Como as palavras de um profeta pouco conhecido em seu tempo deram origem à maior religião do mundo
Ivan Padilla
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VITÓRIA FINAL Ressurreição, de Pietro Vannucci, 1448-1522
A princípio, Jesus parecia apenas ser mais um profeta entre dezenas de pregadores que disputavam a atenção do povo judeu na cidade de Jerusalém. Afinal, a antiga Judéia era um ambiente bastante conturbado naquele primeiro século da Era Cristã. Todos os profetas da época apresentavam um discurso semelhante. Jesus não foi reconhecido como o verdadeiro Messias e teve poucos seguidores em vida. Mas, nas décadas seguintes, suas palavras conquistaram o mundo numa velocidade impressionante, considerando-se a precariedade dos meios de transporte e de comunicação daqueles tempos. Nos primeiros anos após sua crucificação, não havia mais que mil fiéis. Apenas um século depois, mesmo perseguidos, já estavam espalhados por todo o Império Romano, da Síria às ilhas britânicas. No ano 350 d.C., eram cerca de 34 milhões, mais da metade da população dos territórios romanos, segundo estimativas do sociólogo Rodney Stark, autor de O Crescimento do Cristianismo. Hoje, sua fé é professada por 2 bilhões de pessoas, um terço da população mundial. O que fez de Jesus um profeta diferente dos demais? Como ele se tornou Cristo - o ungido, em grego?
Pelo menos 20 messias pregaram no século I d.C.
Cada vez mais teólogos, historiadores e arqueólogos investigam esse enigma. As pistas começam na Jerusalém da época. A população, estimada em 80 mil habitantes, dividia-se entre uma pequena elite sacerdotal judaica e uma imensa massa de pobres. A região era controlada pelos romanos, que permitiam a liberdade de culto ao deus Jeová, mas exigiam o pagamento de pesados impostos. A falta de perspectivas favorecia o surgimento de movimentos apocalípticos, que anunciavam o iminente fim do mundo e a promessa de um reino nos céus - não em um futuro próximo, mas em questão de dias. Relatos históricos registram, nesse período, discursos de pelo menos duas dezenas de profetas.
O principal local de pregação era o templo de Jerusalém. De acordo com a tradição judaica, o prédio havia sido construído por Salomão. Derrubado pelos babilônios, foi reconstruído como uma pequena casa de culto no período persa e ampliado no período do rei Herodes, no ano 19 a.C. Nas datas festivas, recebia até 250 mil fiéis, que ofereciam vacas, carneiros e pombos para sacrifício. No altar, o balido dos animais aterrorizados se misturava ao cheiro de sangue e à fumaça das piras. Dois tipos de profeta atuavam então, de acordo com Richard Horsley, professor de Ciências da Religião da Universidade de Massachusetts e autor de Bandidos, Profetas e Messias - Movimentos Populares no Tempo de Jesus. Os oraculares anunciavam o julgamento divino. Os de ação inspiravam revoltas armadas contra o Império Romano.
As atividades desses profetas foram relatadas pelo historiador Flávio Josefo, que viveu entre 37 d.C. e 100 d.C. Um deles foi Teúdas, que persuadiu muitas pessoas a pegar seus pertences e acompanhá-lo até o Rio Jordão, onde as águas se separariam para dar passagem ao grupo. O governador da Judéia mandou então que o capturassem e decapitassem. Um samaritano, cujo nome foi perdido na História, prometeu mostrar ao povo os vasos sagrados de Moisés no alto do Monte Garizim. Muitas pessoas se apresentaram no local. Também acabaram perseguidas e executadas. O pregador mais conhecido naquele tempo foi João Batista. Vestido com peles de camelo, ele realizava cerimônias de batismo para remissão dos pecados no Rio Jordão. Foi preso e degolado.
Nos relatos, Jesus assume qualidades mitológicas
"A promessa de salvação eterna era comum a todos, mas eles estavam voltados para o judaísmo", explica Louis Painchaud, professor de Ciências da Religião da Université Laval, em Quebec, no Canadá. "Jesus não rompeu com as antigas tradições, mas também não se apegava aos rituais e aos ensinamentos da Torá." As lições de Jesus passaram a ser difundidas em um momento em que o próprio judaísmo entrou em crise. No ano 66 d.C., a insatisfação crescente dos habitantes da Judéia gerou uma revolta generalizada. A resposta dos romanos foi brutal. O templo e parte de Jerusalém foram destruídos e milhares de judeus acabaram mortos. O desamparo do povo aumentou ainda mais a ânsia por uma resposta espiritual, mas ao mesmo tempo desvinculada do culto anterior a Jeová. Nesse momento, o cristianismo surgiu. Ao se afastar dos ritos judaicos, ele se tornou uma religião nova, de fácil conversão. Desde o início, atraiu pessoas de todas as etnias e credos. "A principal marca desse início de expansão é o pluralismo, o diálogo", diz Paulo Roberto Garcia, coordenador do curso de Teologia da Universidade Metodista, em São Paulo. "Os encontros aconteciam nas casas, em pequenos grupos, abertos a discussões, e não em grandes templos. Enquanto no judaísmo a comida é um elemento de divisão, no cristianismo é o que une puros e pecadores. Isso abriu um canal de comunicação com as outras crenças." Em 48 d.C., um concílio em Jerusalém oficializou o direito dos gentios tornar-se cristãos sem precisar tornar-se judeus.
Os apóstolos tiveram um papel decisivo nessa primeira fase de difusão da mensagem de Jesus. "Enquanto os profetas falavam aramaico, usado na Judéia e na Galiléia, os cristãos pregavam em grego, o idioma mais difundido em todo o Império Romano, mais do que o latim", afirma Pedro Lima Vasconcellos, professor de Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Toda a literatura do Novo Testamento, formado pelos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, está escrita na língua helênica, assim como versões da Torá. Sem barreiras culturais, religiosas e lingüísticas, os discípulos logo se espalharam pelo mundo.
Um terço da população do mundo é cristã
Paulo foi o missionário mais ativo - para alguns autores, é o verdadeiro pai do cristianismo. Ele foi um fariseu chamado Saulo, convertido quando estava a caminho de Damasco para prender seguidores desse novo credo. Entre 46 d.C. e 67 d.C., empreendeu quatro viagens pelo Oriente Médio e pela Europa. O ponto de partida foi Antioquia, a terceira maior cidade do Império Romano, depois de Roma e da egípcia Alexandria. Local de encontro entre os mundos semita e grego, foi lá que surgiu o termo "cristão". Em 61 d.C., Paulo chegou a Roma, onde foi preso e decapitado. Suas epístolas são os mais antigos escritos cristãos. Os Evangelhos surgiram uma década depois.
Os historiadores calculam que os Evangelhos foram escritos pelo menos três décadas após a crucificação. Um dos evangelistas, Lucas, nem sequer conheceu Jesus. São relatos que misturam fatos históricos com façanhas heróicas, um gênero literário bastante usado na Antiguidade. O historiador Alan Dundes, da Universidade de Berkeley, elaborou uma lista com 22 pontos em comum dessas narrativas mitológicas, como o nascimento a partir de uma virgem, no livro In Quest of the Hero. Nas narrativas sobre Jesus, ele encontrou 17 dessas características. Acredita-se que muitos dados biográficos foram adaptados pelos evangelistas como forma de criar uma atmosfera épica. O local de seu nascimento deve ter sido Nazaré. Quem nasceu em Belém, de acordo com o Antigo Testamento, foi o rei Davi. A presença de 12 apóstolos também pode ser uma referência ao número de tribos da antiga Israel. Algumas informações vêm de outras culturas. A data de 25 de dezembro foi adotada a partir do século IV - nesse dia, era comemorada em Roma uma festa pagã em homenagem ao Sol.
Dessa maneira, diferentes qualidades de Jesus foram ressaltadas em cada Evangelho: piedoso, combativo ou místico. As diversas versões conseguiam responder assim a anseios distintos. "Querer saber o que realmente aconteceu é equivocado", teoriza Paulo Garcia. "Jamais saberemos o que Jesus disse. Os dados que temos foram filtrados, alterados ou inventados. A pergunta certa é: por que essas histórias são contadas? A resposta está na religiosidade das comunidades, que acrescentam a esse personagem toda sua crença."
Todo o Novo Testamento foi escrito em grego
A ressurreição é um desses grandes atos de fé e, segundo especialistas, uma das principais chaves para decifrar a construção do mito em torno de Cristo. O elemento da vitória sobre a morte não foi atribuído a nenhum outro profeta. As escrituras sagradas descrevem o retorno de Jesus três dias após sua crucificação. De novo, as aparições variam segundo o autor: às vezes é feito de carne e osso, às vezes tem mão furada, às vezes é imediatamente reconhecido, às vezes nem mesmo seus seguidores mais próximos sabem com quem estão falando. O retorno à vida, ponto central da pregação de Paulo, não foi enfatizado em um primeiro momento. Os Evangelhos relatam que os discípulos ficaram em dúvida quando receberam a notícia, e mesmo quando o viram diante de si.
A primeira pessoa a ver o sepulcro vazio e, em alguns casos, o próprio Jesus ressuscitado foi Maria Madalena. A valorização do papel feminino nos Evangelhos pode ter ajudado na propagação do cristianismo entre as mulheres. "A ressurreição dividiu a nova fé em facções", diz o arqueólogo André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A vida após a morte foi um referendo de poder para o grupo de Antioquia, do qual Paulo fez parte. Nos chamados documentos Quelle, um conjunto de discursos de Jesus usados como base para as narrativas de Mateus e Lucas, o que interessa são as idéias. Jesus é um reformador de carne e osso. Pouco importa como nasceu e viveu. Para o grupo de Tomé, autor de um dos evangelhos apócrifos (não-reconhecidos), Jesus é apenas um símbolo. Tomé não entra no mérito de Jesus ter vivido ou morrido conforme as Escrituras. Refere-se a ele simplesmente como "aquele que vive". Todos esses elementos - a ressurreição, o afastamento do judaísmo, a diversidade de relatos, a falta de barreiras culturais - contribuíram para a rápida propagação dessa nova religião nos primeiros séculos e, posteriormente, para sua consolidação. Para o cristianismo, a fé foi mais poderosa que a história comprovada do filho de José e Maria. E Cristo se tornou maior que Jesus.
Pelo menos 20 profetas apocalípticos disputavam a atenção das massas no primeiro século da era Cristã. Mas Jesus se destacou por alguns motivos
Abertura - A maioria dos profetas pregava dentro dos fundamentos judaicos. Já as promessas de Jesus eram destinadas a todos os povos
Flexibilidade - Preceitos judaicos, como a circuncisão e o ensino da Torá, não eram exigidos, o que fez do cristianismo uma religião de fácil conversão
Comunicação - Seus seguidores, como Paulo, pregavam em grego, a língua mais corrente naquele tempo, e não em hebraico ou aramaico, falados apenas pelos judeus
Equidade - As mulheres tinham papel ativo, como registram os Evangelhos. Maria Madalena foi a primeira pessoa a ver que Jesus havia ressuscitado
Caridade - Era uma época de muita miséria e repressão. Os judeus pagavam impostos pesados a Roma. Nesse ambiente de pobreza, Jesus pregava a caridade
Múltiplas faces - Os Evangelhos apresentam Jesus de diversas maneiras: combativo, misericordioso, espiritualizado. Assim, sua imagem amolda-se a diferentes anseios de vários povos
Ineditismo e misticismo - Com exceção de João Batista, somente a Jesus foi atribuída a ressurreição. Relatos de milagres e curas também ajudaram a formar uma aura mística
Como o cristianismo se tornou a religião com maior
número de adeptos no mundo
4 a 8 a.C. Jesus nasce na cidade de Belém (a data e o local são incertos)
26 d.C. Pôncio Pilatos é nomeado prefeito da Judéia. Jesus é batizado por João Batista
30 d.C. Jesus é preso, condenado e crucificado em Jerusalém. Dez anos depois, cerca de mil seguidores se espalham pela região
70 d. C. Os romanos reprimem a revolta dos judeus e destroem o Templo de Jerusalém. Início da diáspora judaica
313 d.C. O Edito de Milão legaliza o cristianismo no Império Romano
350 d. C. O número de cristãos gira em torno de 34 milhões, mais da metade da população do Império Romano
611 d. C. Maomé recebe a revelação do Alcorão pelo Ar-canjo Gabriel e funda a religião muçulmana
637 d.C. Os muçulmanos conquistam Jerusalém, mas as peregrinações dos cristãos eram permitidas
751 d.C. Vinte cidades são doadas a São Pe-dro e a seus sucessores por Pepino, o Breve, rei dos francos. Nasce o Estado Pontifício
880 d.C.
Início da canonização dos santos pelo papa Adriano II
1095 d.C. O papa Urbano II convoca a primeira das oito cruzadas, até 1270, para reconquistar a Terra Santa
1054 d.C. Ocorre o primeiro cisma da Igreja entre uma ala oriental e outra ocidental. Nasce a igreja ortodoxa
1186 d.C.
A Santa Inquisição é estabelecida no Concílio de Verona
1517 d.C.
Martinho Lutero começa a reforma protestante na Alemanha
1545 d.C. Tem início o Concílio de Trento, que condena o pluralismo de crenças
1870 d.C. Fim do Estado Pontifício. O território papal se restringe a uma pequena área no centro de Roma. O I Concílio Vaticano estabelece a infalibilidade papal
1929 d.C. O Tratado de Latrão, assinado por Mussolini, estabelece o Vaticano como um Estado Pontifício independente
1947 d.C. Encontrados os pergaminhos de Qumran, no Mar Morto, com as mais antigas versões de passagens da Bíblia
1962 a 1965 d.C. O II Concílio Vaticano estabelece reformas litúrgicas, como o fim das missas em latim
