
No bairro Santa Catarina, Anália Moraes Ribeiro, natural de Capela dos Ausentes (hoje São José dos Ausentes), e em Caxias há 55 anos, completou no Natal nada menos que 101 anos. Um derrame, que lhe paralisou o lado esquerdo do corpo, deu um susto na família: são 12 filhos (cinco ainda vivos), quase 100 netos, além de bisnetos e trinetos. O mais surpreendente é que nesse curto período Anália já recuperou os movimentos da parte afetada, algo que seria imaginável apenas para um jovem.
Lúcida, embora a memória às vezes falhe, Anália tem em duas filhas a certeza da continuidade das benzeduras. Segundo a filha Maria, 58 anos, a mãe teria aprendido o ofício com o avô, Cipriano.
O modo de Anália, e agora Maria, benzerem mau-olhado, rendidos (mau jeito), cobreiro, impigem, entre outros, é singular: movimentam uma tesoura ao redor do corpo do devoto.
O objeto inusitado se transforma em instrumento mágico no abre-e-fecha ritmado, com seus estalos característicos, que ajudam a desprender o pensamento das coisas cotidianas e a se concentrar nos desejos de cura.
O problema é "cortado" com as lâminas e as palavras da benzedeira em uma invocação que não se utiliza de termos complexos, mas de um repetido pedido de afastamento de todo o mal.
- Na história de São Cipriano, consta o uso da tesoura em suas práticas mágicas. Acredito que meu bisavô, de mesmo nome, tenha seguido daí a crença de usar tesoura na benzedura - diz Maria.
Com influência das religiões afro e católica, ela define assim a reza de Anália.
- O principal é Deus. Primeiro Ele.
Vocação de fé das benzedeiras
A prática do uso da fé para auxiliar doentes é transmitida às novas gerações da família na Serra gaúcha
ALESSANDRA RECH/ Caxias do Sul/Agência RBS
Para as questões transcendentais: religião, filosofia, arte. Para as doenças: alopatia, homeopatia, as terapias todas. E para as pequenas feridas do corpo e da alma? As benzedeiras. Herdeiras de uma prática ancestral ou praticantes autônomas de sua fé, essas singelas lideranças não precisam de endereço. Basta perguntar pelas ruas, e alguém o levará até uma delas.
Ao encontrar Emília Macedo, 83 anos, em sua casa no bairro Pioneiro, em Caxias do Sul, a visita já terá valido. Não há transtorno que resista à generosidade expressa em seus úmidos olhos azuis. Emília conta sua história com a gratidão de quem descobriu por fim a sua vocação - o que para ela teve um sentido de cura.
- Eu aprendi com o meu sofrimento. Ninguém me ensinou. Eu tinha 30 anos quando me veio a dita para benzer. Até contei para o padre. Ele apoiou, desde que seja em nome de Deus, para o bem.
A descoberta do dom foi precedida de crises de angústia e desmaios, até o momento em que Emília sentiu receber uma indicação.
- Meu mentor de caridade (refere-se a um espírito) me mostrou o caminho da luz. Era como uma voz me explicando como fazer.
Logo no início foi trazido para Emília um bebê de seis meses que estaria voltando para a comunidade para ser velado. Era uma menina que teria morrido no hospital.
- Rezei, joguei água-benta no corpinho arrumado sobre a mesa e a menina voltou a respirar - conta.
Água benta, arruda e terço são usados na benzedura
Seguiram-se crianças, adultos, idosos com problemas como verminose, verrugas, feridas difíceis de curar (conhecidas popularmente como cobreiros).
- Só depois eu entendi que aqueles ataques que eu tinha eram um sinal para eu acreditar. Naqueles tempos não se falava muito dessas histórias de benzer. Mas se é para Deus, eu não tenho medo - afirma Emília, miúda, cabelos muito brancos, dirigindo-se ao canto da reza.
Nesse local, logo na entrada da casa simples, Emília mostra seus santos e revela predileção por Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhora Aparecida. Entre as imagens, estão a água benta protegida por um pano, a arruda e o terço, instrumentos das benzeduras.
A água Emília recebe do padre, que a visita de tempos em tempos.
- Ele vem aqui e já benze a casa - conta.
Séculos antes, alguém como Emília seria perseguida como bruxa. O costume sobreviveu encontrando na incorporação de elementos da religião já instituídos, como os santos e as rezas, uma forma de ser aceito entre a comunidade.
As benzedeiras cuidam de aspectos ligados à vida privada dos devotos, muitas vezes esquecidos pelos discursos das grandes instituições religiosas. O sagrado exprime-se no cotidiano. O valor prático desses ritos ajuda a explicar sua manutenção através dos tempos, mesmo com a urbanização.
Emília migrou jovem de Araranguá (SC). Teve 10 filhos - dois trabalham em centro espírita, o que para ela é uma continuidade do gesto solidário.
Curar dor de dente, mau-olhado, unir casais em crise ou rezar aos santos Antônio e José para uma jovem arranjar namorado são tarefas que fazem bem à Emília de várias formas.
Além da sensação de missão cumprida, vive o prazer de compartilhar o tempo e as histórias: o isolamento típico do idoso não é problema para ela, que recebe gente de toda a parte, sem saber como descobriram seu nome.
Ritual feminino
Diferentemente do curandeirismo, considerado crime, a benzedura - prática mágica simples e sem fins lucrativos - envolve um maior número de mulheres do que de homens. É uma constatação informal, já que não há estatísticas.
O professor Edimilson de Almeida Pereira - do Departamento de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), mestre em Ciência da Religião pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em Comunicação e Cultura (UFRGS) - aponta como explicação uma possível identificação psicológica entre o feminino e as funções do ritual. Há uma associação da força criadora da mulher com atributos de natureza provedora, como a bênção.
Outra relação é sociológica, e diz respeito ao lugar onde ocorre a benzedura: em geral a cozinha. Desde a Idade Média, ela se mostra um ambiente privilegiado para exercer a magia e ocultar suas ferramentas, transfiguradas em utensílios do dia-a-dia.
A sociedade patriarcal, lembra o professor, restringiu as ações da mulher ao lar, o que a aproximou das questões da vida privada, tais como a ruptura de laços afetivos ou familiares, ou os males do corpo.

Em Caxias do Sul, Emília Macedo, 83 anos, cumpre sua missão de fé e generosidade cercada por imagens de santos e com água-benta fornecida pelo padre