O Efeito Werther dos nossos tempos
Enviado: 15 Jun 2007, 09:52
Opinião - Contágio
O Estado de S. Paulo - 09/04/2007
Eliana Cardoso
Entre economistas, contágio é palavra que evoca a propagação da euforia e da ruína nos mercados financeiros através do globo. Mas aqui trato de outra forma de contágio.
Diz Thomas Mann que, durante a campanha no Egito, Napoleão carregou em sua mochila a tradução francesa do primeiro best seller europeu - Os Sofrimentos do Jovem Werther (Goethe, 1774). Napoleão proclamava aos quatro ventos que o lera sete vezes.
A casaca - que Werther estreara com um colete amarelo no baile onde dançara com Lotte pela primeira vez - ficara rota. Ele encomendou uma cópia ao alfaiate. Vestiu-se com ela e deu um tiro na cabeça acima do olho direito. Criou uma moda singular. Por toda a Europa, rapazes se trajavam como Werther e se matavam.
Itália, Alemanha e Dinamarca proibiram a circulação do livro. E Napoleão talvez estivesse preocupado com a possibilidade de uma onda de suicídios entre seus soldados.
Dois séculos mais tarde, David Phillips, um professor de sociologia da Universidade da Califórnia, em San Diego, cunhou a expressão “efeito Werther” para descrever o contágio provocado pela divulgação de suicídios. Mostrou que o número deles aumentava bastante nos meses em que The New York Times relatava na primeira página a história de uma pessoa que se matara.
Com base nas reportagens do jornal e nas taxas oficiais de suicídios, Phillips identificou períodos de controle - aqueles nos quais notícias de autodestruição estavam ausentes dos jornais. Usou os números observados nesses períodos para gerar taxas esperadas de suicídios mês a mês. Em seguida, comparou-as com as observadas. Descontou a influência de outros fatores e mostrou que havia uma correlação forte entre aumentos de suicídios e reportagens no jornal.
Phillips observou ainda que, em seguida à divulgação de um suicídio, havia também um salto no número de acidentes de automóveis (um aumento de 31% em média no terceiro dia após a publicação). E mais: as pessoas envolvidas nesses acidentes costumavam ter a mesma idade do suicida retratado no jornal.
Os testes de Phillips confirmavam um fenômeno conhecido: o de epidemias de suicídios nos hospitais psiquiátricos e na história da humanidade. Seis séculos antes de Cristo, Roma pôs fim a uma série de fatalidades entre soldados ao proclamar que quem se matasse teria o corpo exibido em público pregado a uma cruz. Alguns séculos depois, para interromper uma onda de suicídios entre mulheres, as autoridades decretaram que o corpo da mulher que se enforcasse seria arrastado nu pelas ruas preso à corda usada para cometer o ato. Bem mais tarde, uma lei semelhante foi promulgada em Marselha.
Histórias de contágio no mundo moderno são muitas. Em maio de 1962, 197 suicídios moldaram-se na descrição que os jornais fizeram da morte de Marilyn Monroe (um aumento de 12% em relação ao número usual nos EUA em maio).
Depois do ataque terrorista ao World Trade Center (11/9/2001), um jovem de 15 anos se suicidou pilotando um Cessna contra o edifício do Bank of América (6/1/2002). No mesmo fim de semana, ocorreram 17 colisões de pequenos aviões (7 eram Cessna e 7 resultaram em mortes). Um número pouco comum de acidentes aéreos num único fim de semana.
A imitação é apenas o fator que precipita a autodestruição? Com seus dados em mãos, Phillips argumenta que a publicidade gera suicídios que não ocorreriam em sua ausência. Talvez um suicida em potencial seja propenso a imitações e algumas representações sirvam como modelo para solução de problemas, em particular se deixam transparecer um fim de vida indolor. Outras lhe dão uma feição romântica, sobretudo para o leitor que se identifica com o anti-herói.
Animais se suicidam? Em 10/11/2006, 77 baleias-piloto encalharam na Praia de Ruakaka (Nova Zelândia). Apesar da rápida ação de cientistas e equipes de resgate, 37 morreram. Quarenta foram devolvidas ao mar, enquanto barcos as impediam de voltar à praia. Uma baleia procura a morte de propósito? E por que o faz em grupo?
Entre os humanos, as taxas de suicídio são mais altas entre os que perderam parentes e amigos dessa forma. Um grupo indígena (sorowaha, do ramo lingüístico aruaque), que ocupa uma área demarcada próxima ao município de Tapauá (AM), contava em média com 124 habitantes entre 1980 e 1995, período em que ocorreram 38 suicídios entre eles. Indigenistas verificaram que o costume de se envenenar pela ingestão do sumo da raiz de um tipo de timbó existia há seis gerações. A Revista de Psiquiatria Clínica (SP, 2003) documenta o fato, mas não apresenta uma interpretação convincente.
Em 1995, 55 índios guaranis mataram-se em Dourados (MS). Naquele ano e naquela população de 25,5 mil índios, essa taxa extraordinária de mortes por suicídio (0,216 % da população) equivalia a quase 50 vezes a taxa média do Brasil em 2004 - 0,0045% (ou 4,5 suicídios por 100 mil habitantes, segundo o Ministério da Saúde). A Organização Mundial de Saúde divulga taxas que variam entre mais de 0,025% da população nos países do Leste Europeu e Japão, 0,01% nos EUA e menos de 0,01% na Espanha e Itália.
Durkheim (Le Suicide, 1897) verificou que na Europa, na segunda metade do século 19, o suicídio era mais freqüente na cidade do que no campo; entre os homens do que entre as mulheres; entre os ricos do que entre os pobres; entre os solteiros e divorciados do que entre gente casada. Essas generalizações continuam verdadeiras.
Mas hoje, como no tempo de Durkheim, não existe uma teoria do suicídio que permita prevê-lo. Os médicos sabem quais são os grupos mais vulneráveis. Conhecem seus instrumentos e ocasiões mais comuns. Não sabem, entretanto, por que as pessoas se matam.
Os economistas também têm teorias para explicar o suicídio. Discuto as explicações de meus colegas no artigo do mês que vem.
Eliana Cardoso, doutora em Economia pelo MIT, é professora titular da FGV-SP
O Estado de S. Paulo - 09/04/2007
Eliana Cardoso
Entre economistas, contágio é palavra que evoca a propagação da euforia e da ruína nos mercados financeiros através do globo. Mas aqui trato de outra forma de contágio.
Diz Thomas Mann que, durante a campanha no Egito, Napoleão carregou em sua mochila a tradução francesa do primeiro best seller europeu - Os Sofrimentos do Jovem Werther (Goethe, 1774). Napoleão proclamava aos quatro ventos que o lera sete vezes.
A casaca - que Werther estreara com um colete amarelo no baile onde dançara com Lotte pela primeira vez - ficara rota. Ele encomendou uma cópia ao alfaiate. Vestiu-se com ela e deu um tiro na cabeça acima do olho direito. Criou uma moda singular. Por toda a Europa, rapazes se trajavam como Werther e se matavam.
Itália, Alemanha e Dinamarca proibiram a circulação do livro. E Napoleão talvez estivesse preocupado com a possibilidade de uma onda de suicídios entre seus soldados.
Dois séculos mais tarde, David Phillips, um professor de sociologia da Universidade da Califórnia, em San Diego, cunhou a expressão “efeito Werther” para descrever o contágio provocado pela divulgação de suicídios. Mostrou que o número deles aumentava bastante nos meses em que The New York Times relatava na primeira página a história de uma pessoa que se matara.
Com base nas reportagens do jornal e nas taxas oficiais de suicídios, Phillips identificou períodos de controle - aqueles nos quais notícias de autodestruição estavam ausentes dos jornais. Usou os números observados nesses períodos para gerar taxas esperadas de suicídios mês a mês. Em seguida, comparou-as com as observadas. Descontou a influência de outros fatores e mostrou que havia uma correlação forte entre aumentos de suicídios e reportagens no jornal.
Phillips observou ainda que, em seguida à divulgação de um suicídio, havia também um salto no número de acidentes de automóveis (um aumento de 31% em média no terceiro dia após a publicação). E mais: as pessoas envolvidas nesses acidentes costumavam ter a mesma idade do suicida retratado no jornal.
Os testes de Phillips confirmavam um fenômeno conhecido: o de epidemias de suicídios nos hospitais psiquiátricos e na história da humanidade. Seis séculos antes de Cristo, Roma pôs fim a uma série de fatalidades entre soldados ao proclamar que quem se matasse teria o corpo exibido em público pregado a uma cruz. Alguns séculos depois, para interromper uma onda de suicídios entre mulheres, as autoridades decretaram que o corpo da mulher que se enforcasse seria arrastado nu pelas ruas preso à corda usada para cometer o ato. Bem mais tarde, uma lei semelhante foi promulgada em Marselha.
Histórias de contágio no mundo moderno são muitas. Em maio de 1962, 197 suicídios moldaram-se na descrição que os jornais fizeram da morte de Marilyn Monroe (um aumento de 12% em relação ao número usual nos EUA em maio).
Depois do ataque terrorista ao World Trade Center (11/9/2001), um jovem de 15 anos se suicidou pilotando um Cessna contra o edifício do Bank of América (6/1/2002). No mesmo fim de semana, ocorreram 17 colisões de pequenos aviões (7 eram Cessna e 7 resultaram em mortes). Um número pouco comum de acidentes aéreos num único fim de semana.
A imitação é apenas o fator que precipita a autodestruição? Com seus dados em mãos, Phillips argumenta que a publicidade gera suicídios que não ocorreriam em sua ausência. Talvez um suicida em potencial seja propenso a imitações e algumas representações sirvam como modelo para solução de problemas, em particular se deixam transparecer um fim de vida indolor. Outras lhe dão uma feição romântica, sobretudo para o leitor que se identifica com o anti-herói.
Animais se suicidam? Em 10/11/2006, 77 baleias-piloto encalharam na Praia de Ruakaka (Nova Zelândia). Apesar da rápida ação de cientistas e equipes de resgate, 37 morreram. Quarenta foram devolvidas ao mar, enquanto barcos as impediam de voltar à praia. Uma baleia procura a morte de propósito? E por que o faz em grupo?
Entre os humanos, as taxas de suicídio são mais altas entre os que perderam parentes e amigos dessa forma. Um grupo indígena (sorowaha, do ramo lingüístico aruaque), que ocupa uma área demarcada próxima ao município de Tapauá (AM), contava em média com 124 habitantes entre 1980 e 1995, período em que ocorreram 38 suicídios entre eles. Indigenistas verificaram que o costume de se envenenar pela ingestão do sumo da raiz de um tipo de timbó existia há seis gerações. A Revista de Psiquiatria Clínica (SP, 2003) documenta o fato, mas não apresenta uma interpretação convincente.
Em 1995, 55 índios guaranis mataram-se em Dourados (MS). Naquele ano e naquela população de 25,5 mil índios, essa taxa extraordinária de mortes por suicídio (0,216 % da população) equivalia a quase 50 vezes a taxa média do Brasil em 2004 - 0,0045% (ou 4,5 suicídios por 100 mil habitantes, segundo o Ministério da Saúde). A Organização Mundial de Saúde divulga taxas que variam entre mais de 0,025% da população nos países do Leste Europeu e Japão, 0,01% nos EUA e menos de 0,01% na Espanha e Itália.
Durkheim (Le Suicide, 1897) verificou que na Europa, na segunda metade do século 19, o suicídio era mais freqüente na cidade do que no campo; entre os homens do que entre as mulheres; entre os ricos do que entre os pobres; entre os solteiros e divorciados do que entre gente casada. Essas generalizações continuam verdadeiras.
Mas hoje, como no tempo de Durkheim, não existe uma teoria do suicídio que permita prevê-lo. Os médicos sabem quais são os grupos mais vulneráveis. Conhecem seus instrumentos e ocasiões mais comuns. Não sabem, entretanto, por que as pessoas se matam.
Os economistas também têm teorias para explicar o suicídio. Discuto as explicações de meus colegas no artigo do mês que vem.
Eliana Cardoso, doutora em Economia pelo MIT, é professora titular da FGV-SP