Aborto, questão aos anti-aborto.

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Acauan
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Re: Re.: Aborto, questão aos anti-aborto.

Mensagem por Acauan »

betossantana escreveu:
Acauan escreveu:Assim, dirimindo eventuais dúvidas, quem é contra o aborto em condições de uma gravidez decorrente de ato voluntário e consciente não se torna favorável a ele quando a gravidez é decorrente de estupro, apenas entende que, mesmo considerando o aborto como destruição de vida inocente, neste caso não há justificativas legais e morais suficientes para obrigar a mãe a manter a gravidez.


Não dirimiu nada, explique a diferença entre abortar um embrião gerado por um estupro e matar um bebê de dois meses parido em condições normais em uma gestação causada por estupro.


Pelo jeito a piada é tão longa quanto sem graça.

A tolerância aplicada ao aborto em caso de estupro se dá pela renúncia da sociedade, representada pela lei, em obrigar a mulher a manter uma gravidez que foi provocada por um ato de violência, sobre o qual ela não tem responsabilidade, por não ter sido efeito de uma ação de sua livre e espontânea vontade.

No caso da gravidez é impossível transferir a responsabilidade pela gestação do feto para qualquer outra pessoa ou instituição que desejasse salvá-lo.
Por imperativo biológico e médico, só a mãe poderia fazer isto. Se ela não quer e a sociedade não pode obrigá-la, a morte do feto é uma decorrência indesejável deste conflito de direitos, como entendidos pela lei brasileira em vigor.

É o cúmulo da estupidez ou da desonestidade intelectual querer comparar esta situação com matar um bebê já nascido, gerado de uma gravidez decorrente de estupro, pois, neste caso, se a mãe renuncia a obrigação de amamentar e cuidar de um bebê gerado nestas circunstâncias, basta entregar a guarda da criança a outro casal que a queira, a uma instituição ou, em última instância, aos cuidados do Estado.

Por que cargas d'água haveria a mais mínima analogia possível entre as duas situações, exceto aquela simulada para me fazer perder tempo?
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zumbi filosófico
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Re.: Aborto, questão aos anti-aborto.

Mensagem por zumbi filosófico »

Então a questão não é o embrião ser um "ser humano" propriamente dito, mas algo pelo qual que a mulher tem que "assumir a responsabiliade" se transou de propósito.

Porque se fosse para considerar o embrião como ser humano de verdade, penso que a situação de aborto legal em caso de estupro seria como se o dono de um prédio ou casa, na qual está vivendo um invasor contra a vontade do proprietário, pudesse mandar implodir o prédio com ele lá, sabendo que ele está lá, matando-o, sem que tivesse qualquer culpa da morte dele.
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Acauan
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Re: Re.: Aborto, questão aos anti-aborto.

Mensagem por Acauan »

zumbi filosófico escreveu:Então a questão não é o embrião ser um "ser humano" propriamente dito, mas algo pelo qual que a mulher tem que "assumir a responsabiliade" se transou de propósito.

Porque se fosse para considerar o embrião como ser humano de verdade, penso que a situação de aborto legal em caso de estupro seria como se o dono de um prédio ou casa, na qual está vivendo um invasor contra a vontade do proprietário, pudesse mandar implodir o prédio com ele lá, sabendo que ele está lá, matando-o, sem que tivesse qualquer culpa da morte dele.


Zumbi, faça-me um favor.
Já basta um.

Há mil e uma maneiras de tirar um mendigo do prédio sem mandar implodi-lo com o cara lá dentro.

Quantas maneiras há de se fazer aborto sem matar o feto?
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zumbi filosófico
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Re.: Aborto, questão aos anti-aborto.

Mensagem por zumbi filosófico »

Bem, para esse tipo de questão moral/legal é comum se recorrer a simplificações/analogias com situações estapafúrdias, como os clássicos exemplos dos vagões de trem. O mendigo podia estar algemado no prédio e ameaçando se matar ou muito bem escondido.

E, de qualquer forma, é possível se transferir um feto para uma encubadora, e tentar tratar como se fosse um parto muito prematuro; ou, se ainda estiver em estágio embrionário, o embrião em si talvez possa ser tirado e então congelado, e então ficar para a "adoção"/implante embrionário. E, na pior das hipóteses, se o genótipo definido é tão determinante da "humanidade", o ADN do feto pode ser retirado e então implantado em um embrião "artificial" (óvulo ou célula com pluripotência induzida) e ficar disponível para "adoção"/implante.
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Acauan
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Re: Re.: Aborto, questão aos anti-aborto.

Mensagem por Acauan »

zumbi filosófico escreveu:Bem, para esse tipo de questão moral/legal é comum se recorrer a simplificações/analogias com situações estapafúrdias, como os clássicos exemplos dos vagões de trem. O mendigo podia estar algemado no prédio e ameaçando se matar ou muito bem escondido.

E, de qualquer forma, é possível se transferir um feto para uma encubadora, e tentar tratar como se fosse um parto muito prematuro; ou, se ainda estiver em estágio embrionário, o embrião em si talvez possa ser tirado e então congelado, e então ficar para a "adoção"/implante embrionário. E, na pior das hipóteses, se o genótipo definido é tão determinante da "humanidade", o ADN do feto pode ser retirado e então implantado em um embrião "artificial" (óvulo ou célula com pluripotência induzida) e ficar disponível para "adoção"/implante.


Legalmente o que é autorizado pela lei é a interrupção da gravidez decorrente de estupro.
A destruição do feto é uma consequência indesejada, mas inevitável disto.

Houvesse a possibilidade de se interromper a gravidez no estágio requerido pela vítima do estupro, sem que o feto morresse, obviamente esta seria a decisão preferencial da justiça.
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Re: Re.: Aborto, questão aos anti-aborto.

Mensagem por Apo »

betossantana escreveu:
Apo escreveu:Teratomas não são dotados de SNC algum, nem órgão interno formado,


Embriões também.


EIN? Beto, pára com isto...embriões tem SNC e órgãos vitais. Teratomas não tem coisa alguma.
Eu já disse: se foi um embrião que se transformou precocemente num teratoma, destruiu qualquer possibilidade de humanidade. É um tumor com resquícios embrionários.

Vocês estão confundindo 2 coisas:

- Um organismo humano completo ( com ógãos para se transformar hum humano ) que desenvolveu um tumor em alguma parte do corpo, e que pode ser salvo através de um procedimento de excisão do tumor ( dependendo do órgão que gerou as células tumorais e do momento em que for diagnosticado ainda dentro do corpo da mãe -. isto se o teratoma for fruto de fecundação ).

- Um teratoma que nunca foi embrião ( mesmo gerado pela fecundação, ela é como um aborto espontâneo, que muitas mulheres têm e nem ficam sabendo, pois a coisa morre logo e o organismo expulsa), mas um tumor com camadas de restos embrionários ( unhas, cabelos e dentes, geralmente). No que que isto é relevante para o assunto aborto? Neste ponto, o organismo é um tumor e pronto. Alguém acha que é crime extirpar um câncer?
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Re: Re.: Aborto, questão aos anti-aborto.

Mensagem por Apo »

betossantana escreveu:
Apo escreveu:Gostaria de saber de onde tiram a conclusão de que um teratoma é um feto, ou foi um embrião ( quero uma assinatura científica ou médica para tal). Pode ter sido um amontoado de células embrionárias, mas destituído de humanidade.


Explique quando um amontoado de células embrionárias têm humanidade e quando um amontoado de células embrionárias é destituído de humanidade.


Você não entendeu? Um amontoado, resquícios, restos embrionários, defeituosos, incompletos, insuficientes, não um embrião com todos os sistemas para se desenvolver.
No caso de um teratoma que pode ter surgido de fecundação ( dentro do organismo da mulher ou no caso de gêmeo tardio dentro de uma criança), estas camadas embrionárias já não são mais capazes de se desenvolver como organismo humano, estão tomadas e transformadas a ponto de nada mais de humano sobrar a não ser aparência, e o resto é massa tumoral ( abra um teratoma e veja o que tem por dentro, já que a aparência externa ainda deixa dúvidas e está suscintando dúvidas sobre sua eliminação necessária).

Já perguntei e perguntarei de novo:
Algum médico ou geneticista endossaria o despautério de considerar "aborto" ( legal ou moralmente ) a retirada de um teratoma ( que é o que ele É neste momento, e não mais um ser humano em formação)? Encontre um.
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zumbi filosófico
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Re: Re.: Aborto, questão aos anti-aborto.

Mensagem por zumbi filosófico »

Apo escreveu:
betossantana escreveu:
Apo escreveu:Teratomas não são dotados de SNC algum, nem órgão interno formado,


Embriões também.


EIN? Beto, pára com isto...embriões tem SNC e órgãos vitais.


Em humanos, os embriões são os 3 primeiros meses de desenvolvimento, incluindo estágios sem SNC nem qualquer tipo de órgão.


Texto de Sagan e Druyan que é de praxe ser colado nessa discussão:



[center]ABORTO
é possível ser ao mesmo tempo
"pró-vida" e "pró-escolha"?
Carl SAGAN
[/center]
Biliões e Biliões. Lisboa : Gradiva, 1998, p.180-196

    A humanidade gosta de pensar em termos de extremos opostos. É dada a formular as suas convicções em termos de ou-ou, entre os quais não identifica possibilidades intermédias. Quando se vê obrigada a reconhecer que não é possível influenciar os extremos, continua inclinada a defender que em teoria eles têm razão, mas que, quando se trata de questões práticas, as circunstâncias nos empurram para o compromisso.

    JOHN DEWEY, Experiência e Educação, I (1938)


A questão tinha sido decidida anos antes. O tribunal tinha optado pela posição intermédia. Pensou-se que a luta tinha acabado. Em vez disso, há comícios gigantescos, ataques à bomba e intimidações, assassínios de trabalhadores de clínicas de aborto, prisões, intensas acções de sensibilização de órgãos do poder, dramatização legislativa, audições no Congresso, decisões do Supremo Tribunal, grandes partidos políticos que quase se definem em função da questão e clérigos que ameaçam os políticos com o inferno. Os que são a favor brandem acusações de hipocrisia e crime. Invoca-se do mesmo passo a intenção da Constituição e a vontade de Deus. Exibem-se argumentos duvidosos como se fossem certezas. As facções em confronto fazem apelo à ciência para reforço das suas posições. As famílias dividem-se, marido e mulher concordam em não discutir o assunto, velhos amigos deixam de se falar. Os políticos consultam as sondagens mais recentes em busca de ditames de consciência. No meio de tanta gritaria, os adversários mal conseguem ouvir-se. As opiniões polarizam-se. As mentes fecham-se.

Será errado abortar uma gravidez? Sempre? Às vezes? Nunca? Como decidir? Escrevemos este artigo para melhor compreendermos os pontos de vista em confronto e para vermos se conseguíamos chegar a uma posição que satisfizesse a ambos. Não há meio termo? Tivemos de avaliar a consistência dos argumentos de ambos os lados e apresentar casos para teste, alguns dos quais meramente hipotéticos. Se no caso de alguns desses testes dermos a ideia de que vamos longe de mais, pedimos ao leitor que tenha paciência connosco — o que queremos é forçar as várias posições até ao ponto de ruptura para lhes detectarmos os pontos fracos e ver onde falham.

Nos momentos de meditação, quase toda a gente reconhece que a questão não é totalmente unilateral. Verifica-se que muitos defensores de pontos de vista diferentes sentem algum desconforto quando se confrontam com o que está na base dos argumentos opostos. (É em parte por isso que se evitam esses confrontos.) E não há dúvida de que o problema toca em questões de fundo: quais são as nossas responsabilidades para com os outros e vice-versa? Devemos permitir que o Estado se intrometa nos aspectos mais íntimos e pessoais das nossas vidas? Onde estão os limites da liberdade? O que significa ser humano?

Dos muitos pontos de vista existentes, a ideia generalizada — em especial na comunicação social, que raramente tem tempo ou vontade de fazer distinções subtis — é a de que só há dois: "pró-escolha" e "pró-vida". É assim que gostam de ser chamados os dois principais campos beligerantes, e é assim que vamos chamar-lhes aqui. Na caracterização mais simplista, um pró-escolha defenderá que a decisão de abortar uma gravidez só pertence à mulher, que o Estado não tem direito a interferir. E um pró-vida defenderá que, a partir do momento da concepção, o embrião ou feto tem vida, que essa vida impõe a obrigação moral de a preservar e que aborto é igual a crime. Ambos os nomes — pró-escolha e pró-vida — foram escolhidos com a intenção de influenciar aqueles que ainda estão indecisos: não há muita gente disposta a ser considerada contrária à liberdade de escolha ou oposta à vida. Com efeito, liberdade e vida são dois dos valores mais queridos, mas aqui parecem estar em conflito irredutível.

Analisemos separadamente cada uma destas posições absolutistas. Um bebé recém-nascido é seguramente o mesmo ser que era imediatamente antes de nascer. Há boas provas de que um feto em fim de período responde ao som — inclusive à música, mas especialmente à voz da mãe. É capaz de chuchar no dedo ou dar uma cambalhota. De vez em quando gera ondas cerebrais de adulto. Há pessoas que se lembram do seu nascimento, ou mesmo do ambiente uterino. Talvez no ventre se pense. É difícil defender que no momento do parto se dá abruptamente uma transformação em pessoa plena. Assim sendo, será aceitável que seja crime matar uma criança no dia a seguir a ter nascido e não no dia antes de ter nascido?

Em termos práticos, isso não é muito importante: menos de 1% de todos os abortos constantes dos registos nos Estados Unidos terão ocorrido nos três últimos meses de gravidez (e, quando analisados em mais pormenor, a maior parte deles resultam de perda involuntária ou erro de cálculo). Mas os abortos no 3.º trimestre constituem um teste aos limites da posição pró-escolha. O "direito natural da mulher a dispor do seu próprio corpo" incluirá o direito a matar um feto em fim de tempo, que é, para todos os efeitos e fins, idêntico a uma criança recém-nascida?

Estamos convencidos de que esta questão assalta, pelo menos de vez em quando, muitos dos defensores da liberdade de reprodução. Mas têm relutância em suscitá-la porque ela é o princípio de uma encosta escorregadia. Se não é permissível abortar uma gravidez que vai no nono mês, que dizer do oitavo, sétimo, sexto...? Se aceitarmos que o Estado possa interferir numa altura da gravidez, não decorrerá daí que o Estado pode interferir sempre?

Isto faz levantar o espectro de legisladores, predominantemente homens, predominantemente ricos, a dizerem a mulheres pobres que têm de dar à luz e criar sozinhas filhos que não podem sustentar, a obrigarem raparigas a darem à luz filhos para os quais não estão emocionalmente preparadas, a dizerem a mulheres com aspirações a uma carreira que têm de abdicar dos seus sonhos, ficar em casa e criar filhos e, o que é o pior de tudo, a condenarem vítimas de violação e incesto a levarem por diante e alimentarem o filho de quem contra elas atentou(*). As proibições do aborto pela via legislativa suscitam a suspeita de que a sua real intenção seja controlar a independência e a sexualidade das mulheres. Por que hão-de os legisladores ter algum direito de qualquer espécie de dizer às mulheres o que podem fazer com o seu corpo? Privá-las da liberdade de reprodução é humilhá-las. As mulheres estão fartas de humilhações.


    (*) Dois dos mais fervorosos arautos do pró-vida de todos os tempos foram Hitler c Estaline — que logo que chegaram ao poder criminalizaram o aborto, até então legal. Mussolini, Ceausescu e inúmeros outros ditadores nacionalistas fizeram o mesmo. É claro que isto não constitui por si só um argumento a favor da escolha, mas é, pelo menos, um alerta para a possibilidade de a posição contrária ao aborto nem sempre ser sinónima de um profundo respeito pela vida humana.

E, no entanto, por consenso, todos pensamos que deve haver leis contra, e penas para, o homicídio. Seria fraca defesa se o homicida alegasse que o que fez foi entre ele e a vítima e o Estado não tinha nada a ver com isso. Se matar um feto é efectivamente matar um ser humano, não será obrigação do Estado preveni-lo? Uma das funções primordiais do governo é efectivamente proteger os fracos dos fortes.

Se não nos opusermos ao aborto em alguma fase da gravidez, não haverá o perigo de desprezarmos uma categoria inteira de seres humanos por indignos da nossa protecção e respeito? E não será esse desprezo o timbre do sexismo, do racismo, do nacionalismo e do fanatismo religioso? Não deverão aqueles que se dedicam à luta contra tais injustiças ter um cuidado escrupuloso para não pactuarem com outra injustiça?

Em nenhuma sociedade à face da Terra há hoje, nem nunca houve em tempo algum (com poucas e raras excepções, como os Jainas da Índia), direito à vida: criamos animais domésticos para matança; destruímos florestas; poluímos rios e lagos até ao ponto de os peixes não conseguirem lá viver; matamos veados e alces por desporto, leopardos pela pele e baleias para adubos; aprisionamos golfinhos, que arfam e se debatem, em grandes redes de atum; espancamos até à morte crias de focas; extinguimos uma espécie por dia. Todos estes animais e vegetais são tão vivos como nós. O que (supostamente) é protegido não é a vida, mas sim a vida humana.

E mesmo com tal protecção o homicídio não premeditado é um lugar-comum na vida urbana e travamos guerras "convencionais" saldos de vítimas tão terríveis que quase todos nós temos medo de pensar nisso a fundo. (É significativo que as chacinas organizadas pelos Estados sejam normalmente justificadas pela reclassificação dos nossos adversários — por questões de raça, nacionalidade, religião ou ideologia — como sub-humanos.) Essa protecção, esse direito à vida, ignora as 40 000 crianças com menos de 5 anos que morrem diariamente de fome, desidratação, doença e negligência no nosso planeta e que podiam ser, todas elas, evitadas.

Aqueles que afirmam um "direito à vida" são (quando muito) a favor, não de toda e qualquer manifestação de vida, mas sim a favor — em particular e exclusivamente — da vida humana. Por isso, também eles, tal como os que são pró-escolha, têm de decidir o que distingue o ser humano dos outros animais e quando surgem, durante a gestação, as qualidades exclusivamente humanas — sejam elas quais forem.

Apesar das muitas afirmações em contrário, a vida não começa com a concepção: é uma cadeia ininterrupta que se estende quase até à origem da Terra, há 4,6 biliões de anos. E a vida humana também não começa na concepção: é uma cadeia ininterrupta que vem desde a origem da nossa espécie, há centenas de milhares de anos. Qualquer espermatozóide ou óvulo humano está, sem sombra de dúvida, vivo. Não são seres humanos, evidentemente. Mas o mesmo poderia dizer-se de um óvulo fertilizado.

Em certos animais, um ovo desenvolve-se até dar lugar a um adulto saudável sem necessitar de uma única célula de esperma. Mas isso não acontece, tanto quanto sabemos, entre os seres humanos. Um espermatozóide e um óvulo por fertilizar constituem em conjunto o mapa genético integral de um ser humano. Em certas circunstâncias, após a fertilização, podem desenvolver-se e dar um feto. Mas a maior parte dos ovos fertilizados abortam espontaneamente. O desenvolvimento para feto não está de modo nenhum garantido. Nem um espermatozóide e um óvulo separados, nem um óvulo fertilizado, são mais do que um bebé ou um adulto em potência. Por isso, se um espermatozóide e um óvulo são tão humanos como um óvulo fertilizado resultante da sua união, e se é crime destruir um óvulo fertilizado — apesar de não passar de um bebé em potência —, por que não há-de ser crime destruir um espermatozóide ou um óvulo?

Centenas de milhões de células de espermatozóide (velocidade máxima com a cauda a abanar: 12 centímetros por hora) são produzidas, em média, numa ejaculação masculina. Um jovem saudável pode produzir em uma ou duas semanas espermatozóides suficientes para duplicar a população humana da Terra. Então a masturbação será homicídio cm massa? E as emissões nocturnas do sexo vulgar? Quando os óvulos não fecundados são expelidos mensalmente, morreu alguém? Deveremos pôr luto por todos esses abortos? É possível, em laboratório, produzir muitos animais inferiores a partir de uma única célula. E é possível clonar células humanas (talvez o mais famoso seja o clone HeLa, assim chamado por causa da sua doadora, Helen Lane). À luz desta tecnologia de clonagem, estaríamos a cometer homicídios em massa ao destruirmos qualquer célula clonável? Ao deitarmos fora uma gota de sangue?

Todos os espermatozóides e óvulos humanos são metades genéticas de seres humanos "potenciais". Fará sentido desenvolver esforços heróicos no sentido de os salvar e preservar integralmente, em toda a parte, por causa desse "potencial"? Não o fazer será imoral ou criminoso? É claro que existe uma diferença entre tirar uma vida e não a salvar. E existe uma grande diferença entre a probabilidade de sobrevivência de uma célula de espermatozóide e a de um óvulo fertilizado. Mas o absurdo de um exército de generosos preservadores de sémen leva-nos a pensar se o simples "potencial" de um óvulo fertilizado chegar a ser um bebé bastará para fazer da sua destruição um homicídio.

Os adversários do aborto receiam que, se for permitido o aborto imediatamente após a concepção, não haja mais nenhum argumento que o restrinja em qualquer fase posterior da gravidez. Daí que, temem eles, um dia seja permissível matar um feto, que é inquestionavelmente um ser humano. Tanto os que são pró-escolha como os que são pró-vida (pelo menos parte deles) são empurrados para posições absolutistas por receios paralelos da tal encosta escorregadia.

Encosta escorregadia é também aquela com que deparam os pró-vida dispostos a abrir uma excepção no caso angustiante de uma gravidez resultante de violação ou incesto. Mas por que há-de o direito à vida depender das circunstâncias da concepção? Se o resultado é igualmente uma criança, poderá o Estado decretar a vida para o fruto de uma união legítima, mas a morte para alguém que foi concebido pela força ou coacção? Que justiça é esta? E, se se abre uma excepção para um feto nestas circunstâncias, porquê recusá-la para qualquer outro feto? Esta é parte da razão pela qual algumas pessoas que são pró-escolha adoptam aquela que muitas outras consideram a postura excessiva de oposição ao aborto em todas e quaisquer circunstâncias — com a possível excepção do caso em que esteja em risco a vida da mãe(*).


    (*) Martinho Lutero, o fundador do protestantismo, recusava mesmo esta excepção: "Se elas ficarem cansadas ou mesmo morrerem de parto, não faz mal. Que morram de fecundidade — é para isso que elas existem" [Lutero, Vom Ebelichen Leben (1522)].

A razão mais frequente para abortar, à escala mundial, é de longe o controle da natalidade. Assim sendo, não deveriam os adversários do aborto andar a distribuir contraceptivos e a ensinar as crianças das escolas a usá-los? Seria um método eficaz de reduzir o número de abortos. Mas não é isso que se passa: os Estados Unidos estão muito atrás de outros países no desenvolvimento de métodos seguros c eficazes de controle do nascimento — em muitos casos a oposição a esse tipo de investigação (e à educação sexual) vem das mesmas pessoas que são contra o aborto(*).


    (*) E os que são pró-vida não deviam contar os aniversários de nascimento desde o momento da concepção? Não deviam fazer um interrogatório cerrado aos seus progenitores sobre a sua história sexual? É claro que iriam chegar a uma incerteza insanável: pode levar horas ou mesmo dias desde o acto sexual até acontecer a concepção (dificuldade acrescida para quem é pró-vida, mas quer estar de bem com a astrologia dos signos do Zodíaco).

A tentativa de chegar a uma definição eticamente válida e inequívoca de quando, se em algum momento, é permissível o aborto tem raízes históricas profundas. Com muita frequência, em especial na tradição cristã, essas tentativas estiveram ligadas à questão do momento em que a alma entra no corpo — matéria que não é fácil de submeter a investigação científica e assunto de controvérsia mesmo entre teólogos eruditos. Já houve quem localizasse a entrada da alma no espermatozóide antes da concepção, no momento da concepção, na altura da "aceleração" (quando a mãe sente pela primeira vez o feto a mexer dentro dela) e no nascimento. Ou mesmo depois.

Diferentes religiões têm doutrinas diferentes. No seio dos caçadores-recolectores não há normalmente limitações ao aborto, que na Grécia e Roma antigas era prática comum. Em contrapartida, os Assírios, mais severos, empalavam em estacas as mulheres que tentavam o aborto. O Talmude judaico ensina que o feto não é uma pessoa e não tem direitos. O Velho e o Novo Testamentos — ricos de proibições espantosamente pormenorizadas sobre trajos, dietas c palavras permissíveis — não contêm uma única palavra de proibição específica do aborto. A única passagem que vagamente lhe diz respeito (Exodus, 21, 22) decreta que, se houver uma luta e uma mulher circunstante for ferida por acidente e abortar, o autor tem de pagar uma multa.

Nem Santo Agostinho nem São Tomás de Aquino consideravam homicídio o aborto cm início de termo (o segundo com base cm que o embrião não parece humano). Este ponto de vista foi adoptado pela Igreja no Concílio de Viena, em 1312, e nunca foi repudiado. A primeira colectânea de direito canónico, em vigor durante muito tempo (segundo o principal historiador da doutrina da Igreja sobre o aborto, John Connery, S. J.), defendia que o aborto só era homicídio depois de o feto já estar "formado" — mais ou menos no fim do 1." trimestre.

Mas, quando, no século XVII, as células de esperma foram examinadas aos primeiros microscópios, achou-se que elas mostravam um ser humano completamente formado. Ressuscitou-se uma velha ideia do homúnculo — segundo a qual dentro de cada célula de esperma estava um minúsculo ser humano completamente formado, dentro de cujos testículos estavam inúmeros outros homúnculos, etc., ad infinitum. Em parte por causa desta interpretação errada de dados científicos, o aborto, em qualquer altura e por qualquer razão, tornou-se em 1869 motivo para excomunhão. A maior parte dos católicos e não católicos surpreendem-se quando descobrem que a data foi essa e não outra muito anterior.

Desde os tempos coloniais até ao século XIX, a opção nos Estados Unidos foi pela mulher até à "aceleração". Um aborto no 1º ou mesmo no 2.º trimestre era, quando muito, má conduta. Raramente era pedida a condenação, que era praticamente impossível de obter, porque dependia inteiramente do testemunho da própria mulher sobre se tinha sentido a aceleração e porque aos juizes não agradava acusarem uma mulher por exercer o seu direito à escolha. Em 1800 não havia, tanto quanto se sabe, uma única lei sobre o aborto. Viam-se anúncios a drogas indutoras do aborto em praticamente todos os jornais e mesmo em muitas publicações religiosas — embora a linguagem usada fosse adequadamente eufemística, mas de fácil compreensão.

Mas em 1900 já o aborto em qualquer altura da gravidez era interdito em todos os estados da União, excepto quando fosse necessário para salvar a vida da mãe. O que aconteceu para provocar tão grande reviravolta? A religião pouco teve a ver com ela. Drásticas conversões económicas e sociais transformaram este país de uma sociedade agrária numa sociedade urbano-industrial. A América estava a caminho de passar de uma das mais altas taxas de natalidade do mundo para uma das mais baixas. Sem dúvida, o aborto teve nisso um papel e estimulou as forças favoráveis à sua supressão.

Dessas forças, uma das mais significativas foi a classe médica. Até meados do século XIX, a medicina era uma actividade que não era certificada nem vigiada. Qualquer pessoa podia pendurar à porta uma tabuleta e intitular-se doutor. Com a criação de uma elite médica nova, de formação universitária, desejosa de promover o estatuto c a influência dos médicos, constituiu-se a Associação Médica Americana. Na sua primeira década de vida, a AMA começou a fazer campanha de bastidores contra os abortos que não fossem praticados por médicos legalmente reconhecidos. Diziam os médicos que os novos conhecimentos de embriologia tinham demonstrado que o feto é humano mesmo antes da aceleração.

O ataque que fizeram ao aborto era motivado, não pela preocupação com a saúde da mulher, mas sim, afirmavam, com o bem-estar do feto. Era preciso ser médico para saber quando o aborto era moralmente justificável, porque a questão dependia de factos científicos e médicos que só os médicos compreendiam. Ao mesmo tempo, as mulheres eram efectivamente excluídas das escolas médicas, onde tão secretos conhecimentos eram ministrados. Resultado: as mulheres não tinham a mínima palavra a dizer sobre a interrupção da sua própria gravidez. Cabia também aos médicos decidir se a gravidez constituía uma ameaça para a mulher e ficava ao seu inteiro critério determinar o que era e não era uma ameaça. Para a mulher rica, a ameaça podia ser uma ameaça à sua tranquilidade emocional ou mesmo ao seu estilo de vida. A mulher pobre era muitas vezes obrigada a recorrer à solução clandestina ou ao cabide.

Foi assim a lei até aos anos 60, altura em que uma coligação de indivíduos e organizações, entre elas a AMA, se bateu pela sua revogação e pela restauração dos valores mais tradicionais que viriam a tomar corpo no caso Roe contra Wade.

Matar por deliberação um ser humano chama-se assassínio. Matar por deliberação um chimpanzé — biologicamente o nosso parente mais próximo, com o qual partilhamos 99,6% dos nossos genes activos — pode ser qualquer outra coisa, mas assassínio não é. Até ver, assassínio aplica-se apenas ao acto de matar seres humanos. Daí que seja nuclear para a discussão do aborto a questão de saber em que momento começa a haver pessoa (ou, se quisermos, alma). Quando é que o feto se torna humano? Quando emergem as qualidades que são distinta e caracteristicamente humanas?

Reconhecemos que especificar um momento preciso é passar por cima de diferenças individuais. Portanto, se temos de traçar uma linha, que seja conservadora — isto é, sobre o cedo. Há quem resista a ter de definir um limite numérico, e nós comungamos desse desconforto, mas, se tem de haver uma lei nesta matéria, e se queremos que ela estabeleça um compromisso prático entre as duas posições absolutistas, ela tem necessariamente de especificar, pelo menos aproximadamente, um tempo de transição para a pessoalidade.

Todos nós começámos por sermos um ponto. Um óvulo fecundado é mais ou menos do tamanho do ponto com que se termina ortograficamente esta frase. O importante encontro de espermatozóide e óvulo ocorre normalmente numa das duas trompas-de-falópio. Uma célula divide-se em duas, duas transformam-se em quatro, e assim sucessivamente — sempre a multiplicar por 2. Ao décimo dia o ovo fertilizado transforma-se numa espécie de esfera achatada que parte para outro reino: o útero. Pelo caminho destrói tecidos. Suga sangue dos vasos capilares. Banha-se em sangue materno, do qual extrai oxigénio e nutrientes. Instala-se como uma espécie de parasita nas paredes do útero.

* À terceira semana, por altura da primeira falta de período menstrual, o embrião em formação tem cerca de 2 milímetros de comprimento e desenvolve várias partes do corpo. Só nesta altura começa a depender de uma placenta rudimentar. Tem mais ou menos o aspecto de um verme segmentado(*).



    (*) Várias publicações de direita e de cristãos fundamentalistas criticaram este argumento — dizendo que ele se baseia numa doutrina obsoleta, chamada recapitulação, de um biólogo alemão do século XIX. Ernst Haeckel defendia que os passos do desenvolvimento embrionário individual de um animal reconstituem (ou recapitulam) as fases do desenvolvimento evolutivo dos seus antepassados. A recapitulação foi exaustiva e cepticamente tratada pelo biólogo evolucionista Stephen Jay Gold (no seu livro Ontogenia e Filogenia, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Prcss, 1977). Mas o nosso artigo não tinha uma palavra sobre a recapitulação, como o leitor deste capítulo poderá constatar. As comparações do feto humano com outros animais (adultos) baseiam-se na aparência do feto. A sua forma não humana, nada que diga respeito à sua história evolucionista, é a chave do raciocínio que expomos nestas páginas.

* Ao fim da quarta semana tem cerca de 5 milímetros de comprimento. É reconhecivelmente um vertebrado, o seu coração de forma tubular começa a bater e torna-se visível a presença de algo que faz lembrar as guelras de um peixe ou de um anfíbio e uma cauda pronunciada. Mais parece um tritão ou um girino. É o fim do primeiro mês volvido sobre a concepção.

* À quinta semana já se distingue o essencial das linhas de divisão do cérebro e o que mais tarde irão ser os olhos e surgem uns pequenos rebentos a partir dos quais irão formar-se os braços e as pernas.

* À sexta semana, o embrião tem 13 milímetros de comprimento. Os olhos ainda estão aos lados da cabeça, como na maioria dos animais, e a face de réptil apresenta fendas cerradas no lugar que irá ser o da boca e do nariz.

* Ao fim da sétima semana, a cauda praticamente desapareceu e já se detectam características sexuais (embora ambos os sexos pareçam femininos). A face é de mamífero, mas vagamente porcina.

* Ao fim da oitava semana, a face faz lembrar um primata, mas ainda não é completamente humana. Quase todas as partes do corpo humano estão presentes no essencial. Parte da anatomia do cérebro inferior está bem desenvolvida. O feto mostra alguma resposta reflexa a um estímulo delicado.

* À décima semana, a face tem feições iniludivelmente humanas. Começa a ser possível distinguir os machos das fêmeas. As unhas e as principais estruturas ósseas só aparecem ao terceiro mês.

* Ao quarto mês já se distingue a cara de um feto da de outro. A aceleração sente-se quase sempre ao quinto mês. Os bronquíolos dos pulmões só começam a desenvolver-se por volta do sexto mês e os alvéolos ainda mais tarde.

Portanto, se só uma pessoa pode ser assassinada, quando é que o feto atinge a pessoalidade? Quando a sua face se torna nitidamente humana, perto do final do 1.º trimestre? Quando o feto começa a responder a estímulos, no fim do 1.º trimestre? Quando se torna suficientemente activo para se sentir acelerar, o que acontece, por norma, a meio do 2.º trimestre? Quando os pulmões atingem um estádio de desenvolvimento suficiente para que o feto possa, apenas por hipótese, ser capaz de respirar sozinho ao ar livre?

O problema com estos marcos específicos de desenvolvimento não é apenas o facto de eles serem arbitrários. Mais preocupante é o facto de nenhum deles envolver características exclusivamente humanas — com excepção da questão superficial do aspecto da face. Todos os animais respondem a estímulos e se mexem por vontade própria. Muitos são capazes de respirar. Mas isso não de os exterminarmos aos biliões. Não são os reflexos, nem o movimento, nem a respiração, que fazem de nós humanos.

Há outros animais que têm vantagem sobre nós em termos de velocidade, força, resistência, capacidades trepadoras ou rastejadoras, camuflagem, visão, olfacto ou audição, agilidade no ar ou na água. A nossa única grande vantagem, o segredo do nosso sucesso, é o pensamento — o pensamento caracteristicamente humano. Temos capacidade para pensarmos profundamente nas coisas, imaginarmos acontecimentos que ainda estão para vir, encontrar soluções. Foi assim que inventámos a agricultura e a civilização. O pensamento é a nossa bênção e a nossa maldição e faz de nós aquilo que somos.

É claro que as coisas acontecem no cérebro — principalmente nas camadas superiores da "massa cinzenta" convoluta a que se chama córtex cerebral. Os cerca de 100 biliões de neurónios do cérebro constituem a base material do pensamento. Os neurónios estão ligados uns aos outros e as suas sinapses desempenham um papel fundamental no acto de pensar. Mas a interligação de neurónios em larga escala só começa entre a 24ª e a 27ª semanas de gravidez — o sexto mês.

Através da colocação de eléctrodos inofensivos na cabeça de um paciente, os cientistas medem a actividade eléctrica produzida pela rede de neurónios existente dentro do crânio. Tipos diferentes de actividade mental produzem tipos diferentes de ondas cerebrais. Mas as ondas cerebrais de padrão regular características do cérebro humano adulto só são detectadas no feto por altura da 30ª semana de gravidez — à entrada do 3.º trimestre. Antes disso o feto não tem a necessária arquitectura cerebral. Ainda não pode pensar.

Aceder a matar qualquer criatura viva, em especial uma que possa mais tarde transformar-se num bebé, é perturbador e doloroso. Mas nós rejeitámos os extremos do "sempre" e do "nunca" e isto coloca-nos — quer queiramos, quer não — na rampa escorregadia. Se nos obrigam a escolher um critério de desenvolvimento, então é aqui que traçamos a linha: mal se torna possível o começo do pensamento caracteristicamente humano.

Trata-se, efectivamente, de uma definição muito conservadora: raramente se detectam em fetos ondas cerebrais regulares. Talvez mais investigação ajudasse. (Nos babuínos e nos fetos de ovinos as ondas cerebrais bem definidas também só começam no fim da gestação.) Se quiséssemos tornar o critério ainda mais rigoroso, prevendo a eventualidade de casos de desenvolvimento cerebral fetal precoce, podíamos traçar a linha aos seis meses. Por acaso foi aí que o Supremo Tribunal a traçou em 1973 — embora por razões completamente diferentes.

A sua decisão no caso Roe contra Wade veio mudar a lei americana sobre o aborto. Permite o aborto a pedido da mulher sem restrições no 1.º trimestre e, com algumas restrições destinadas a proteger-lhe a saúde, no 2.º trimestre. Dá aos estados o direito de proibirem o aborto no 3.º trimestre, excepto quando existe uma ameaça séria à vida ou à saúde da mulher. No acórdão Webster de 1989, o Supremo Tribunal recusou-se a revogar explicitamente a doutrina do caso Roe contra Wade, mas na prática convidou os 50 órgãos legislativos estaduais a que decidissem por si próprios.

Qual foi o raciocínio que prevaleceu no caso Roe contra Wade? Não foi atribuído qualquer peso legal ao que acontece às crianças depois de terem nascido ou à família. O que o tribunal deliberou foi que as garantias constitucionais de privacidade protegem o direito da mulher à liberdade de reprodução. Mas esse direito não é irrestrito. Há que ponderar a garantia de privacidade da mulher com o direito do feto à vida — e, quando o tribunal fez essa ponderação, deu prioridade à privacidade no 1.º trimestre e à vida no terceiro. A transição não foi decidida com base em nenhum dos considerandos que estamos a analisar no presente capítulo — nem quando se dá a "entrada da alma", nem quando o feto assume características humanas suficientes para ser protegido pelas leis contra o homicídio. Foi outro o critério: saber se o feto podia ou não viver fora da mãe. Chama-se a isto viabilidade e depende em parte da capacidade de respirar. Pura e simplesmente, os pulmões ainda não estão formados e o feto não consegue respirar — mesmo que o metam no mais sofisticado pulmão artificial — antes da 24ª semana, aproximadamente, portanto, no início do sexto mês. Por isso é que o acórdão de Roe contra Wade permite que os estados proíbam abortos no 3.º trimestre. É um critério muito pragmático.

O argumento é o seguinte: no caso de o feto, em determinada fase da gestação, ser viável fora do útero, então o direito do feto à vida sobrepõe-se ao direito da mulher à privacidade. Mas o que significa exactamente "viável"? Nem um recém-nascido de fim de termo é viável sem uma grande quantidade de cuidados. No tempo em que não havia, há escassas décadas, os nascidos de sete meses eram, em princípio, inviáveis. Nessa altura teria sido permissível o aborto ao sétimo mês? Com a invenção das incubadoras, tornaram-se de repente imorais as interrupções voluntárias das gravidezes de sete meses? O que acontecerá se no futuro se desenvolver uma nova tecnologia que permita a um útero artificial sustentar um feto mesmo antes do sexto mês, ministrando-lhe oxigénio c nutrientes através do sangue — tal como a mãe faz através da placenta e do sistema de circulação sanguínea do feto? Admitimos que não é provável que essa tecnologia seja desenvolvida tão cedo nem tão cedo seja posta à disposição de muita gente. Mas, se estivesse, passava a ser imoral abortar antes do sexto mês quando antes era moral? É frágil uma moralidade que depende da tecnologia e com ela muda; há quem a considere, além de frágil, inaceitável.

E por que razão, exactamente, deve a respiração (ou a função renal, ou a resistência à doença) justificar protecção legal? Se um feto demonstra que pensa e sente, mas não consegue respirar, será legítimo matá-lo? Damos mais valor à capacidade de respirar do que à de pensar e sentir? Os argumentos de viabilidade não podem, a nosso ver, determinar com coerência quando é que é permissível abortar. É preciso outro critério. Mais uma vez pomos à consideração a proposta de que esse critério seja o do primeiro sinal de pensamento humano.

Dado que, em média, a actividade cerebral fetal ocorre ainda mais tarde do que o desenvolvimento pulmonar, o acórdão do caso Roe contra Wade é, em nossa opinião, uma decisão boa e prudente para uma questão complexa e difícil. Com a proibição de abortar no último trimestre — excepto em casos de grave necessidade médica — define um equilíbrio justo entre as reivindicações de liberdade e vida em conflito.


Quando este artigo foi publicado na Parade, vinha acompanhado de uma caixa com um número de telefone através do qual os leitores podiam exprimir gratuitamente os seus pontos de vista sobre a questão do aborto. Recebemos o número espantoso de 380.000 chamadas. As pessoas podiam exprimir uma das quatro opções seguintes: "Aborto a partir do momento da concepção é assassínio"; "A mulher tem o direito de optar pelo aborto em qualquer altura da gravidez"; "Devia ser permitido o aborto nos primeiros três meses de gravidez"; "Devia ser permitido o aborto nos primeiros seis meses de gravidez." A Parade sai ao sábado e na segunda-feira as opiniões estavam equilibradamente divididas entre as quatro opções. Até que o Sr. Pat Robertson, um cristão evangelista fundamentalista que foi em 1992 candidato republicano à presidência, apareceu nessa segunda-feira no seu programa diário de televisão, incitou os seus sequazes a que tirassem a Parade "do lixo" e lhe fizessem chegar a mensagem de que matar um zigote humano é assassínio. Foi o que eles fizeram. A atitude geralmente pró-escolha da maioria dos americanos — repetidamente demonstrada cm sondagens de opinião demograficamente controladas e como ficara patente nos resultados iniciais dos telefonemas — foi esmagada pela organização política.


http://ocanto.webcindario.com/sagan.htm
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Re.: Aborto, questão aos anti-aborto.

Mensagem por Apo »

Estágios sem SNC e sem resquícios de órgãos vitais? Que estágios? Em que semana?

* Ao fim da quarta semana tem cerca de 5 milímetros de comprimento. É reconhecivelmente um vertebrado, o seu coração de forma tubular começa a bater e torna-se visível a presença de algo que faz lembrar as guelras de um peixe ou de um anfíbio e uma cauda pronunciada. Mais parece um tritão ou um girino. É o fim do primeiro mês volvido sobre a concepção.

* À quinta semana já se distingue o essencial das linhas de divisão do cérebro e o que mais tarde irão ser os olhos e surgem uns pequenos rebentos a partir dos quais irão formar-se os braços e as pernas.


Antes da 4ª semana, algumas mulheres nem sabem que estão grávidas. Onde se aplica a questão do aborto criminoso aqui?
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Samael
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Re: Re.: Aborto, questão aos anti-aborto.

Mensagem por Samael »

Apo escreveu:
betossantana escreveu:
Apo escreveu:Teratomas não são dotados de SNC algum, nem órgão interno formado,


Embriões também.


EIN? Beto, pára com isto...embriões tem SNC e órgãos vitais.


Não, não têm. Fetos têm.

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Anna
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Re: Re.: Aborto, questão aos anti-aborto.

Mensagem por Anna »

Acauan escreveu:
Esta questão é muito mais moral e filosófica que científica.


Esta questão envolve e pode ser considerada moral, filosófica e científica, ou não. Aliás, o assunto é tão, notoriamente, não consensual, que mesmo para vertentes de filósofos e pensadores a preocupação com o aborto não é uma questão moral. Uma vez que divorcia a moral da realidade do sofrimento dos seres humanos, fazendo com que as pessoas acreditem que suas preocupações são morais quando não são, pois não tem nada a ver com o alívio do, ou com, o sofrimento.

E parece muito confortável reduzir a amplitude da questão à minimizar o envolvimento da ciência, simplesmente por que, geralmente questões de escopo moral excluem a ciência, mas não neste caso. Já que ninguém precisa lançar mão de conceitos científicos da evolução biológica humana, da genética , ou da embriologia para versar ou compor um discurso lógico para defender se é crime, ou não, matar uma criança, um adulto ou um velho. O mesmo não ocorre com o tema em questão.



Ciência, por definição, versa sobre postulados transitórios,
Lembre-se que muitos cientistas da Alemanha nazista apresentaram um grande cabedal de evidências científicas para justificar o extermínio dos judeus.



A comparação sugerida neste caso não procede, uma vez que sabemos que as fases embrionárias não são postulados, e também não são hipóteses transitórias. É uma área de estudo científico inteira chamada embriologia. Não há porque tentar divorciar, minimizar, ou desmerecer o peso e envolvimento da ciência e cientistas nesta questão, ou qualquer outra que envolva morte e manipulação de embriões.

E acho que eu não preciso dizer isso a ninguém aqui (a favor ou contra aborto), pois a maioria deve saber muito bem a diferença entre o modelo da superioridade das raças, do modelo da gravidade, dos grupos sanguíneos, das fases embrionárias. os 3 últimos não são comparáveis ao primeiro como uma mera hipótese transitória da ciência, a menos que duvidemos da existência dos grupos sanguíneos, da gravidade ou das existencia das fases evolutivas da embriologia humana.


se consideramos que a identidade humana é um conceito permanente, então ela transcende os postulados científicos aceitos em qualquer época que o tema seja discutido.


Acontece que eu, e outros, não concordo o conceito usado por você, e já expliquei o porquê. Sabemos que sua proposta, e seu ponto de vista, aqui defendido sobre embriões, mórulas, blástulas, neurulas, ser humano, determinismo genético, e criminalidade do aborto não é um consenso, nem mesmo entre filósofos e cientistas. E muito menos no mundo, apesar de toda autoridade imputada a este tema.

Portanto, não vejo motivo para ser tão taxativo, sugerindo sua posição e sua defesa as raias do óbvio, uma vez que o tema não é consenso e não é óbvio (ex. USA, Canadá, Croácia, Eslovênia, etc, onde o aborto é legal).
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Acauan
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Mensagem por Acauan »

Anna escreveu:
Acauan escreveu:Esta questão é muito mais moral e filosófica que científica.

Esta questão envolve e pode ser considerada moral, filosófica e científica, ou não. Aliás, o assunto é tão, notoriamente, não consensual que mesmo para vertentes de filósofos e pensadores, a preocupação com o aborto não é uma questão moral. Uma vez que divorcia a moral da realidade do sofrimento dos seres humanos, fazendo com que as pessoas acreditem que suas preocupações são morais quando não são, pois não tem nada a ver com o alívio do, ou com, o sofrimento.


Para isto existem estas discussões, para debater questões não consensuais, pois se consensuais fossem, não haveria porque debatê-las.

Assim, podemos debater dentro da definição de moral que adotou.
Uma analogia possível é com a questão ecológica, que você defende tão bem.
Se partirmos do princípio de que temos uma obrigação moral com as gerações futuras que nos obriga a preservar o planeta para elas, temos que admitir que estas gerações futuras ainda não existem. São apenas seres potenciais que podem vir a existir ou não em um futuro presumido.
Nesta lógica, poderíamos esgotar os recursos naturais não renováveis sem que isto causasse qualquer sofrimento às gerações do presente, logo não violando nenhum preceito moral pela definição dada.

Se aceitarmos a idéia de que as gerações futuras têm direitos que devemos respeitar, mesmo sendo elas, no presente, pessoas que se definem apenas pela possibilidade de vir a existir, ou seja, se aceitamos a idéia de que devemos evitar ações no presente que prejudiquem pessoas que virão a existir apenas no futuro, por que a mesma lógica moral não pode ser aplicada aos fetos humanos em gestação normal?


Anna escreveu:E parece muito confortável reduzir a amplitude da questão à minimizar o envolvimento da ciência, simplesmente por que, geralmente questões de escopo moral excluem a ciência, mas não neste caso. Já que ninguém precisa lançar mão de conceitos científicos da evolução biológica humana, da genética , ou da embriologia para versar ou compor um discurso lógico para defender se é crime, ou não, matar uma criança, um adulto ou um velho. O mesmo não ocorre com o tema em questão.


Há um mal entendido aqui.
Não reduzi a amplitude da questão para minimizar o envolvimento da ciência.
Muito pelo contrário. Estendi a amplitude da questão para ALÉM do envolvimento da ciência, o que não a exclui, uma vez que a participação científica continua contida na amplitude adotada. A diferença é que nesta amplitude a questão não se esgota na discussão científica.

Como exemplo desta amplitude maior, fiz em postagem anterior uma breve abordagem da questão existencial, que precede e transcende os aspectos biológicos, uma vez que antes que uma determinada massa orgânica se defina como um determinado indivíduo, possibilidades infinitas têm que ser reduzidas continuamente até restar apenas aquelas que virão a produzir aquele ser humano específico, que por isto é único e irreproduzível.


Anna escreveu:
Acauan escreveu:Ciência, por definição, versa sobre postulados transitórios.


A comparação sugerida neste caso não procede, uma vez que sabemos que as fases embrionárias não são postulados, e também não são hipóteses transitórias.


O único modo de estes postulados não serem transitórios é se tiverem chegado ao limite do conhecimento sobre o tema. Como sabemos que isto nunca ocorre, estes postulados estão sempre disponíveis para ser, no mínimo, complementados com novas descobertas e informações.

Anna escreveu: É uma área de estudo científico inteira chamada embriologia. Não há porque tentar divorciar, minimizar, ou desmerecer o peso e envolvimento da ciência e cientistas nesta questão, ou qualquer outra que envolva morte e manipulação de embriões.


A ciência deve ter o peso merecido que lhe cabe, nesta e em qualquer outra questão, que é fornecer conhecimento que ilumine o julgamento da questão, que se dará além do escopo da ciência.

Voltando às analogias é exatamente o que ocorre nos tribunais, onde mesmo diante da prova científica mais incontestável, a decisão final sobre se o réu é culpado ou inocente só pode ser proferida por um júri imparcial composto de seus iguais, a sentença só pode ser emitida por um juiz, também imparcial e tudo isto sob a autoridade da lei.

Ou seja, não é no laboratório que se deve decidir quem tem e quem não tem o direito de viver.


Anna escreveu: E acho que eu não preciso dizer isso a ninguém aqui (a favor ou contra aborto), pois a maioria deve saber muito bem a diferença entre o modelo da superioridade das raças, do modelo da gravidade, dos grupos sanguíneos, das fases embrionárias. os 3 últimos não são comparáveis ao primeiro como uma mera hipótese transitória da ciência, a menos que duvidemos da existência dos grupos sanguíneos, da gravidade ou das existencia das fases evolutivas da embriologia humana.


Exato. Um modelo pode ser melhor que o outro, mas a nenhum dos citados se pode reivindicar perfeição, se considerados válidos os postulados Popperianos.

Não era o objetivo comparar a qualidade científica das teses citadas, mas ilustrar o perigo de se atribuir à ciência o papel de juiz da vida e morte.


Anna escreveu:
Acauan escreveu:se consideramos que a identidade humana é um conceito permanente, então ela transcende os postulados científicos aceitos em qualquer época que o tema seja discutido.

Acontece que eu, e outros, não concordo o conceito usado por você, e já expliquei o porquê. Sabemos que sua proposta, e seu ponto de vista, aqui defendido sobre embriões, mórulas, blástulas, neurulas, ser humano, determinismo genético, e criminalidade do aborto não é um consenso, nem mesmo entre filósofos e cientistas. E muito menos no mundo, apesar de toda autoridade imputada a este tema.

Portanto, não vejo motivo para ser tão taxativo, sugerindo sua posição e sua defesa as raias do óbvio, uma vez que o tema não é consenso e não é óbvio (ex. USA, Canadá, Croácia, Eslovênia, etc, onde o aborto é legal).


Como disse, se fosse consenso não haveria o que debater.
Nós, Índios.

Acauan Guajajara
ACAUAN DOS TUPIS, o gavião que caminha
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Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!

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Mensagem por Anna »

Acauan escreveu:Para isto existem estas discussões, para debater questões não consensuais, pois se consensuais fossem, não haveria porque debatê-las.


Depende. Sendo consensos ou não, não deixam de ser discutidas, pois podem vir a ser consensos ou deixar de ser, de grupo para grupo. Já que questões podem ser consensos para um detrminado grupo e não para outros. Em outro tópico questionamos aquecimento global, consenso para a maioria dos cientistas, e não para uma minoria. Muitos questionam evolução, consenso para a ciência como um todo, mas não para muitos e muitos desarvorados de diversas vertentes.
Outras questões não são consensos mesmo para grupos que possuem consensos claros para diversos pontos de vistas. Como o exemplo que discutimos. Que não é consenso, nem mesmo para grupos científicos ou filosóficos.

Por isso, desde sempre deixo claro que discutimos sobre crenças, preconceitos pessoais, pontos de vistas suportados por aquilo que acreditamos. E seu discurso nas primeras páginas desse tópico, bem como em outros que li sobre o assunto, deixam transparecer que seu ponto de vista é um consenso e a fonte mais óbvia e lógica a ser adotada do ponto de vista filosófico. Quando, ambos, sabemos que não é.


Assim, podemos debater dentro da definição de moral que adotou.
Uma analogia possível é com a questão ecológica, que você defende tão bem.
Se partirmos do princípio de que temos uma obrigação moral com as gerações futuras que nos obriga a preservar o planeta para elas, temos que admitir que estas gerações futuras ainda não existem. São apenas seres potenciais que podem vir a existir ou não em um futuro presumido.
Nesta lógica, poderíamos esgotar os recursos naturais não renováveis sem que isto causasse qualquer sofrimento às gerações do presente, logo não violando nenhum preceito moral pela definição dada.
Se aceitarmos a idéia de que as gerações futuras têm direitos que devemos respeitar, mesmo sendo elas, no presente, pessoas que se definem apenas pela possibilidade de vir a existir, ou seja, se aceitamos a idéia de que devemos evitar ações no presente que prejudiquem pessoas que virão a existir apenas no futuro, por que a mesma lógica moral não pode ser aplicada aos fetos humanos em gestação normal?


Não, não. Você está equivocado quanto ao que adotei. Sou um tiquinho menos óbvia, e menos ligada ao meu grupo natural (homo sapiens) do que a filosofia de meus pares ambientalistas. As minhas relações emocionais são maiores, mais amplas, e bem mais intrincadas. Elas se ampliam em laços profundos, robustos e complexos, os quais eu mesma sou capaz de entender de forma parcial e rudimentar, com seres de formas variadas e parentencos próximos e distantes a minha espécie, e também com as coisas inanimadas de vida biológica desse mundo. Me sinto parte e unida a todos eles, como um só, suas dores minhas dores, sua morte minha morte. Morte da felicidade que há nas entranhas, estranhas, da natureza da vida que canta e dança em cada coisa latente desse mundo.

Pessoalmente acho bastante bonito a filosofia Lakota, que se preocupa com o bem estar da natureza para as sete futuras gerações. Mas eu, particularmente, não defendo ou tenho um compromisso moral com a preservação ambiental que priorize os seres humanos. Todo o discurso que verse fora do meu conceito e sentimento é lógico, mas está fora da minha real filosofia moral, sendo apenas ferramentas que uso para agir e discursar dentro dos conceitos e estruturas morais alheias. Visando obviamente angariar mais opiniões positivas para minha causa.

Meu compromisso moral é direto e restrito para com a própria natureza e não com os humanos, que são, como todos os outros seres apenas uma expressão da sua magnífica diversidade de formas, inteligências, expressões e beleza. Optei viver a seu serviço, e por eles, todos, com certas predileções, e maiores encantamentos por tudo aquilo que está fora do clado Homo sapiens. Não que este último deixe de me encantar, mas não é meu prefileto, nem de longe o mais importante e que eu vá defender e escolher em detrimento de outros. Eu quero a floresta de pé pela floresta, pelos seres que estão nela, e por mim, simplesmente porque a amo, e ela possui um valor incomensurável e impossível de se expresso por palavras, para mim. É egoísta, e parte do EU, meu, propriamente dito.

Se seres humanos se beneficiam dela, é uma parte do processo, assim como todos os outros seres se beneficiam, e isso me interessa, por que ELES permanecem, graças a existência dela, para meu encantamento e extrema felicidade. Para que eu seja feliz é preciso que existam florestas, rios, mares, cachoeiras, montanhas, desertos, muitas e muitos, pluralidade e infinitude deles, o quanto mais delas, de pé mais feliz e plena eu sou.

No mais, compartilho da visão dos filósofos que versam que questões morais estão relacionadas ao sofrimento dos seres. Então, se um ser, qualquer, sofre não pode haver motivo para recusar-mo-nos a considerar esse sofrimento, independente da natureza desse ser, dentro do princípio de igualdade.

Se um determinado ser não possui capacidade de sofrer, ou de se satisfazer, de felicidade, não existe o que tomar em consideração, mesmo que ele tivesse, pudesse ou viesse a ser, sentir, ou se tornar, qualquer ser. É por isso que concordo que o limite da senciência é o limite defensável da preocupação e defesa de interesses de outro ser. Caso contrário, é arbitrário e o que estamos levando em considerção poderia ser eleito por qualquer motivo representado por uma característica particular que termina por restringir a grupos específicos, ou a grande segregação.

Isso é o que acredito.

O resto de sua postagem comento amanhã, pq hoje estou só o pó da rabióla!
Editado pela última vez por Anna em 14 Fev 2008, 03:01, em um total de 2 vezes.
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Mensagem por Anna »

Estou sorrindo aqui sozinha, sempre me faz bem falar disso, por que compreendo-me melhor a medida que discurso sobre o assunto. Mas sorri pq me lembrei da frase indígena ( e vc é descendente direto deles) que mais me traduz e me faz sentir bem

EU SOU a natureza.


:emoticon16:
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Acauan
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Mensagem por Acauan »

Anna escreveu:
Acauan escreveu:Para isto existem estas discussões, para debater questões não consensuais, pois se consensuais fossem, não haveria porque debatê-las.


Depende. Sendo consensos ou não, não deixam de ser discutidas, pois podem vir a ser consensos ou deixar de ser, de grupo para grupo. Já que questões podem ser consensos para um detrminado grupo e não para outros. ... Como o exemplo que discutimos. Que não é consenso, nem mesmo para grupos científicos ou filosóficos.


Bem, o debate só faz sentido quando os debatedores não têm - entre si - um consenso definido sobre as questões debatidas, independente de quais outros consensos possam existir fora desta abrangência.

Anna escreveu: Por isso, desde sempre deixo claro que discutimos sobre crenças, preconceitos pessoais, pontos de vistas suportados por aquilo que acreditamos. E seu discurso nas primeras páginas desse tópico, bem como em outros que li sobre o assunto, deixam transparecer que seu ponto de vista é um consenso e a fonte mais óbvia e lógica a ser adotada do ponto de vista filosófico. Quando, ambos, sabemos que não é.


Como não ligo a mínima para que minhas idéias sejam consenso, talvez tenha passado uma impressão errada. O que aprecio é que minhas idéias tenham fundamentação racional

Minha fundamentação racional para as posições que defendo na questão em debate pode ser avaliada em duas séries de argumentações:

Aborto e Argumentos estúpidos e sem vergonha

Até agora, neste tópico, o empenho médio com que tais argumentos foram lidos, analisados e refutados com contra-argumentações apresentadas à tréplica pode ser resumido no comentário de alguém que os chamou de "punheta filosófica".


Anna escreveu: Não, não. Você está equivocado quanto ao que adotei. Sou um tiquinho menos óbvia...,


Embora o Índio Velho não esteja acima dos equívocos, tomá-la por óbvia dificilmente seria um deles.

Anna escreveu: No mais, compartilho da visão dos filósofos que versam que questões morais estão relacionadas ao sofrimento dos seres. Então, se um ser, qualquer, sofre não pode haver motivo para recusar-mo-nos a considerar esse sofrimento, independente da natureza desse ser, dentro do princípio de igualdade.

Se um determinado ser não possui capacidade de sofrer, ou de se satisfazer, de felicidade, não existe o que tomar em consideração, mesmo que ele tivesse, pudesse ou viesse a ser, sentir, ou se tornar, qualquer ser. É por isso que concordo que o limite da senciência é o limite defensável da preocupação e defesa de interesses de outro ser. Caso contrário, é arbitrário e o que estamos levando em considerção poderia ser eleito por qualquer motivo representado por uma característica particular que termina por restringir a grupos específicos, ou a grande segregação.


Este é um conceito reducionista de moral.

Se adotarmos que apenas o que causa sofrimento é imoral, criaremos algumas lacunas terríveis.

Por exemplo, é possível mentir sem que alguém sofra em decorrência desta mentira.
Na moral clássica, mentir é imoral, porque a verdade é um bem em si mesmo e privar quem quer que seja da verdade que lhe é devida é mau.
Pessoas verdadeiras acreditam que tem a obrigação para consigo mesmo de sê-lo, independente dos efeitos potenciais da falsidade.

Em outro exemplo hipotético, podemos conceber um tipo de escravidão cientificamente projetada para que os escravos não sofram com sua condição, pelo contrário se sintam satisfeitos com ela – algo como "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley.
Neste caso, a ausência de sofrimento isentaria este tipo de escravidão da condenação moral?

A moral clássica se fundamenta no BEM, que se manifesta no que é verdadeiro, bom, justo e... (por que não?) belo.
O julgamento moral se dá não apenas quando se aflige outros com mal imerecido, na forma da negação daquelas referências, mas também quando se priva alguém do BEM que lhe é devido.

Existem mil e uma formas retóricas de se relativizar isto, mas poucas resistem ao crivo da experiência pessoal e real.


Anna escreveu:Estou sorrindo aqui sozinha, sempre me faz bem falar disso, por que compreendo-me melhor a medida que discurso sobre o assunto. Mas sorri pq me lembrei da frase indígena ( e vc é descendente direto deles) que mais me traduz e me faz sentir bem

EU SOU a natureza.


Tupis têm uma relação um tanto dúbia com a natureza, a quem amamos e admiramos enquanto ela não tenta nos matar.
Nós, Índios.

Acauan Guajajara
ACAUAN DOS TUPIS, o gavião que caminha
Lutar com bravura, morrer com honra.

Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!

Trancado