Sete dias no paraíso cinzento da Coréia do Norte

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Fernando Silva
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Sete dias no paraíso cinzento da Coréia do Norte

Mensagem por Fernando Silva »

"O Globo" 25/04/10

Se é assim na capital, se é isto que os estrangeiros podem ver, dá para imaginar o resto, o interior do país, onde eles não podem ir. Um país onde os dentistas usam brocas acionadas a pedal. Onde os doentes têm que ser enviados para se tratarem na China. Onde os 3 canais de TV são estatais e a programação se limita a elogios ao "eterno líder". Um país que sobrevive com a comida doada pelos "inimigos do povo" (mas isto não é dito ao povo).
Na terra proibida
Leonardo Aversa
Enviado especial • PYONGYANG,
Coreia do Norte

A primeira impressão que se tem da Coreia do Norte, vindo de Pequim, é a de um certo desolamento. Uma viagem no tempo, sendo mais lúdico. O aeroporto de Pyongyang não faria feio num filme B dos anos 1950.

Mas, como estamos no século XXI, o desolamento só aumenta. A cidade é cinza e desbotada. A única cor vem das milhares de fotos do “eterno líder”.


Sete dias no país do líder eterno

Kim il Sung inventou a filosofia/ideologia que conduz o seu governo e transmite a falsa impressão de liberdade: 'O homem é dono do seu destino, desde que o seu destino seja o mesmo da massa'

O eterno líder Kim il Sung é rechonchudo e o povo muito magro. Isso não costuma ser bom. Na chegada já me esperam um “guia” e um “tradutor”.

Eles serão a minha sombra nos próximos sete dias. Um só fala inglês e o outro só espanhol.

Tenho a nítida impressão que os dois falam os dois idiomas. Um vigia o outro e os dois me vigiam. Como “não” é igual nos dois idiomas, eles vão trabalhar em uníssono.

Kim il Sung inventou a “Juche”, que é a filosofia/ideologia que conduz o governo e, é claro, o país (oficialmente a Coreia do Norte é uma República Socialista Juche). A máxima da Juche é que todo indivíduo é responsável pelo seu destino. “O homem é dono de tudo e decide tudo” é a frase primordial. Mas a mesma filosofia Juche afirma que a dona da revolução é a massa. O homem é dono do seu destino, desde que o seu destino seja o mesmo da massa.

O transporte é precário: o metrô não é extenso e os poucos e velhos ônibus estão sempre abarrotados. E olha que a maioria prefere andar a pé ou de bicicleta. Por algum motivo misterioso não é permitido às mulheres andarem de bicicleta na capital. A versão oficial é que elas provocam acidentes por falta de atenção. Carros há poucos, a maioria modelos novos e caros, pertencentes ao corpo diplomático, às organizações internacionais e à elite do governo norte-coreano. Um ou outro táxi. Aquecimento também é considerado um luxo pequeno burguês. Numa temperatura entre 0 e 5 graus, nenhum prédio público liga o aquecedor. O resultado é que é bem mais frio dentro dos edifícios do que na rua.

Os prédios são imensos e, normalmente, só têm elevadores aqueles acima de oito andares.

Mas, num país com tantos apagões, pegar elevador é sempre uma temeridade. No térreo dos prédios normalmente há uma loja, estilo comunista (meia dúzia de produtos espalhados por imensas prateleiras). Nenhum anúncio, nenhuma propaganda.

Pessoalmente, tinha a ilusão de que uma cidade sem publicidade seria mais limpa visualmente.

E é. Mas o resultado é um pouco triste, tenho que confessar. À noite, a cidade é bem escura, seja pelos apagões seja porque há pouca luz nas ruas. As únicas coisas iluminadas, feericamente, são os monumentos dedicados aos líderes.

Não se veem cachorros ou gatos pelas ruas. Também segundo a versão oficial, a população de PyongYang percebeu que os cachorros soltam muitos pelos e que os gatos arranham os móveis. Então, voluntariamente, deixou de tê-los em casa. As pessoas se vestem de maneira sóbria, com roupas escuras.

Algumas mulheres usam um vestido típico coreano e um ou outro adolescente anda com roupas coloridas. Não há mendigos ou pedintes. Mesmo pessoas malvestidas são raras, ao menos na capital. No interior, a situação é diferente. Lá tudo é ainda mais cinzento e desbotado.

No campo, os poucos tratores são antiquíssimos e quase todo o trabalho é realizado manualmente.

Não se desperdiça um centímetro de terra.

Muitos casos de alcoolismo Ramiro Lavin, dono do RAC, o Random Access Club, um bar que fica na sede da WFP (World Food Program) das Nações Unidas, diz que a situação dos estrangeiros é difícil.

— As opções de lazer são mínimas, se é que o que há pode ser chamado assim.

Entende-se por que há muitos casos de alcoolismo. A maioria dos visitantes conta os dias para voltar para sua terra natal. Bastante compreensível.

Outro problema para os estrangeiros (é claro que também é um problema para os coreanos, mas estes não estão aqui porque querem) é a falta de bons médicos. Qualquer problema tem que ser resolvido na China. Um funcionário da Cruz Vermelha precisou de um dentista urgente em PyongYang e teve que encarar um que usava um obturador sem motor, movido a pedal.

O controle da informação é um ponto capital para o Querido Líder. Nada acontece sem o seu conhecimento. A mídia é completamente controlada e a internet, no conceito como foi criada, é inexistente. O que existe é uma intranet, onde nada pode entrar de fora. Mesmo assim é muito bem vigiada. Receber uma ligação do exterior é muito complicado e os celulares dos visitantes devem ser deixados no aeroporto. Há celulares em PyongYang, mas só para poucos. São três canais de TV, que passam o dia a elogiar os dirigentes.

Escola e saúde para todos Qualquer lugar onde Kim tenha ido ou morado ou tocado vira objeto de culto. Nos monumentos dedicados a ele (quase todos), sempre há uma música marcial saindo de um alto falantes, mesmo em campo aberto (escondem os alto falantes nos arbustos). E assim vamos percorrendo palácios, museus e monumentos pela cidade, todos com a mesma e nada sutil mensagem. As pessoas na rua me olham com (muita) desconfiança.

É claro que há coisas boas.

São as coisas boas do comunismo original. Elas existem e são muitas. Há escola, saúde e moradia para todos. O problema é que, no caso norte-coreano, para manter o poder da maneira que foi concebido, o país teve que se isolar de tal maneira que as necessidades básicas estão cada vez mais difíceis de serem atendidas.

Chega a hora de ir para o lugar mais bizarro de todos: a zona desmilitarizada, a DMZ. Criada no cessar fogo de 1953, é a fronteira entre as duas Coreias, uma faixa de dois quilômetros de cada lado, onde os dois lados ficam se vigiando constantemente.

O ponto de contato, Panmunjon, é onde há negociações entre os dois países (quando há). São sete casinhas entre dois prédios, cujos estilos dão o tom da diferença entre as duas Coreias. Ali a fronteira é uma faixa de concreto no chão. Com soldados dos dois países (no caso da Coreia do Sul, existe o exército americano, o que por si só já é motivo de irritação para os norte-coreanos) em cada lado, a poucos metros uns dos outros. Obviamente a situação é um fio desencapado. O tenente Im Dong Chol, que trabalha na área, considera que os Estados Unidos são os culpados pela divisão das coreias, por emperrar as negociações para a reunificação.

Como quase todos os norte-coreanos, acha que o futuro é uma Coreia só, unificada. Sem americanos. Perguntado do que sente falta, ele confessa: — Seria bom se houvesse menos racionamento.

Depois de ter dito isso, o coitado já deve estar com passagem marcada para o limbo. Um pouco mais ao sul há um ponto de observação comandado pelo capitão Kim Chang Zun. O discurso a favor da reunificação e contra os americanos é o mesmo. Dali se pode observar o muro construído pelos sul-coreanos ao longo da fronteira.

Ele só é visível a partir do norte.

Do sul só se vê um campo gramado um pouco inclinado.

Ainda falta muito para que o sonho da reunificação se realize.

Cercadas por várias potências, cada uma com seus próprios interesses, as duas Coreias têm um longo caminho para chegar na integração.

Depois disso, voltamos à capital.

Continuamos isolados. Os guias já parecem cansados. Nem eles aguentam tanta lavagem cerebral.

O simpático embaixador brasileiro, Arnaldo Carrilho, me salva oferecendo um almoço.

São duas horas sem ouvir hinos ao líder nem explicações de como o líder conseguiu derrotar de maneira sensacional todos os seus adversários. Carrilho precisa de um pé de cabra para me tirar da mesa. Volto e recomeça a catequização. Tento, com toda boa vontade, achar o gordinho de salto carrapeta tão sensacional como eles dizem. Não dá.

Simplesmente não dá.

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Fernando Silva
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Re: Sete dias no paraíso cinzento da Coréia do Norte

Mensagem por Fernando Silva »

"O Globo" 24/04/10
As poucas opções de lazer são estatais
Quase não há cinemas e bares nas ruas

Uma novidade em PyongYang é um restaurante fast food, inaugurado em maio de 2009. O SamTaeSong Soft Drink Bar, de propriedade do estado, ocupa uma modesta sobreloja perto do Monumento ao Partido. A frequência é de jovens com roupas levemente ocidentais. O cardápio é o típico fast food, mas com um tempero coreano, como se apressa em esclarecer o atencioso guia. Há poucos cinemas na cidade, e uma excelente sala de música, o Teatro da Orquestra Nacional. Não se veem bares nas ruas e os restaurantes não são muitos.

Para os norte-coreanos, acostumados com a privação, assim é a vida. Para os estrangeiros vivendo aqui, é um sacrifício difícil de aturar.

Para eles há o Friendship Club, com bar, restaurante e boate, onde atenciosas garçonetes convidam o estrangeiro para dançar e dividir suas impressões sobre o país. O clube também é de propriedade do governo norte coreano.

Não é necessário explicar onde vão parar essas impressões divididas com as garçonetes. Outras opções de algum divertimento para estrangeiros na Coreia do Norte são as ONGs que mantêm algum tipo de bar ou restaurante em suas dependências.

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Re: Sete dias no paraíso cinzento da Coréia do Norte

Mensagem por Apo »

Tem gente que tem verdadeiros orgasmos por estilinho de....vida(?).
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