Feliz é o povo que tem heróis

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Fernando Silva
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Feliz é o povo que tem heróis

Mensagem por Fernando Silva »

Rio, 17 de junho de 2006 "O Globo"

Brecht e Ronaldo

REINALDO AZEVEDO

O sacrifício ritualístico a que Ronaldo, o dito Fenômeno, é submetido na imprensa brasileira tem um alcance que vai além da crônica esportiva, impossível de ler, com raras exceções, sem um Dramin à mão. A divisa da cobertura jornalística passou a ser: “Infeliz a terra que precisa de heróis.” Vamos esmagá-lo. Na minha República, trago de volta os poetas e expulso os jornalistas: é uma piada para quem tem um Platão e dois neurônios. A sede dos canibais assusta.

É compreensível que o stalinismo tenha sido o emblema da “resistência” no século passado e que seja, ainda hoje, o ponto de ancoragem ético da maioria das esquerdas. E não venham me dizer que se ignorava, então, o horror. André Gide foi ao Congresso de Escritores Soviéticos em 1934, em companhia de Louis Aragon e André Malraux, e já saiu de lá horrorizado. Graciliano Ramos, caso raro de um comunista que não era estúpido, cravou sobre Jdanov, o ministro da cultura de Stálin: “É uma besta.” Em “Memórias do cárcere”, trata os comunistas como alimárias morais e faz pouco do realismo socialista. Basta saber ler.

Volto a Ronaldo. Na peça “A vida de Galileu”, o dramaturgo alemão dispara um daqueles fraseados que ficam bem na pena e na mentalidade de um comunista: “Infeliz a terra que precisa de heróis.” A máxima é dita por Galileu (cena 13) e responde a uma fala de Andrea, o filho da governanta, que, minutos antes, dissera: “Infeliz a terra que não tem heróis.” O rapaz, vê-se, é o “povo”, que está entrando em contato com a verdade e com a razão, simbolizados pelo mártir - ou nem tanto, já que ele abjura da defesa do heliocentrismo.

Na primeira cena, o menino lhe diz não haver dinheiro para comprar leite e que o leiteiro “vai dar um círculo” em volta da casa e não mais entregará o produto. É corrigido: “Está errado, Andrea. Ele descreve um círculo.” Entenderam? O povo é bruto, mas pode ser lapidado para servir a uma causa. Quem conhece a peça sabe: o rapaz se torna portador de uma verdade científica ainda perigosa naqueles tempos rombudos.

A peça foi e é ainda matéria dos mais acirrados debates. Galileu fez bem ou mal em abjurar? Valia a pena morrer já que a verdade triunfaria? Tendo permanecido vivo, Galileu pôde continuar o seu trabalho. O cientista foi um covarde ou se entregou a um sacrifício moral presente em nome da remissão futura? O debate é inútil. Não resta dúvida de que “a verdade” de Brecht está na fala de Galileu. O que se exalta ali é o heroísmo anônimo e coletivo, de que os cientistas e intelectuais seriam meros instrumentos e servidores. A mensagem é clara: os amanhãs que cantam justificam tudo, mesmo as canalhices e covardias - assunto em que Brecht era especialista, o que é escoimado de sua biografia, mitificada pelas esquerdas.

Apesar da frase de efeito e da mensagem do herói anônimo, Brecht foi um maldito lacaio do stalinismo e serviu fielmente à causa até o fim. Stálin andava com uma caderneta ensebada no bolso indicando o destino de muitos milhares de degredados, espalhados em campos de concentração União Soviética afora. Era o “herói” com que Brecht e seus amiguinhos contavam para criar um novo amanhecer. A peça, de 1937-1939, é tida habitualmente como uma metáfora da resistência ao nazismo e aos vários chauvinismos europeus. É a leitura “heróica”. A minha é outra. “A vida de Galileu” é um libelo contra o indivíduo e em favor de uma verdade coletiva, posta no horizonte, que vale qualquer sacrifício e pode desprezar a dignidade pessoal de cada um em nome da dignidade do “novo homem”.

Parece-me óbvio que o jovem Andrea, que Galileu acaba pervertendo moralmente, estava certo antes. Se Brecht/Galileu tivesse razão, teríamos de jogar no lixo “A Ilíada” e “A Odisséia”, e a vida seria apenas um suceder eterno das forças da História, sem cara e sem alma, gerenciada por um partido e seus “saltos para a frente”. Seria inútil explicar por que prefiro perder com um Ronaldo demasiadamente humano a vencer com o triunfo da razão cínica dos que têm uma causa. Não preciso de seguidores.

REINALDO AZEVEDO é jornalista. E-mail: mahfud@uol.com.br.

Trancado