da forma mais fácil. Afinal de contas, mesmo que não haja escrúpulos em usar de coerção, esta continua custando recursos. Balas e soldados custam dinheiro. E se não estamos num sistema desavergonhadamente totalitário, há motivos mais fortes ainda para usar subterfúgios quando se adotam políticas opressivas.
Assim sendo, uma das providências mais fundamentais que todos os sistemas com tendências totalitárias buscam fazer é transformar a percepção da opressão, de forma que esta passe despercebida ou pareça justificada. Isso pode ocorrer de muitas formas, desde sugestões sutis e subliminares até a mais descarada manipulação da linguagem, como repetir ad nauseam slogans do tipo “Liberdade é Servidão” ou chamar empregos sem carteira assinada de "trabalho escravo". Outro exemplo é a inundação do imaginário popular com a noção de que os atos opressivos são na verdade absolutamente essenciais e inevitáveis para prevenir alguma grande catástrofe, repelir algum inimigo perigosíssimo, ou atingir algum objetivo promovido como tão belo e autoevidentemente desejável que o próprio ato que questionar os meios usados para atingi-lo é suspeito. Uma terceira forma, particularmente eficaz e cruel, é promover a introjeção, pelo grupo oprimido, da sua identidade como inferior e merecedor de opressão. Os oprimidos, carregados de culpa e eviscerados de sua autoestima, passam a acreditar que são mesmo uma droga e docilmente ou mesmo avidamente aceitam a opressão, chegando mesmo em certos casos a idolatrar e idealizar seus opressores.
Mas existem outras formas de implementar políticas extremamente opressivas, especialmente úteis em regimes políticos em que não se pode ser escancaradamente totalitário. Essas baseiam-se em alterar a percepção do ato opressivo não através de propaganda ou da retórica, como nos casos acima, mas de uma reformulação do ato em si mesmo, dando-lhe uma forma oculta e críptica. A essas formas chamarei de cripto-totalitarismo. Elas consistem em promover políticas cujos efeitos são os mesmos (ou piores) efeitos que os da opressão direta, mas são sentidos de forma indireta e convoluta, e, mesmo quando se percebe que algum tipo de opressão está ocorrendo, pode não ser imediatamente óbvio a quem responsabilizar ou o que precisa ser mudado. Adicionalmente, pela sua própria natureza, tal estratégia minimiza a necessidade de dispender esforços com um discurso para mascarar a natureza opressiva do ato. Pelo contrário: tal discurso em geral é até contraproducente, posto que o truque de prestidigitação consiste precisamente em a opressão ocorrer de forma tão obscura que passa desapercebida; é melhor não chamar a atenção, para que o ato sequer possa ser interpretado como opressivo. Tentar justificá-lo somente levantará a questão de sequer haver algo que precise ser justificado.
Uma forma de cripto-totalitarismo é tomar medidas cujas consequências lógicas inevitáveis são opressivas mas não são imediatamente óbvias.
Um exemplo clássico é o seguinte: todo governo historicamente relevante até hoje se financiou direta ou indiretamente através do confisco de recursos dos seus governados/súditos sob a forma de impostos. Suponhamos que um governo supostamente democrático ou representativo queira confiscar uma porção ainda maior dos recursos da população sob sua influência ou autoridade, mas que a receptividade a isso seja (compreensivelmente) baixa ou inexistente. Suponhamos que mesmo que o tal governo pudesse aprovar uma medida desse tipo, não deseje passar pelo desgaste político e de popularidade de fazê-lo. O que historicamente muitos governos fazem nesse caso? Ora, é fácil. Imprimem mais dinheiro. Note, para que isso sequer seja possível, é necessário já se ter chegado num estágio de sofisticação (ou, diriam alguns, desvirtuação) da economia tal que (1) as transações econômicas não sejam mais realizadas utilizando diretamente commodities de valor mais ou menos universal e (2) a emissão de dinheiro nem sequer em tese esteja limitada, lastreada ou associada a algum tipo de recurso ou realidade tangível. Satisfeitos esses requisitos, e estando o governo diretamente no controle da emissão de moeda corrente, ele pode então financiar o próprio déficit literalmente imprimindo mais dinheiro. Porém, como qualquer um com noções básicas de economia já teve oportunidade de apreciar, isso inevitavelmente resulta na depreciação do valor do dinheiro, significando que na prática este é simplesmente um método convoluto… de o governo transferir para si uma fração de todos os recursos que estiverem investidos (concreta ou virtualmente) naquela moeda. Hoje em dia esse tipo de situação é tão universalmente reconhecido como problemático que é praticamente um consenso ser essencial retirar do governo a prerrogativa de emitir quantidades ilimitadas de moeda correnta (e para isso existem diversas soluções, uma delas sendo a criação de um banco central “independente”). Note-se que o confisco realizado pela emissão descontrolada de moeda é tão real quanto, digamos, um aumento de imposto sobre a renda; apenas ele é mais sutil, e também mais perverso na medida em que ocorre sem a possibilidade de resistência.
Esse método porém é tão desgastado que não pode mais realmente ser chamado de cripto-totalitarismo, dado não ser mais de forma alguma obscuro. Mas ele ilustra o princípio: tomar medidas nas quais aparentemente nenhum direito está sendo cassado, nada está sendo confiscado, ninguém está sendo roubado… e no entanto na prática é exatamente isso que está acontecendo.
Outro exemplo clássico, mas cujas consequências por algum motivo até hoje não são tão universalmente observadas quanto o prévio (embora já seja claramente discutido a nível por exemplo da OMC), é a concessão de “subsídios” para “estimular” ou “proteger” certas atividades na economia. Novamente, a princípio parece que se está “dando” algo, então como isso pode ser opressivo? Ora, o governo não tem uma máquina de gerar recursos magicamente do nada, então todo ato — e todo gasto — do governo é na verdade um uso do poder coercitivo para nos forçar a fazer algo. Por vezes isso pode ser justificado; mas nunca devemos esquecer que é o que está acontecendo. Então quando o governo subsidia, digamos, os plantadores de cana-de-açúcar através de descontos nos impostos, e então subsequentemente a produção de álcool, e finalmente a venda de álcool combustível, talvez a maior parte das pessoas não se sinta oprimida ou coagida a fazer nada. Agora imagine se ao invés disso o governo dissesse: quem comprar carro a gasolina receberá uma multa toda vez que encher o tanque. E aliás, quando não encher também. A única forma de resgatar parte do valor dessa multa é comprando álcool. Aí já não pareceria tão bom, concorda? Mas isso já é precisamente o que está acontecendo, apenas de forma convoluta. Subsídios são uma forma tortuosa de multar quem não consumir certos produtos ou serviços.
Mas essa é apenas uma das modalidades de cripto-totalitarismo. Uma outra via muito eficaz consiste em escrever leis ininteligíveis, obscuras e confusas, criar infinitos níveis administrativos e jurisdições, e cultivar tal profusão de regras que no final das contas ninguém sabe exatamente o que é prescrito e mandado pela autoridade vigente. Isso tem múltiplas consequências perversas. Uma das piores é provavelmente permitir — em geral intencionalmente! — uma inaceitável elasticidade no uso de arbítrio da autoridade vigente sobre como aplicar a lei. Paralemente, mesmo quando não há abuso desse arbítrio, outra consequência é criar — mais uma vez, em geral intencionalmente! — uma constante insegurança do cidadão comum quanto a estar numa posição legalmente segura e sustentável. Isso é extremamente opressivo, posto que dessa incógnita vulnerabilidade evidentemente deriva uma onipresente e contínua hesitação em criticar ou questionar o governo ou as autoridades vigentes. De forma geral, não haver regras absolutamente claras, públicas e suficientemente simples sobre o que é ou não permitido é profundamente danoso às instituições.
Uma outra forma de cripto-totalitarismo que complementa as regras do jogo serem incompreensíveis é criar leis e regras claramente fora da realidade que teoricamente se aplicam a todos, mas que proíbem ou penalizam atividades tão amplamente disseminadas, exercidas e aceitas pela sociedade em geral que é ridiculo esperar que sejam seguidas. Considere leis como “é ilegal disponibilizar música com copyright na internet sob a pena de pagar cem mil dólares de indenização” ou “é proibido dirigir a mais de 100 km por hora nesta autoestrada com 1000km de comprimento, sob pena de ter sua carteira de motorista confiscada” ou “é proibido fumar certas plantas sob pena de ir para a cadeia”. Claro que é completamente impossível, absurdo e indesejável de fato aplicar e universalmente fazer valerem leis como essas. Eu não estou inventando; são leis reais. Existem, e são universalmente desrespeitadas, e nada acontece, e ainda bem que nada acontece, ou teríamos que mandar literalmente todo mundo pra cadeia. E antes que alguém diga que outras leis mais razoáveis também são desrespeitadas, esse desrespeito está longe de ser universal ou aceito. Não seria absurdo nem impensável mandar todos os homicidas ou estupradores para a cadeia. Por outro lado seria totalmente inacreditável mandar para a cadeia todos aqueles que fumam maconha. Então coloco aqui outro princípio básico: assim como no caso das leis ininteligíveis, leis cujo destino óbvio é serem universalmente desrespeitadas são profundamente danosas às instituições. São danosas porque por um lado criam uma ambiguidade sobre a legitimidade das instituições, mas também porque novamente, criam — não raro de propósito — oportunidades para exercício inaceitavelmente elástico de arbítrio da autoridade vigente. Se estamos todos acima do limite de velocidade, a polícia pode em princípio parar qualquer carro a qualquer momento. E multá-lo. Mesmo que o motivo real seja não ter ido com a sua cara. Postulo aqui que é indesejável que o estado tenha o poder de fato de multá-lo por não ir com a sua cara. Se somos todos criminosos em potencial, quem é que vai ser besta de criticar o governo?
Concluo observando que uma das várias definições interessantes de totalitarismo é a seguinte: um estado totalitário é aquele no qual tudo que não é obrigatório é proibido. Quando um estado está tentando ser totalitário mas por diversos freios sociais e politicos não pode abertamente sê-lo, ele frequentemente usa de cripto-totalitarismo para subrepticiamente criar tanto quanto possivel essa situação de fato, mesmo que não de direito. Há algo profundamente errado acontecendo quando um cidadão que quer obedecer a lei não tem certeza de se está conseguindo. Há algo profundamente errado quando não temos certeza do que é proibido e do que é permitido. Há algo profundamente errado quando passamos a hesitar em fazer qualquer coisa que não seja obrigatória por medo de que ela seja proibida.
Publicado originalmente em oindividuo.org.
FONTE: http://www.ordemlivre.org/textos/831
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