Demolindo alguns mitos sobre a escravidão
Enviado: 24 Mar 2007, 15:11
"O Globo" 22/03/07
Escravidão em branco e preto
DEMÉTRIO MAGNOLI
Há duzentos anos, em 25 de março, William Wilberforce venceu, e seu projeto de abolição do comércio de escravos recebeu o selo do trono britânico. Naquele momento, começou o longo declínio do tráfico internacional de seres humanos.
O cristão evangélico Wilberforce se ergueu sobre os ombros de Thomas Clarkson, o fundador, em 1787, da Sociedade para a Abolição da Escravatura, e dos quakers, pioneiros do movimento abolicionista.
Incansável, Clarkson descerrou o véu da hipocrisia sob o qual se ocultava o horror. Ele obrigou uma opinião pública de sensibilidades tecidas pela filosofia das Luzes a encarar a sua própria imagem, refletida no espelho dos porões dos navios negreiros.
Os abolicionistas ingleses venceram, mas não sozinhos. Em 1791, explodiu a revolução dos escravos, no Haiti de Toussaint L’Ouverture. Os revolucionários derrotaram as tropas coloniais francesas, as forças invasoras britânicas e, em 1804, emanciparam meio milhão de escravos. Os parlamentares aprovaram o projeto de Wilberforce coagidos pelo medo, tanto quanto pela vergonha.
O tráfico e a escravidão continuam reverberando. O escritor moçambicano Mia Couto relata uma visita aos EUA de Honória BailorCaulker, uma senhora africana, presidente da câmara do povoado de Shenge, na Serra Leoa.
Convidada a discursar, ela subiu ao palco, cantou “Amazing Grace” e, após demorada pausa, informou à platéia que o célebre hino religioso foi composto por um filho da escravatura, descendente de uma família que deixou Shenge.
A platéia explodiu em aplausos comovidos, mas Honória os interrompeu e indagou se a homenageavam como símbolo do sofrimento de milhões de escravos. Diante da resposta uníssona, atalhou: “Pois eu não sou descendente de escravos. Nem eu nem o autor do hino.
Somos, sim, descendentes de vendedores de escravos. Meus bisavós enriqueceram vendendo escravos.” Os europeus, como regra, não caçavam africanos, mas os adquiriam na segurança de suas fortalezas costeiras.
A carga humana era fornecida pelos reinos negreiros, alguns muito poderosos, como o Estado ashanti, da Costa do Ouro, que cobrava aluguel dos traficantes europeus pelo uso das fortalezas e mantinha parte dos cativos como serviçais domésticos de seus chefes.
Em 1872, bem depois do encerramento do tráfico atlântico, o soberano ashanti Zey dirigiu uma carta ao rei da Inglaterra solicitando a retomada do comércio de escravos.
Yaw Bedwa, da Universidade de Gana, diagnostica uma “amnésia geral sobre a escravidão”. O interdito, vigente em diversos países africanos, não decorre apenas das conveniências de elites clânicas ligadas por escassas gerações ao negócio do tráfico.
Antes de tudo, ele protege uma imagem da África consagrada pelos “pais fundadores”.
Essa imagem não nasceu na África, mas entre os intelectuais que inventaram o panafricanismo, como o americano W.E.B. Du Bois (1868-1963) e o jamaicano Marcus Garvey (1887-1940). Homens de seu tempo, eles interpretaram a história sob o prisma das raças e, sem conhecer o caleidoscópio africano, ergueram a bandeira da Nação África, cuja unidade repousaria no antagonismo com a figura do branco escravista e imperialista.
A narrativa racial da vitimização, fabricada na diáspora, migrou para a África por meio dos líderes das lutas anticoloniais, transfigurando-se depois em verdade de Estado: europeus escravizam africanos, mas africanos não escravizam africanos.
Fora da África, entre intelectuais e ativistas dos movimentos negros, a “amnésia” assume formas mais complexas.
O antropólogo Kabengele Munanga, da USP, ao distinguir a escravidão tradicional nas sociedades africanas do escravismo mercantil no sistema capitalista, passa ao largo da evidência de que a norma da desigualdade que sustentava a primeira também propiciou a associação entre os reinos negreiros e o tráfico europeu.
Já Nei Lopes, autor de um “Dicionário Escolar Afro-Brasileiro”, não está interessado em distinções sociológicas, mas unicamente num curioso cotejo das responsabilidades de “europeus” (leia-se “brancos”) e “africanos” (leia-se “negros”), que o leva a concluir que os primeiros “corromperam” os segundos.
A reconstituição ideológica da história do comércio de gente busca inspiração nos conceitos perigosos de culpa e de raça, que servem para abrir as portas das políticas de “reparação”.
A escravidão não é evocada a fim de iluminar o sistema que convertia seres humanos em mercadoria, mas para restaurar o princípio da divisão racial da humanidade. É o inverso do que fizeram o revolucionário L’Ouverture e o reformador Clarkson, separados por um oceano e pela cor da pele, mas unidos em torno do princípio da igualdade.
Escravidão em branco e preto
DEMÉTRIO MAGNOLI
Há duzentos anos, em 25 de março, William Wilberforce venceu, e seu projeto de abolição do comércio de escravos recebeu o selo do trono britânico. Naquele momento, começou o longo declínio do tráfico internacional de seres humanos.
O cristão evangélico Wilberforce se ergueu sobre os ombros de Thomas Clarkson, o fundador, em 1787, da Sociedade para a Abolição da Escravatura, e dos quakers, pioneiros do movimento abolicionista.
Incansável, Clarkson descerrou o véu da hipocrisia sob o qual se ocultava o horror. Ele obrigou uma opinião pública de sensibilidades tecidas pela filosofia das Luzes a encarar a sua própria imagem, refletida no espelho dos porões dos navios negreiros.
Os abolicionistas ingleses venceram, mas não sozinhos. Em 1791, explodiu a revolução dos escravos, no Haiti de Toussaint L’Ouverture. Os revolucionários derrotaram as tropas coloniais francesas, as forças invasoras britânicas e, em 1804, emanciparam meio milhão de escravos. Os parlamentares aprovaram o projeto de Wilberforce coagidos pelo medo, tanto quanto pela vergonha.
O tráfico e a escravidão continuam reverberando. O escritor moçambicano Mia Couto relata uma visita aos EUA de Honória BailorCaulker, uma senhora africana, presidente da câmara do povoado de Shenge, na Serra Leoa.
Convidada a discursar, ela subiu ao palco, cantou “Amazing Grace” e, após demorada pausa, informou à platéia que o célebre hino religioso foi composto por um filho da escravatura, descendente de uma família que deixou Shenge.
A platéia explodiu em aplausos comovidos, mas Honória os interrompeu e indagou se a homenageavam como símbolo do sofrimento de milhões de escravos. Diante da resposta uníssona, atalhou: “Pois eu não sou descendente de escravos. Nem eu nem o autor do hino.
Somos, sim, descendentes de vendedores de escravos. Meus bisavós enriqueceram vendendo escravos.” Os europeus, como regra, não caçavam africanos, mas os adquiriam na segurança de suas fortalezas costeiras.
A carga humana era fornecida pelos reinos negreiros, alguns muito poderosos, como o Estado ashanti, da Costa do Ouro, que cobrava aluguel dos traficantes europeus pelo uso das fortalezas e mantinha parte dos cativos como serviçais domésticos de seus chefes.
Em 1872, bem depois do encerramento do tráfico atlântico, o soberano ashanti Zey dirigiu uma carta ao rei da Inglaterra solicitando a retomada do comércio de escravos.
Yaw Bedwa, da Universidade de Gana, diagnostica uma “amnésia geral sobre a escravidão”. O interdito, vigente em diversos países africanos, não decorre apenas das conveniências de elites clânicas ligadas por escassas gerações ao negócio do tráfico.
Antes de tudo, ele protege uma imagem da África consagrada pelos “pais fundadores”.
Essa imagem não nasceu na África, mas entre os intelectuais que inventaram o panafricanismo, como o americano W.E.B. Du Bois (1868-1963) e o jamaicano Marcus Garvey (1887-1940). Homens de seu tempo, eles interpretaram a história sob o prisma das raças e, sem conhecer o caleidoscópio africano, ergueram a bandeira da Nação África, cuja unidade repousaria no antagonismo com a figura do branco escravista e imperialista.
A narrativa racial da vitimização, fabricada na diáspora, migrou para a África por meio dos líderes das lutas anticoloniais, transfigurando-se depois em verdade de Estado: europeus escravizam africanos, mas africanos não escravizam africanos.
Fora da África, entre intelectuais e ativistas dos movimentos negros, a “amnésia” assume formas mais complexas.
O antropólogo Kabengele Munanga, da USP, ao distinguir a escravidão tradicional nas sociedades africanas do escravismo mercantil no sistema capitalista, passa ao largo da evidência de que a norma da desigualdade que sustentava a primeira também propiciou a associação entre os reinos negreiros e o tráfico europeu.
Já Nei Lopes, autor de um “Dicionário Escolar Afro-Brasileiro”, não está interessado em distinções sociológicas, mas unicamente num curioso cotejo das responsabilidades de “europeus” (leia-se “brancos”) e “africanos” (leia-se “negros”), que o leva a concluir que os primeiros “corromperam” os segundos.
A reconstituição ideológica da história do comércio de gente busca inspiração nos conceitos perigosos de culpa e de raça, que servem para abrir as portas das políticas de “reparação”.
A escravidão não é evocada a fim de iluminar o sistema que convertia seres humanos em mercadoria, mas para restaurar o princípio da divisão racial da humanidade. É o inverso do que fizeram o revolucionário L’Ouverture e o reformador Clarkson, separados por um oceano e pela cor da pele, mas unidos em torno do princípio da igualdade.