
A junta militar e o apoio católico ao golpe de 1976 (fotomontagem de León Ferrari)
O golpe de 24 de março de 1976, dado pela Junta das Forças Armadas Argentinas, distinguiu-se de todos os anteriores pelos seus propósitos. Logo se verificou que o objetivo do Poder Fardado não era apenas afastar um governo inepto, administrado caoticamente pela presidente Maria Estela, viúva do general Perón, e por seu assessor direto, o ministro do Bem-Estar Social, José López Rega, mas sim executar uma operação de extermínio da esquerda marxista e da esquerda peronista.
A Ordem de Batalha
"Primeiro mataremos todos os subversivos, logo mataremos os seus colaboradores, depois os seus simpatizantes, em seguida os que permanecem indiferentes e finalmente os tímidos."
General Ibérico Saint-Jean, governador de Buenos Aires
Com tal propósito em mente, o general Jorge Videla, e seus colegas, o almirante Emílio Massera e o brigadeiro Orlando Agosti, assumindo a totalidade do controle sobre as instituições, implantaram um terrorismo de estado como jamais o país havia visto na sua história. A Argentina, para o alto comando militar, estava no centro de uma batalha infernal entre os valores ocidentais e cristãos e os que lhe faziam contestação(*). Não se tratava de um choque de idéias, mas de uma luta de vida e morte entre distintas e hostis concepções de vida. O que para os integrantes do ERP e dos Montoneros era uma guerra de libertação nacional, para os generais, almirantes e brigadeiros argentinos era uma Cruzada contra os infiéis do nosso tempo: a subversão comunista.
Daí a decisão contida na Ordem de Batalha do 24 de março de 1976, emitida pelos integrantes do triunvirato e do Estado Maior Conjunto no sentido de visar à "destruição das organizações subversivas mediante a eliminação física dos seus membros". Os contatos obtidos nos interrogatórios pelos oficiais junto aos integrantes da guerrilha capturados pela polícia ou pelo exército convenceram os oficiais de que os militantes, particularmente os dirigentes, eram indivíduos "irrecuperáveis". Eram incuráveis "rebeldes patológicos", fanáticos marxistas-leninistas ou terceiro-mundistas, possessos similares aos personagens de "Os Demônios" já denunciados um século antes na novela de Dostoievski.
Compunham um bando de subversivos obcecados pela mística da "revolução mundial", seguida da liquidação da burguesia, que jamais voltariam a ser integrados à sociedade Argentina.
Não havia como convertê-los ao redil da lei e da ordem, como também era inútil mantê-los nos cárceres, visto que a prisão tinha um efeito psicológico contrário ao esperado. Encaravam-na como um martírio obrigatório. Afinal, para eles, passar pela masmorra equivalia a ganhar uma medalha de revolucionário autêntico. Se soltos, voltavam tranqüilamente a pegar em armas.
Frente a tal situação concreta, com o país varado de balas e entontecido pela seqüência de intermináveis extorsões, atentados à vida e à propriedade, com cadáveres aparecendo em todos os cantos, era evidente para as Altas Patentes militares que um governo que respeitasse os direitos humanos era ineficaz. Ao terrorismo da guerrilha do ERP e dos Montoneros precisavam contrapor o Estado Exterminador.
Todavia, ponderaram, a Argentina fazia parte do concerto civilizado das nações: "Somos blancos y occidentales" como diria mais tarde Nicanor Costa Mendez, um dos chanceleres do regime militar. O poder castrense não poderia simplesmente executar em praça pública os subversivos pois teriam que enfrentar o clamor mundial e as organizações internacionais dos direitos humanos.
A conseqüência de tais reparos os conduziu a idéia da formação do Estado Clandestino, à adoção de um estratagema pelo qual o governo não se considerava responsável diretamente pelas prisões e pelo passava a ocorrer com os inimigos. Capturados e levados aos centros de triagem e detenção, sob o ponto de vista formal ou jurídico, eles não figuravam nem mesmo como detidos. Jamais ainda como executados, mas sim como desaparecidos que se tornavam "ausentes para sempre". Simplesmente se evaporavam. Nem o Ministério do Interior, muito menos o da Defesa, acusava qualquer responsabilidade com o que ocorria, muito menos a Justiça que sempre cega parecia não ver nem saber de nada.
(*) A certeza de um embate de vida e morte entre a guerrilha e o exército ganhou maior vulto com o frustrado ataque desencadeado pelo ERP contra o quartel-arsenal de Monte Chingolo, situado na grande Buenos Aires, em dezembro de 1975. Portanto, durante o governo constitucional de Isabelita Perón. Na ocasião foram mortos mais de 100 atacantes.
A solução final
Num depoimento recente prestado à jornalista Maria Soema, o general Videla, então em prisão domiciliar, assegurou-lhe que a decisão de exterminar com os subversivos encarcerados na ESMA (Escola Mecânica da Armada) e em outras dependências, foi tomada pelo Alto Comando Militar em vistas à proximidade da Copa do Mundo, a ser disputada na Argentina em 1978. É possível que temessem na ocasião a má repercussão de uma fuga espetacular ou um ato intempestivo qualquer da parte dos aprisionados que viesse a desmerecer o país aos olhos da imprensa internacional. A grande festa das multidões não poderia ser empanada por incidentes desagradáveis, ao contrário ela serviria como uma cortina para ocultar um projeto clandestino genocida que livraria para sempre o país dos males da subversão armada. Como o próprio general Videla observou, a sociedade Argentina não suportaria o fuzilamento público de cinco mil ou mais militantes que estavam então nos cárceres.
A pedra na água
procedimento utilizado pela repressão militar durante o Processo de Reorganização Nacional (1976-1983) para extirpar a subversão lembra um tanto uma pedra jogada dentro de um lago. A partir do lugar de onde o cascalho mergulhou, pequenas ondas em círculo vão se formando, estendendo-se parelhas conforme sua dimensão e peso. Cada ativista do ERP ou dos Montoneros tinha parentes, filhos, companheiros, amigos, colegas de serviço e simpatizantes. Nenhum deles poderia ficar imune ou impune. Ninguém poderia sentir-se a salvo, pois como assegurou o tenente-coronel artilheiro Hugo Pascarelli "a luta que travamos não conhece limites morais, ela se realiza mais além do bem e do mal".
A repressão durante a dita Guerra Suja deveria criar um vácuo ao redor do subversivo caçado para que ele não pudesse recorrer a nenhum tipo de santuário, nem quarto ou porão escuro algum lhe serviria de esconderijo, ninguém mais sequer chegaria perto dele. Procedimento esse que levou depois o escritor Ernesto Sabato a afirmar que "temos a certeza de que a ditadura militar produziu a maior tragédia da nossa história, a mais selvagem" (Nunca Más – informe de 1984).
Prática essa que faz recordar a empregada pelos nazistas contra os inimigos do Terceiro Reich durante a invasão da URSS, denominada Nacht und Nebel, decreto expedido por Hitler em setembro de 1941 que exatamente visava os mesmos fins. Isto é, autorizar a SD (Sicherheitsdienst) e a Gestapo a darem sumiço nos comissários comunistas e outros suspeitos, sem que houvesse impedimentos jurídicos protocolares.
O terror desencadeado pelo Estado Exterminador tinha um efeito expansivo. O seu propósito maior era introjetar o medo em cada um dos indivíduos, estivessem eles ou não acumpliciados com a subversão. A possibilidade do aniquilamento físico, antecedido por seções de torturas – eufemisticamente designadas como "meios especiais de interrogatório" -, aplicadas tanto no Campo de Maio, na capital, como no Campo da Ribeira, em Córdoba, devia paralisar completamente a ação dos grupos de combate e suas unidades de apoio.
Simultaneamente, era preciso depurar as instituições que de alguma forma alimentaram a subversão naqueles anos todos, tais como a universidade, os grêmios secundaristas, os sindicatos mais combativos, as associações dos profissionais mais salientes, tais como a dos jornalistas e advogados, e claro, os psicanalistas. Quem tivesse colaborado no campo teórico, mesmo das idéias puras, teria que assumir as mais pesadas conseqüências.
Nem a conservadoríssima Igreja Católica argentina deveria ficar a salvo, visto que, a contragosto, dera abrigo aos padres terceiro-mundistas que, embalados pela Teologia da Libertação, haviam se mostrado simpáticos ao apelo às armas para que o Reino dos Pobres fosse afinal introduzido aqui na terra.
Os instrumentos do Estado Exterminador
"Videla governa, eu mato!"
General Mário Menendez
Os dispositivos militares foram acionados a partir da divisão das quatro Zonas de Defesa, formadas pelo I Corpo de Buenos Aires; o II Corpo de Rosário; o III Corpo de Córdoba, e o IV corpo de Bahia blanca. Sendo que a cada comandante de zona coube a responsabilidade por executar a repressão na sua respectiva área.
Dada a sua localização, ironicamente situada na Avenida do Libertador, no bairro de Nùñez, na área central da cidade de Buenos Aires, a Escola de Mecânica da Armada, a famosa ESMA, sob o controle direto do almirante Emilio Massera, tornou-se a principal instalação do Estado Exterminador. Para lá foram levados aos magotes os subversivos suspeitos onde eram submetidos a uma liturgia de horrores aplicados pelos "Los Gustavos". O suplício era justificado, inclusive pelos capelães militares, como um instrumento válido para arrancar informações o mais rápido possível.
Quanto menor o tempo de resistência do preso maiores as possibilidades de se capturarem outros e de se impedir a continuidade dos atentados.
A ESMA, todavia, era apenas o centro de detenção mais notório, visto que existiam ainda uns 240 outros espalhados pelo país. Entre eles a La Casila (no Campo de Maio), a La Casona (Na base aérea de El Palomar), e inúmeros quartéis, bases navais e aéreas, comissárias policias, casas e sótãos clandestinos, prisões militares, etc...
Decisão tomada, os presos selecionados para o "translado" recebiam injeções ou comprimidos tranqüilizantes e eram depois levados para o Aeroparque de Buenos Aires de onde eram embarcados nos "vôos da morte". Aviões de transporte ou mesmo helicópteros foram utilizados na operação de jogar os subversivos lá do alto, tanto no rio da Prata como no Riachuelo, e, por vezes, no alto mar. Os que se encontravam na periferia de Buenos Aires ou nas casas clandestina do interior do país, foram mortos a tiros e depois inumados nas áreas reservadas aos indigentes N.N. nos cemitérios locais.
Como muitos dos capturados tinham filhos pequenos ou suas companheiras estavam grávidas, tomou-se como costume entregar as crianças e os recém-nascidos, mais de 500, aos cuidados de famílias de militares para que assim os criassem como bons católicos, imunes à "sífilis da revolução".
Nem mesmo políticos e militares estrangeiros que estavam exilados na Argentina escaparam da fúria vingativa dos comandantes argentinos em conluio com seus colegas vizinhos, como foi o caso do ex-senador uruguaio Zelmar Michelini e do seu colega Héctor G.Ruiz, dos generais Juan José Torres, ex-presidente da Bolívia, e Carlos Prats, ex-chefe supremo do exército do Chile, todos eles mortos no moedor de carnes montado a partir de março de 1976.
Um testemunho do horror
A Argentina foi devastada por prisões arbitrárias, violações de domicílios e execuções nas ruas. Foram instituídos locais de tortura e assassinatos secretos. Milhares de pessoas começaram a desaparecer. A violação das instituições não respeitava nenhum limite, porque não apenas se profanava a Constituição, como foi redigido um Ato Institucional paralelo à Constituição, ao qual os funcionários tinham que jurar obediência. Os pais temiam falar com seus filhos, para não dizer algo que pudesse virar em tragédia. Multiplicaram-se as delações em todos os níveis, muitas delas falsas, movidas pela tortura.
Os militares golpistas incharam-se de soberba. Auto-intitularam-se "salvadores da pátria". Consideram-se infalíveis e treinados para qualquer função. Não apenas ocuparam os cargos do governo, como também as reitorias e direções das universidades, os meios de comunicação, cargos diplomáticos, a direção de sindicatos, a direção de empresas. Podiam decidir entre a vida e a morte de qualquer pessoa.
Quando, ao cabo de seis anos, começaram a compreender que haviam perdido as simpatias iniciais e que aumentavam as denúncias internas e externas de seus crimes, eles apelaram para o recurso gasto de exacerbar o sentimento patriótico, com a Guerra da Malvinas. Na mesma Praça de Maio onde dezenas de milhares de pessoas se reuniram para aplaudir o ditador Galtieri por ter ordenado o desembarque nas ilhas.
Mas essa guerra foi o começo do fim. Em 10 de dezembro de 1983, a última ditadura Argentina foi sepultada pela entusiástica recuperação da democracia".
(Marcos Aguinis: Do golpe e de instituições
Folha de São Paulo: 19/03/2006)
A polêmica sobre os demônios
Num dos seus teoremas filosóficos ainda não publicados, o escritor Ernesto Sábato disse que fazia trinta anos que andava à procura de Deus pela cidade de Buenos Aires inteira. Ainda faltavam-lhe uns três bairros para dar cabo da pesquisa, mas aquela altura da vida acreditava que seria inútil. Entrementes se ele não encontrou Deus, não lhe faltou ver o diabo pela frente quando foi escolhido pelo presidente Raul Alfonsin, após a queda da ditadura militar, em 1983, em vir participar de uma comissão para tratar dos desaparecidos: a CONADEPE (Comissão Nacional do Desaparecimento de Pessoas).
O relatório final apresentado por ele foi estarrecedor: uma coletânea de pavor e sofrimentos de fazer inveja a qualquer das tantas descrições dos suplícios que os caídos penavam nas masmorras do Santo Ofício nos tempos da Inquisição. Parecia que Tomás Torquemada (1420-1498), o primeiro inquisidor-geral, havia ressuscitado na beira do rio da Prata para reimplantar o Reino da Dor.
Até hoje os argentinos continuam divididos quanto a responsabilidade sobre o que aconteceu. Para o ex-presidente Raul Alfonsin tratou-se dos "dois demônios" ou do "demônio de duas cabeças", uma delas representada pela repressão militar e a outra pela subversão esquerdista. Ambas igualmente com as mãos sujas, envolvidas em seqüestros e assassinatos. Para o poeta Juan Gelman os culpados foram outros. Por igual defensor da teoria perversa dos "dois demônios", todavia a responsabilidade deveu-se não à farda ou à guerrilha, mas à cumplicidade dos dirigentes sindicais e da alta hierarquia católica para com a Junta Militar, liderada pelo general Videla, que permitiu o mergulho no desatino.
Poderiam os governantes terem seguido o bom exemplo do governo da Itália no seu enfrentamento com os extremistas das Brigadas Vermelhas, quando as autoridades jamais perderam a cabeça se deixando levar pela aplicação da tortura e pela sedução do terrorismo de Estado. Mas não na Argentina. Sem haver nas altas esferas da sociedade e das suas instituições uma voz de advertência e moderação que freasse os ímpetos mais cruéis e os instintos mais primitivos das partes envolvidas, permitiram que a carnificina desatada tivesse prosseguimento.
Desimpedida, a alta hierarquia militar agiu como se Argentina fosse um campo de batalha como Argel e Oran o foram para o exército francês durante a Guerra de Independência da Argélia, e Saigon ou Hué, o foram para os norte-americanos durante a Guerra do Vietnã. Isto é, território inimigo a ser ocupado palmo a palmo.
Milhares de civis foram detidos. Estimam em cem mil ou mais. Deles, provavelmente, 30 mil foram mortos, sendo que de muitos nunca mais se soube nada. Poucas famílias de Buenos Aires ou do interior não tiveram alguém atingido de alguma forma pela repressão que se abateu sobre a nação. O país durante aqueles sete anos de chumbo foi totalmente ocupado pelas Forças Armadas. Generais se tornaram reitores de universidades, capitães e majores diretores de colégios, e assim por diante.
O inesperado de tudo foi a entrada em ação das mães e avós da Plaza de Mayo que, não satisfeitas com as protelações e tergiversações das autoridades, começaram a exigir em público, batendo na portas dos quartéis e das prisões com o retrato dos seus desaparecidos, com coragem quase que suicida - tanto que chamaram-nas de "Las locas de la Plaza de Mayo" -, a devolução dos seus netos e uma satisfação que fosse a respeito do sumiço dos filhos e filhas.
Sábato e o prenúncio da catástrofe
De certo modo, quem intuiu a proximidade do desastre que se abateu sobre a Argentina dos anos 70 foi o escritor Ernesto Sábato. A trilogia dele, "O Túnel" (1949), "Sobre heróis e Tumbas" (1961) e "Abaddon o exterminador" (1974), cuja escolha dos títulos é suficientemente simbólica do mal estar que acometia a sociedade rio-platina, indica a aguda e sensível percepção do artista de que por debaixo daquele pais próspero e com uma população relativamente bem instruída e culta, pulsava algo daninho, neurótico, crescentemente perigoso, um ódio ideológico que com o passar dos anos transformou-se em algo potencialmente autodestrutivo. Chama a atenção o derradeiro título, aquele que encerrou sua obra, praticamente às vésperas do golpe de 1976, visto que Abaddon é o anjo satânico que vem anunciar o Apocalipse.
Acolhendo-se isso, de que a obra dele é uma premonição do horror que estava por vir, ele assume a posição que os grandes autores trágicos gregos, tais como Ésquilo ou Sófocles, exerceram no passado clássico por ocasião dos festivais teatrais, nos quais as mazelas e os temores da sociedade, expressos dramaticamente por personagens famosos do passado histórico ou mitológico, eram expostos de maneira sutil frente a uma coletividade participante.
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