entrevista com 1 jornalista argentino..

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Steve
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entrevista com 1 jornalista argentino..

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Com a cruz e a espada

Por Denise Mota

O jornalista Horacio Verbitsky revela a estreita cumplicidade da Igreja Católica com a ditadura militar na Argentina.

Detectar disfunções e exibi-las à luz de todas as evidências, mas também desmontá-las, tirar a poeira que geralmente lhes serve de disfarce, examinar-lhes as entranhas e, finalmente, compreender como se instalaram, cresceram, aperfeiçoaram-se e atingiram toda uma sociedade é o trabalho a que o jornalista argentino Horacio Verbitsky, 63, vem se dedicando há quatro décadas e cuja recente faceta é a publicação de “El Silencio” -livro que chega à terceira edição na Argentina e detalha a cooperação e a cumplicidade que uniram o comando militar do país e a alta hierarquia da Igreja Católica nos anos de ditadura (1976-1983).

Escrito ao longo de 20 anos, “El Silencio” (ed. Sudamericana) descreve o relacionamento que a cúpula eclesiástica manteve com a temida Esma (Escuela de Mecánica de la Armada), o maior centro de repressão da ditadura argentina, a ponto mesmo de fornecer aos militares esconderijo para seus presos em uma ilha de propriedade da igreja, lugar apropriadamente chamado de “El Silencio”, no delta do Paraná, a poucos minutos de Buenos Aires. Neste local ficaram ocultos por um mês seqüestrados políticos, em 1979, para que não fossem descobertos durante a visita ao país da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Desde o início da carreira, nos anos 60, e com a publicação de livros como “Robo para la Corona”, em 1992 -um “quem é quem” de corruptos e corruptores argentinos, que vendeu 250 mil exemplares-, Verbitsky vem perscrutando o lado pouco honroso das instituições do Rio da Prata. Transformou-se assim num dos autores não só mais lidos no gênero “investigação jornalística” como num dos profissionais mais respeitados e de maior credibilidade em seu país.

No ano seguinte, publicou “Hacer la Corte”, relato detalhado de como se dava a manipulação política da justiça durante o primeiro governo Menem e cuja configuração o autor já deixava entrever no subtítulo (“A construção de um poder absoluto sem justiça nem controle). Depois, chegou às ruas “El Vuelo” (1995), livro em que pela primeira vez um oficial da Marinha argentina descrevia como eram atirados ao mar centenas de opositores da ditadura. A obra foi publicada em português e lançada no Brasil, com o título de “O Vôo”, pela editora Globo.

Há 18 anos colunista político do diário argentino “Página/12”, professor da Fundación del Nuevo Periodismo Iberoamericano -dirigida por Gabriel García Márquez-, membro da direção da Human Rights Watch/Americas e presidente do Centro del Estudios Legales y Sociales, o escritor teve sua trajetória premiada pela Latin American Studies Association, em razão de haver realizado a “melhor cobertura jornalística de longo prazo na América Latina”, e trabalha agora na tradução para o italiano de “El Silencio”, em versão que também está atualizando.

Ainda para o hemisfério Norte, Verbitsky acaba de verter “El Vuelo”, que está sendo lançado nos países de língua inglesa com o título “Confession of the Argentine Dirty War”.

E, depois de enfocar o envolvimento da Igreja Católica com a violência da ditadura em seu país, ele prepara novo livro em que o poder religioso é apresentado em sua envergadura social, moral e política ao longo de um século. “Trabalho com o tema da igreja há décadas, e não somente no que diz respeito à instituição argentina, mas com relação à estrutura eclesiástica em geral”, afirma El Perro (o cachorro), como o autor é apelidado localmente.

Seu faro está concentrado sobre um material que tem compilado em 1.500 páginas e que parte da situação da Igreja Católica no século 19. “Voltei ao que era o projeto inicial de ´El Silencio`, quando ainda não havia a solidez do enfoque que decidi eleger”, diz. A nova obra abordará a história política da igrejas entre 1884 e 1983. A primeira das décadas de 80 contempladas marca o momento em que a burguesia liberal expulsa seu então delegado/núncio católico, e os anos 80 do século 20 trazem, com o fim da ditadura argentina, a crise da igreja, “após haver assumido seu mais alto compromisso com o poder”, como afirma o escritor. O livro será composto de dois volumes, e o primeiro tem lançamento previsto para o próximo ano.

A seguir, Horacio Verbitsky conversa com Trópico sobre “El Silencio”, a Igreja, a Argentina e o Brasil.

Que fatos lhe fizeram deter-se sobre a atuação da Igreja Católica durante a ditadura argentina, investigação que terminou por se materializar em “El Silencio”?
Horacio Verbitsky: Comecei a tratar desse tema há 20 anos. Interrompi porque tinha outros assuntos sobre os quais estava trabalhando e também porque naquele momento encontrava dificuldades para prosseguir. Há dez anos passei a ter mais constância nessa investigação e há cinco comecei a trabalhar nela mais acirradamente. Foi o livro que mais tempo me tomou.
Durante a ditadura era evidente a circulação do alto clero entre o comando militar. A igreja brasileira tinha, sim, setores mais conservadores, mas, quando se iniciaram as torturas, a igreja enfrentou a ditadura, assim como aconteceu no Chile. A igreja argentina teve um setor militante muito ativo, mas que sofreu perseguição com a colaboração da alta hierarquia eclesiástica. Toda vez que eu escrevia sobre a ditadura, pensava que não era possível entender o regime militar na Argentina sem levar em conta a participação da igreja. Houve uma postura dogmática neste país que não se deu em outros lugares. Tinha isso claro para mim.

Na Argentina houve o triunfo de um catolicismo de discursos que mesclavam a cruz e a espada, o que não ocorreu em outros países. E essa linha da igreja chegou a ter controle da Conferência Episcopal (em “El Silencio”, se descrevem, entre outros, alguns dos movimentos do então arcebispo de Buenos Aires, cardeal Caggiano, nomeado em 1959, religioso que foi peça-chave para a chegada e a implantação na Argentina de doutrina contra-revolucionária importada da França e difundida pela Escola Superior de Guerra portenha). O próprio conceito de subversão aqui tinha a ver com a idéia da negação de Cristo.

Que aspectos o sr ressaltaria como os mais surpreendentes da sua pesquisa e que são revelados por “El Silencio”?
Verbitsky: O fato de um campo de concentração funcionar em uma comunidade eclesiástica. Isso foi o mais assombroso, porque a cumplicidade que havia entre a Igreja Católica e os militares era conhecida, mas não que chegasse a tal ponto. Ao ponto de que um secretário do vicariato castrense participasse do grupo de tarefas da Esma, que tivessem informações detalhadas sobre os presos políticos e que intermediassem sua liberação.


A igreja católica brasileira inclinou-se mais para o “social” que a argentina. O sr. concorda que a igreja argentina é a mais conservadora do continente? Por quê?
Verbitsky: Sim, a igreja argentina foi a mais conservadora da região. E acredito que as Forças Armadas da Argentina também. Algo que não tem a ver apenas com a igreja ou com o exército, mas com toda a estrutura da sociedade, é um tema que requer reflexão. Creio que há uma diferença fundamental em relação ao Brasil, que é o fato de que a Igreja Católica brasileira não é hegemônica. Apesar de ser muito importante, coexiste com outros cultos. Houve presidentes brasileiros não-católicos. Na Argentina, a igreja sempre foi hegemônica. Hegemônica e triunfalista.

O sr. acredita que possa ter havido alguma orientação do próprio Vaticano a respeito do silêncio da igreja argentina no período militar, ou essa foi uma reação autônoma?
Verbitsky: A igreja argentina sempre teve autonomia em relação a temas temporais. Mas uma autonomia relativa. Quando foram assassinados vários sacerdotes, em 1976, o Vaticano pediu explicações à Argentina. No ano seguinte, Emilio Massera encontrou-se com o papa Paulo VI e, ao ensaiar tais explicações, foi interrompido por Paulo VI, que disse ser esse um assunto superado para a igreja. E afirmou estar fascinado com a personalidade de Massera. Não houve contradição entre o Vaticano e a igreja argentina. Há um livro de Pio Laghi, núncio apostólico nesses anos, em que ele reparte culpas equitativamente entre o Vaticano e o episcopado argentino. Esse livro saiu na Itália em 1999 (“Il Cardinale ei Desaparecidos – L´Opera del Nuncio Apostolico Pio Laghi in Argentina”).

É possível a separação Igreja/Estado de fato no país?
Verbitsky: Penso que é possível, sim, um maior distanciamento entre a Igreja e o Estado na Argentina. Há um processo de secularização que temos de completar. Esse fato de que todo ano o presidente da República tenha que prestar contas à Igreja Católica, isso tem que terminar.

Jorge Bergoglio, atual cardeal argentino, é um dos “perfilados” de “El Silencio” e também foi um dos candidatos à sucessão de João Paulo II. Teria sido bom para a Argentina que saísse papa?
Verbitsky: Isso teria sido muito ruim para a Argentina. Não porque Bergoglio fosse um mau representante para o país, porque não acho que sacerdotes representem seus povos. Mas, se fosse eleito, Bergoglio faria muito mal à Argentina porque colocaria o peso da igreja para impedir a investigação de crimes contra os direitos humanos no país.
Ele gosta de cultivar um perfil popular. Nesse aspecto, teria sido um papa bastante fiel aos moldes de João Paulo II e teria criado um contra-poder em relação ao que se passou neste país durante o período militar. Nos últimos anos moveu-se muito contra o avanço das investigações e discussões sobre a ditadura. Disse que o meu livro tentava prejudicá-lo para a eleição papal, o que é uma bobagem. O original de “El Silencio” já estava pronto em agosto de 2004, quando João Paulo II ainda tinha saúde, e o livro foi publicado quando o papa se internava.

Tanto a Argentina como o Uruguai vêm debatendo publicamente que se mantenham e intensifiquem as investigações sobre as violações aos direitos humanos durante a ditadura. Livros como “El Silencio” ajudam a manter esse tema na ordem do dia?
Verbitsky: Espero que o livro sirva para isso, mas, se vai ajudar nesse sentido ou não, não sei. Esclarecer pontos obscuros da sociedade é papel do jornalismo, aliás, uma de suas funções mais claras. O livro já está na terceira edição, teve muita repercussão por aqui, mas a longo prazo não se sabe que efeitos terá. A igreja argentina continua com a atitude de dizer que não sabiam o que acontecia. Não podem fazer-se de distraídos.

Sendo jornalista e pesquisador, como o sr. distingue o trabalho que faz de pesquisa do passado argentino daquele que é realizado por um historiador clássico?
Verbitsky: Não tenho todo o aparato acadêmico de um historiador clássico e também tenho impurezas de estilo, mas não vejo grandes diferenças entre os dois trabalhos, ambos lidam com entrevistas, a busca em arquivos, a investigação de documentos e a análise e interpretação desses documentos. Os historiadores acadêmicos costumam ser mais assépticos, geralmente não fazem comentários, juízos de valor, algo com que eu trabalho, mas essa também não é uma regra absoluta, há historiadores que, sim, fazem esse tipo de coisa. Não há grandes distinções.

Qual sua avaliação da turbulência por que passa o governo Lula?
Verbitsky: Estive no Brasil quando Lula assumiu a Presidência, e à distância é difícil opinar. Creio é que há coisas que ainda não fazem parte do debate público, como o enriquecimento do filho do Lula, algo que é de extrema gravidade. E toda essa rede de financiamento em torno de uma alta hierarquia é uma forma de funcionamento dos nossos países.
Parece-me um problema de sistema, um problema que surge quando não há maioria para se fazer aprovar projetos, quando não há maioria parlamentar. Além do juízo ético, é uma questão que requer um julgamento institucional. Esses governos, como o do Brasil e também o da Argentina, sem maioria, são muito difíceis de administrar, com a pobreza e os problemas que sofrem nossos países. Na Europa, não há governo sem maioria parlamentar.
O sistema que temos é esse modelo americano, que lá funciona porque existe uma outra cultura política, que nós não temos. O que temos é um jogo político de soma zero. Para além da legitimidade, é a soma de várias coisas que desembocam em crises como essas.
Há muitos anos Brasil e Argentina têm altos graus de corrupção, e no caso brasileiro os grandes partidos não podem tampouco acusar a ninguém, estão também envolvidos. Lula pode reverter esse quadro, penso, com uma reação saudável, a de enfrentar os problemas. Haver prescindido de José Dirceu, por exemplo, é um grande sinal. Essa situação requer que ele mantenha uma atitude muito clara.
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Denise Mota
É jornalista. Vive em Montevidéu.

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