Vivendo sem números nem tempo

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Vivendo sem números nem tempo

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Der Spiegel



Vivendo sem números nem tempo

Rafaela von Bredow

O povo Pirahã não possui história, palavras descritivas ou cláusulas subordinadas. Isso faz com que a sua língua seja uma das mais estranhas do mundo - e também uma das mais intensamente discutidas pelos lingüistas

Durante uma das suas primeiras visitas aos brasileiros Pirahãs, membros da tribo quiseram matar Daniel Everett. Naquela época ele não era ainda sequer um "bagiai" (amigo), e um caixeiro-viajante - que achou que Everett o havia enganado - prometeu bastante uísque aos nativos em troca do assassinato. Na escuridão da meia-noite, os guerreiros Pirahã se reuniram às margens do Maici e planejaram o ataque.

Entretanto, o que os membros da tribo não sabiam é que Everett, um lingüista, os estava escutando, e que já era capaz de entender suficientemente a língua cacofônica daquele povo amazônico para identificar as palavras fundamentais.

"Eu tranquei a minha mulher e os nossos três filhos na nossa cabana relativamente segura e imediatamente fui até onde estavam os homens", relembra Everett. "Em um movimento, peguei todos os seus arcos e flechas, voltei à cabana e tranquei as armas dentro dela". Ele não só desarmara os Pirahãs, mas também os assustara, e eles o deixaram viver. No dia seguinte, a família partiu sem nenhum problema.

Mas a língua dos habitantes da floresta, que Everett descreve como "tremendamente difícil de aprender", fascinou tanto o pesquisador e sua mulher que os dois logo retornaram. Desde 1977, o etnólogo britânico da Universidade de Manchester passou um total de sete anos vivendo com os Pirahãs - e dedicou à sua carreira à pesquisa da desconcertante língua desta tribo. De fato, por tanto tempo ele ficou incerto quanto ao que realmente ouviu enquanto vivia entre os Pirahãs, que aguardou quase três décadas antes de publicar as suas descobertas. "Eu simplesmente não confiava em mim mesmo".

Everett percebeu que tais descobertas seriam controvertidas. E de fato
foram: o que ele descobriu foi suficiente para invalidar até as teorias mais respeitadas sobre a faculdade da fala dos Pirahãs.

A reação aconteceu exatamente como o pesquisador esperava. A pequena tribo cuja sobrevivência se baseia na caça e na coleta, e cuja população é pequena - ela tem entre 310 e 350 indivíduos -, se transformou no centro de um debate furioso entre lingüistas, antropólogos e especialistas em ciências cognitivas. Até mesmo Noam Chomsky, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), e Steven Pinker, da Universidade Harvard, dois dos mais influentes teóricos da área, ainda discordam quanto ao que significa para o estudo da língua humana o fato de os Pirahãs não utilizarem cláusulas subordinadas.

Com efeito, o debate em torno do povo do Rio Maici remete diretamente ao centro do mistério que diz respeito a como o Homo sapiens foi capaz de desenvolver a comunicação verbal. Embora as abelhas dancem, os pássaros gorjeiem e as baleias corcundas cheguem a cantar com uma sintaxe, a linguagem humana é única. E isso pelo fato de permitir que os humanos aglutinem pensamentos jamais construídos anteriormente com uma criatividade incessante - basta pensar em Shakespeare e suas peças, ou em Einstein e a sua teoria da relatividade.

A lingüística geralmente se concentra naquilo que os idiomas de todo o mundo têm em comum. Mas a linguagem Pirahã - e é isso o que a torna tão significante - não possui aquilo que há muito se acreditava serem as características essenciais de todas as línguas.

A língua da tribo é inacreditavelmente parca. Os Pirahãs usam apenas três pronomes. Eles dificilmente fazem uso de qualquer palavra associada ao tempo, e não conjugam verbos no pretérito. Além disso, as cores aparentemente também não são muito importantes para os Pirahãs - eles não descrevem nenhuma delas em sua língua. Mas, dentre todas as curiosidades, a que mais intriga os lingüistas é o fato de a língua Pirahã ser provavelmente a única no mundo que não faz uso de cláusulas subordinadas. Em vez de dizerem, "Quando eu terminar de comer, gostaria de falar com você", os Pirahãs falam, "Eu termino de comer, eu falo com você".

E um fato que deixa os pesquisadores igualmente perplexos: no seu dia-a-dia, os Pirahãs não parecem necessitar de números. Durante o período que passou com eles, Everett jamais ouviu dos Pirahãs palavras como "todos", "cada" e "mais". Existe uma palavra, "hói", cujo significado se aproxima daquele do numeral um. Mas ela também pode significar "pequeno", ou descrever quantidades relativamente pequenas - como por exemplo dois peixes pequenos, comparados a um peixe grande. E eles sequer parecem capazes de contar sem usar a linguagem, com os dedos, por exemplo, a fim de determinarem quantos pedaços de carne possuem para moquear, quantos dias durará a carne dos tamanduás que caçaram ou quanto desejam receber dos comerciantes brasileiros em troca dos seus seis cestos de castanhas-do-pará.

O debate entre os lingüistas a respeito da ausência de todos os números na língua Pirahã surgiu depois que Peter Gordon, um psicolingüista da Universidade Columbia, em Nova York, visitou os Pirahãs e testou as suas habilidades matemáticas. Por exemplo, o pesquisador pediu a eles que reproduzissem formas criadas com conjuntos de uma a dez pilhas pequenas. Ou os índios foram instados a dizer se Gordon havia colocado três ou oito castanhas em uma lata.

Os resultados, publicados na revista "Science", foram surpreendentes. Os Pirahãs simplesmente não assimilam o conceito de números. "O meu estudo revela que um povo que não possui termos para designar numerais não desenvolve a capacidade de determinar números exatos", afirma Gordon.

As suas descobertas deram nova vida a uma teoria controversa do lingüista Benjamin Whorf, que morreu em 1914. Segundo a teoria de Whorf, as pessoas só são capazes de construir pensamentos para os quais possuem palavras correspondentes. Ou seja, como eles não possuem palavras para designar os números, os Pirahãs são incapazes de sequer começar a entender o conceito de números e de aritmética.

Mas, então, para que fossem capazes de lidar com algo como as tabuadas em português, esses índios precisariam adquirir alguma aritmética básica. Os Warlpiri - um grupo de aborígines australianos cuja língua, assim como aquela dos Pirahãs, só possui um sistema de contagem baseado em "um-dois-muitos" - não tiveram dificuldades para contar em inglês até números superiores ao três.

Mas os Pirahãs se revelaram totalmente diferentes. Anos atrás, Everett tentou ensiná-los a aprender a contar. Depois de um período de oito meses, ele tentou em vão ensinar-lhes os números em português usados pelos brasileiros - um, dois, três. "No final da experiência, nem uma só pessoa era capaz de contar até dez", relata o pesquisador.

Isso certamente não quer dizer que o povo da floresta seja demasiadamente estúpido. "O raciocínio deles não é mais lento do que o do aluno médio do primeiro ano de uma faculdade", diz Everett. Além disso, os Pirahãs não vivem exatamente em estado de isolamento genético - eles também se misturam com indivíduos de populações adjacentes. Neste sentido, as suas capacidades intelectuais deveriam ser iguais às dos seus vizinhos.

Finalmente Everett encontrou uma surpreendente explicação para as peculiaridades do idioma Pirahã. "A linguagem é criada pela cultura", afirma o lingüista. Ele explica o cerne da cultura Pirahã com uma fórmula simples: "Viver aqui e agora". A única coisa importante que vale a pena ser comunicada a outras pessoas é aquilo que está sendo experimentado naquele exato momento. "Toda a experiência está ancorada no presente", diz Everett, que acredita que nessa cultura carpe diem (em latim, "aproveita o dia") não há lugar para o pensamento abstrato ou conexões complicadas com o passado - o que limita proporcionalmente a linguagem.

O viver no agora também se coaduna com o fato de os Pirahãs aparentemente não possuírem um mito de criação que explique a existência. Quando são questionados sobre isso, eles respondem simplesmente: "Tudo é o mesmo, e as coisas sempre são". As mães também não contam histórias aos filhos - na verdade, ninguém conta nenhum tipo de história. Ninguém pinta, e não existe arte.

Nem mesmo os nomes que os indivíduos dão aos filhos são particularmente criativos. As crianças recebem freqüentemente nomes de outros membros da tribo que possuem características similares. Qualquer coisa que não seja importante no presente é rapidamente esquecida pelos Pirahãs. "Pouquíssimos deles são capazes de lembrar os nomes de todos os quatro avós", diz Everett.

O cientista está convencido de que os lingüistas encontrarão uma influência cultural similar sobre a linguagem em qualquer lugar que a procurem. Mas até o momento muitos defendem as teorias amplamente aceitas de Chomsky, segundo o qual todas as línguas humanas possuem uma gramática universal que forma algo como um conjunto de regras básicas que possibilitam que as crianças confiram significado e sintaxe a uma combinação de palavras.

Seja a fonética, a semântica ou a morfologia - aquilo que compõe exatamente tal gramática universal é algo controverso. Porém, no seu cerne está o conceito de recursão, que é definido como replicação de uma estrutura no âmago das suas partes individuais. Sem isso, não haveria matemática, computadores, filosofia ou sinfonias. Os humanos basicamente seriam incapazes de ver nos pensamentos diferentes partes subordinadas de uma idéia complexa.

E não haveria cláusulas subordinadas. Elas são as responsáveis pela aplicação do conceito de recursão na gramática. O renomado psicólogo norte-americano Pinker acredita que se os Pirahãs não formam cláusulas subordinadas, então a recursão não é capaz de explicar a singularidade da linguagem humana - da mesma forma que ela não pode ser um elemento central de alguma gramática universal. Chomsky seria refutado.

O passo lógico a ser dado agora seria tentar provar que os Pirahãs podem de fato pensar de forma recursiva. Segundo Everett, o único motivo pelo qual a recursão não faz parte da língua dos Pirahãs é o fato de ela ser proibida pela sua cultura. O problema é que ninguém é capaz de confirmar ou negar as observações de Everett, já que não existe alguém capaz de falar a língua Pirahã tão bem quanto ele.

Apesar disso, vários pesquisadores - incluindo dois colegas de Chomsky - viajarão neste ano até o Rio Maici para testar partes das suas alegações.

Porém, para certas pessoas a selva já está ficando muito congestionada.
"Temo que os Pirahãs simplesmente se transformem em mais uma curiosidade científica, para serem explorados e analisados bem no local em que vivem", reclama Peter Gordon.
"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma." (Joseph Pulitzer).

Trancado