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Quando eu digo: "Eu acredito em duendes"...

Enviado: 11 Mai 2007, 16:59
por Azathoth
...o que eu estou querendo dizer com isso? O que é ter uma crença? Onde no mundo encontram-se "crenças"? (ou "desejos", "motivações", "intenções", etc)

Vou dar três exemplos e meio de soluções para essa pergunta.

Se você for um representacionalista, você acha que dentro da sua cabeça encontra-se de alguma forma a sentença "eu acredito em duendes". Na sugestão de Jerry Fodor, ela pode estar escrita em uma "linguagem do pensamento" - algo análogo à "linguagem de máquina" em computadores. Utilizando alguma codificação especial e operadores semânticos, encontra-se em sua forma primeva a sentença "eu acredito em duendes", que pode ser traduzida em uma linguagem de nível mais alto humana (como português ou klingon) assim como compiladores de linguagens de programação de nível mais alto são escritas em linguagens de nível mais baixo.

Se você for um materialista eliminativista como Paul e Patricia Churchland, você acha que a sentença "eu acredito em duendes" não está em lugar nenhum. Isso porque você acha que a psicologia popular - o nosso entendimento intuitivo de estados mentais como "desejos" ou "crenças" e as generalizações que fazemos utilizando isso e aplicando no nosso comportamento e no dos outros é simplesmente uma teoria pré-científica obsoleta, na mesma categoria que epiciclos ptolomaicos para explicar as órbitas dos planetas e partículas de "calórico" para explicar termodinâmica. Com o avanço das neurociências, nós iremos descrever os estados mentais humanos de forma completamente diferente e a psicologia popular será eliminada por completo, assim como a física popular pré-galileana-newtoniana e suas predições absurdas sobre a dinâmica dos corpos.

Se você for um instrumentalista, você está em uma espécie de meio-termo dessas posições. Você acha que os estados mentais da psicologia popular são uma "ficção útil" assim como centros de gravidade e o trópico de capricórnio. Essas coisas existem ou não existem? O centro de gravidade de uma bola de futebol não é nenhum ponto feito com uma substância especial e o trópico de capricórnio não é uma linha vermelha (ou azul) literalmente cruzando o planeta. Entretanto, esses conceitos chamados de abstracta são referências interessantes e úteis que utilizamos para nos guiar de forma eficaz no mundo.

Vou descrever a visão instrumentalista de Daniel Dennett.

O que leva você a ser um genuíno crente em duendes? Para você ser um genuíno crente em duendes, primeiro o seu comportamento só pode ser previsto adotando-se a postura intencional.

A postura intencional é a estratégia mais abstrata que utilizamos para compreender o comportamento de outros sistemas do mundo.

A estratégia mais concreta é a postura física. Geralmente a aplicamos em sistemas simples e de dimensões "médias". Funciona da seguinte forma:

1) Determine a constituição física do sistema cujo comportamento você quer prever

2) Se o sistema for composto por mais de uma parte, analise os efeitos das interações exercidas entre as mesmas

3) Utilize seu conhecimento de leis físicas para prever o comportamento do sistema

Exemplo: jogando boliche, você mentalmente está calculando qual força e trajetória precisa fazer o braço, avaliando o atrito exercido entre a bola e o piso da pista visando derrubar todos os pinos.

Um nível acima de abstração está a postura do design. É o que geralmente utilizamos para compreender sistemas biológicos e oriundos da engenharia humana. Funciona assim:

1) Ignore os detalhes mais delicados da constituição física do sistema que você quer compreender

2) Assuma que o sistema foi projetado para executar determinada função ou funções

3) Preveja como o sistema irá se comportar baseando-se no seu design, desde que as condições para a execução da função sejam satisfeitas

Como exemplo quintessencial, é basicamente o que todo usuário comum faz quando usa um editor de texto em um computador pessoal. No fundo, no fundo você só está manipulando 0s e 1s em circuitos integrados. Mas a "ilusão de usuário" proporcionada pelo sistema operacional e a interface do editor de texto permite você ignorar esses detalhes finos e utilizar o editor de texto assumindo que ele foi projetado para desempenhar as funções que lhe interessam.

Um nível acima encontra-se a postura intencional, nossa estratégia preferencial para prever o comportamento de agentes conscientes com responsabilidades morais. Funciona da seguinte maneira:

1) Trate o sistema o qual você quer prever o comportamento como um agente racional

2) Imagine quais crenças que esse agente possui de acordo com sua posição e propósito no mundo

3) Nas mesmas considerações, imagine quais são os desejos desse agente

4) Preveja como esse agente irá se comportar visando atingir seus objetivos à luz de suas crenças

Tecnicamente, nós podemos aplicar as três estratégias em um mesmo sistema, apesar de uma tender a ser mais eficaz que as demais. Considere um despertador analógico. A estratégia óptima é adotar a postura do design, julgar que ele foi feito por relojoeiros humanos com o objetivo de auxiliar nossos cronogramas diários, permitindo por meio de operações simples ajustar em qual horário ele deve ser barulhento.

Entretanto, nada nos impede de adotar a postura física num despertador analógico, todo o seu funcionamento é um complexo clockwork cheio de engrenagens e rodas dentadas e é possível sob uma análise muito cuidadosa desses dispositivos e como eles interagem de forma síncrona entre si avaliar como que um relógio funciona. Só é muito trabalhoso.

Também, curiosamente, nada nos impede de adotar a postura intencional em um despertador analógico. Podemos imaginar que ele é um servo fiel nosso que segue nossas instruções de quando deve fazer barulho para nos acordar, e que sua recompensa é poder estar sempre nos contemplando enquanto dorme, observando-nos da cômoda ao lado de nossa cama.

Voltando ao que faz de alguém um "crente genuíno em duendes". Pessoas em condições normais resistem em ser descritas adotando-se a postura física e postura do design. Depois posso dar alguns exemplos de como podemos fazer isso.

Se no futuro construíssemos uma máquina jogadora de xadrez cujo funcionamento não pudessede mais ser compreendido adotando-se a postura do design (ela está obedecendo a um conjunto de rotinas que fazem parte de seu software) e só pudéssemos adotar *unicamente* a postura intencional (ela não quer perder sua rainha, prefere sacrificar a torre e nos surpreender atacando a minha rainha em seguida) então, segundo Dennett, essa máquina genuinamente exibirá estados mentais intencionais.

Isso já ocorre com um humano que alega acreditar em duendes. Considerar que você possui a crença em duendes é simplesmente passar pela postura intencional de forma introspectativa:

"Eu sou um agente racional, (!) eu avalio informação do meu ambiente e tomo boas decisões. Eu sou um jardineiro e minha tarefa é limpar os quintais de pessoas da vizinhança. Eu acredito em duendes porque várias vezes perdi ferramentas quando estava tentando podar a árvore onde eles moram, e ficaram ofendidos com isso. Quando fui fazer outras tarefas, minha tesoura de jardinagem apareceu de novo na minha caixa de ferramentas - foram os duendes que a devolveram. Eu acredito em duendes, pois sei que assim, respeitando suas árvores mágicas, não irei mais perder minhas ferramentas e conseguirei fazer o resto das tarefas nos jardins onde trabalho".

Para Dennett, ser um genuíno "crente" em algo é simplesmente passar por esse processo, nada mais, nada menos. "Crenças" e os outros estados mentais da psicologia popular são somente artifícios úteis que nos permitem prever o comportamento de determinados sistemas no nosso mundo. Nenhuma alquimia especial no cérebro, que é uma máquina sintática, o transformará em uma máquina semântica, como acredita John Searle. Intencionalidade não é uma propriedade especial do conteúdo mental consciente, é simplesmente a consequência de se passar pela postura intencional da forma como descrevi.