Acauan escreveu:
Sempre a mesma história, alguém decreta arbitrariamente que o desenvolvimento do sistema nervoso é que dá a um feto o direito a vida e se escusa completamente de explicar porque, como se isto fosse alguma lei natural ou divina.
Isso é meio que uma inversão do ônus da prova, uma vez que há um consenso (ou quase) entre a proteção da vida humana dotada de SNC funcional, entre praticamente todos os tipos de "pró-vida" e "pró-escolha", ou na maioria deles (ao menos dos que já conheci).
Há um consenso moral geral, de que não podemos matar pessoas com sistema nervoso funcional; que células ou grupos de células ou tecidos, mesmo que altamente organizados, não tem o mesmo valor da vida humana (ou nem necessariamente humana) dotada de SNC funcional, mesmo que hajam ácidos nucléicos organizados dentro dos padrões de seqüências da espécie humana.
Agora, são os pró-vida que vêem o ato da fecundação (ou até mesmo da ejaculação, no caso dos anti-DIU) como algo precioso, que torna algumas células especiais e teoricamente tão "humanas" quanto pessoas já dotadas de SNC funcional, e portanto eles é que devem maiores explicações. Em todos os casos, a lógica que tentam usar desmorona devido a diversas inconsistências.
Não significa que ninguém deva poder ser pró-vida em âmbito pessoal e se recusar a usar anti-concepcionais ou simplesmente nunca abortar (sendo a última opção sendo também a preferida por todos os "pró-escolha"), e o que mais inventarem, da mesma forma que testemunhas de Jeová podem recusar transfusões de sangue e diversos outros procedimentos médicos não-obrigatórios.
Depois vem dizer que é melhor ser abortado do que nascer pobre, como se milhões de pessoas que nasceram pobres e estão vivas não tivessem opinião em contrário.
Esse argumento é especialmente decepcionante vindo de você, que sempre tem um nível de argumentação bastante elevado.
O mesmo tipo de raciocínio serviria para promover um anti-planejamento familiar total, não apenas interrupção da gravidez; engravidar para toda ovulação possível; por mais miserável que se tornasse essa sociedade, é da natureza humana, é algo biológico, tender a preferir estar vivo do que morto. Pode até ser que aumentasse o número de suicídios (não necessariamente, uma vez que são os países mais desenvolvidos que geralmente tem os maiores índices de suicídio, se não me engano), mas ainda não seria a maioria das pessoas que preferia estar morta.
E não é questão nem necessariamente de pobreza, mas de pessoas que tiveram um filho acidentalmente, não querendo tê-lo, sendo "forçadas" pelo estado e pela sociedade a tê-lo uma vez que tenha ocorrido a fecundação e não tenha ocorrido aborto espontâneo. Não é bom nem para os pais, qualquer que seja sua classe social, nem para a criança que vem ao mundo por esse tipo de adoração religiosa à um tipo de célula ou, mais precisamente, ao ato sexual.
Me causa total estranheza observar como pessoas racionais podem preferir "salvar a vida" de células com ácidos nucléicos humanos pelo seu potencial de desenvolverem um SNC funcional, mesmo que quando desenvolvam esse SNC funcional, sejam indesejadas pelos próprios pais, ou aconteça o que acontecer dali por diante; não ocorreu aborto, então podem respirar aliviados, e o que acontece depois do nascimento de uma criança indesejada é menos importante. Por que o mesmo não é defendido quanto à vida dos óvulos? Ou à embriões produzidos por clonagem, agora aceitos como alternativa mais moral para pesquisa com células embrionárias? Ambos não envolveram a fecundação.
Claro, pode-se sempre adotar ao video-makerismo e dizer que não é que seja menos importante, talvez seja até mais, mas isso é uma falsa dicotomia e então partir para colocações que dão uma solução pragmática para todos como "sexo, só com responsabilidade", ou "só fecundem óvulos se ambos os donos dos gametas quiserem mesmo ter um filho juntas", e então fazer figa para que todos sigam esses conselhos. Claro que, no caso do videomaker mesmo, ainda tem a desculpa de crianças que nascem indesejadas terem isso determinado pelo seu karma, então ser bom, e talvez aquilo da guerra civil prevista pelo Chico Xavier caso o aborto fosse legalizado no Brasil, o que são atenuantes no caso dele.
E a mulher tem direito ao próprio corpo. Só que todo direito implica em responsabilidades quando envolve uma terceira parte. Fingir que o feto não é uma terceira parte é pura conveniência.
Justamente por essas responsabilidades quanto a terceiras pessoas que considero muito mais responsável a legalização do aborto; não acho que seja responsável se ter um filho simplesmente porque ocorreu fecundação (ainda que seja argumentável que as pessoas geralmente devam ter a liberdade de fazê-lo, se pensarem assim), e acho abominável que o estado na prática obrigue as pessoas a fazerem isso mesmo que não compartilhem dessa visão "fecundo-centrista" da vida humana.