O Acaso e Você

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Acauan
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O Acaso e Você

Mensagem por Acauan »

O Acaso e Você
Postado originalmente em 1/2/2005 17:40:31

por Acauan

Entre religiosos cristãos, somente os calvinistas, por serem predestinistas, podem torcer o nariz para o poder decisivo do acaso em suas vidas.

Mesmo quem defende que é impossível o acaso ter criado o mundo e, portanto, descendemos todos de Adão e Eva, não tem como negar que resulta em muito pouca ou nenhuma influência sobre sua vida cotidiana se ancestrais tão remotos foram mesmo os tais escorraçados do Éden ou Australopitecos caídos das árvores.
Verdadeiramente relevantes são fatores como quem são seus pais e em que região e época você nasceu, fatores estes que determinarão sua carga genética, cultura nativa, posição social e a maioria dos eventos interativos que construirão seu destino.

A menos que o crente acredite que Deus o fez nascer homem ou mulher, pobre ou rico, no Sudão ou na Dinamarca para cumprir este ou aquele desígnio, todas as discussões sobre as origens da espécie tornam-se bizantinas diante destes fatores que são, obviamente, aleatórios, já que ninguém os escolhe e só predestinistas acham que Deus escolheu por eles.

Ah é, segundo o Allan Kardec, os espíritos reencarnam nas condições e lugares que eles próprios escolhem por considerá-los os mais adequados para seu progresso, donde se conclui que, se certo ele, deve haver muito mais possibilidades de progresso espiritual na Indonésia do que em Mônaco.
Coisas de quem repete a torto e a direito que nem uma folha cai sem que Deus assim o queira. Um bom motivo, aliás, para que os Espíritas concentrem suas preces no Verão, pois no Outono a divindade deve estar ocupada demais para ouvi-los.

Mas voltando à vaca fria, quem vive repetindo aquelas estatísticas chatíssimas e absolutamente inúteis sobre a probabilidade quase infinitesimal de o acaso produzir uma molécula de proteína ou uma Gisele Bündchen, deveria montar uma planilha de Excel para checar as chances de ele ter nascido, começando da probabilidade de seus pais terem se conhecido até chegar à corrida dos milhões de espermatozóides tentando chegar primeiro ao óvulo, que por sinal, poderia ser qualquer outro que não o que o gerou.

Para muita gente, talvez quase todo mundo, bastaria teu pai ter achado a amiga da tua mãe mais interessante ou ela ter resolvido ficar com dor de cabeça, no dia em que óvulo que seria você tava lá ansioso na trompa, para que necas de pitibiribas da sua existência começar.

E por falar nisto, bastava um espermatozóide de cromossomo Y ter sido mais esperto e a Gisele seria homem, o que tornaria a vida dela um tantinho diferente do que é hoje.

Ou seja, se o acaso não governa um Universo Quântico, governa nossas vidas.
Tem gente que não aceita de jeito nenhum que interações randômicas guiem o destino das subpartículas atômicas, mas não liga nem um pouco para o fato de que tudo que ele é seja produto destas mesmas interações.
Eu de bom grado concordaria em viver num Universo governado pela incerteza se a parte que me cabe, ou seja Eu, tivesse sido entregue aos meus cuidados, que, modéstia a parte, saberia muito bem o que fazer comigo.

Mas não é assim com ninguém. A alguns coube nascerem aristocratas na Atenas Clássica e no fim do expediente poder ir bater um papo com o Platão e a turma dele, enquanto sobre outros caiu nascerem judeus na Alemanha nazista.
Nada neste processo incluía que nossas opiniões e preferências fossem consultadas na hora de distribuir as senhas que definem para onde vão nos mandar. Exceto para os Espíritas, que devem ter mil explicações sobre porque tantos milhões teriam acreditado que iam crescer muito interiormente se escolhessem conhecer as chaminés de Birkenau.

Até aqui, se tem algum calvinista que me lê (espero que não, Deus me livre, cruz credo), deve estar todo felizinho porquê, afinal, se Deus escolhe quem serão os eleitos e quem vai se foder eternamente (me desculpem, mas é a expressão mais adequada), tudo se explica pelo fato de ele puxar os pauzinhos para facilitar a vida de quem lhe agrada ou jogar um pouco mais de pimenta no rabo de quem não.
Tá bom, ele pode até fustigar alguns eleitos com a provação, mas só se ela no final conduzir o apadrinhado para o bem-bom celeste.

A predestinação calvinista realmente elimina a influência do acaso nos destinos humanos.
Só que, se aceita esta doutrina, não temos porque ver injustiça quando aquela mãe africana assiste os filhos morrerem de fome antes que ela própria tenha a mesma sorte, pois Deus em pessoa teria decidido que as coisas deveriam ser exatamente assim. E quem vai discutir com ele? Mesmo porque a história não acaba aí. A africana em questão, também cumprindo a vontade predestinadora de Deus, vai torrar no inferno para sempre porque, afinal, foi a providência divina que fechou os ouvidos dela quando aquele missionário com cara de bolacha amanhecida foi pedir a ela que aceitasse Jesus. E se não aceitou Jesus, bao-bao. Tem mais é que virar carvãozinho mesmo.

Olhando por este lado, o acaso não parece tão ruim assim.

Do nascimento à morte, o acaso é a força mais poderosa dentre as que atuam em nossas vidas.
Dos genes que definem se você será um gênio ou um idiota à fração de segundo que define se você estará ou não embaixo do piano no instante em que ele chegar ao chão, despencado do oitavo andar.

É este caos que não obedece às decisões de ninguém que faz a vida ser o que é, e, de certa forma, descontadas as tragédias, é o que torna a vida interessante.
Se em meio a esta balbúrdia de coisas que acontecem por acontecer você ainda vê ordem em sua vida, então não deve se escandalizar com a possibilidade de o acaso também ter um papel relevante na mecânica do Universo.
Nós, Índios.

Acauan Guajajara
ACAUAN DOS TUPIS, o gavião que caminha
Lutar com bravura, morrer com honra.

Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!

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Fernando
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Re.: O Acaso e Você

Mensagem por Fernando »

Belo texto. Eu achei muito bom o exemplo dos espermatozóides. hehehehe

Mas há de se convir que este acaso só pode ser considerado com tal com vista na antiga doutrina aristotélica das causas finais. Pois um acaso que na sua falta de propósito em ordenar algo acaba ordenando é um cosmo. Não sei se é o mesmo que se passa na física quântica pq disso não entendo nada.
"Nada tem valor algum senão dentro do coração, e não como coisa" (Hegel)

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