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Não há ideais, não há esperança

Enviado: 23 Jun 2007, 13:50
por Fernando Silva
"O Globo" 23/06/07

Naipaul na corda bamba
José Castello

A literatura, dizia Ítalo Calvino, é o lugar em que a linguagem se torna “aquilo que deve ser”. Ele se inspira em Maat, a deusa egípcia da balança, a quem cabia o julgamento dos mortos. No Egito Antigo, seu nome estava associado à precisão, simbolizada por uma pluma que serve de peso em um dos pratos de uma balança.

Por isso, pensava Calvino, a literatura é o melhor instrumento para a captura do vago e do impreciso. Nela, sem a distorção das ilusões, as coisas se tornam “aquilo que devem ser”. Ainda que isso, “o que deve ser”, se assemelhe à pluma da deusa egípcia, uma pena de ferro marcada pelo paradoxo da leveza e do peso.

A imagem da pena de ferro aponta as dificuldades do projeto literário. A precisão é só um raspão, não passa de uma verdade ligeira, que logo nos escapa. Ainda assim, ou por isso, a imagem proposta por Calvino me ajuda a ler “Sementes mágicas”, o romance de V. S. Naipaul, lançado pela Companhia das Letras. Um relato no qual a cura pela verdade se transforma na própria doença.

V. S. Naipaul nos faz ver que a precisão (“ser o que se é”) é um quase nada.

Ela não passa de um levíssimo roçar na verdade, que, no instante seguinte, já não está mais ali. Muitos crêem que os homens precisam de ilusões para viver.

Naipaul sugere o contrário: ilusões funcionam, na verdade, como freios, que só amortecem, e ainda por cima roubam, a riqueza das coisas.

Podem trazer conforto (o adjetivo “confortável” é muito apreciado pelos ingleses, mas não por Naipaul); contudo, costumam desaguar na estagnação.

A idéia da ilusão, não como fonte de potência, mas como uma cilada mortal, percorre as 261 páginas de “Sementes mágicas”. Ela sopra com violência sobre a vida do protagonista Willie.

Sempre que pensamos em semear uma coisa, semeamos outra. É o que fica da aventura de Willie, um homem que precisa perder-se de si para só então aproximarse de si. O personagem de Naipaul me traz à mente a advertência com que Clarice Lispector abre seu “A paixão segundo G. H.”: “A aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente — atravessando inclusive o oposto daquilo de que se vai aproximar”.

Muitos se iludem com a idéia de maturidade, quando estaríamos enfim imunizados contra a selvageria do mundo — que, em G.H., Clarice encarna em uma barata viva, esmagada contra a porta de um armário, cuja borra nojenta sua personagem deve comer. Mas isso, avançar através da ascese e do esforço até o umbral da verdade, Willie descobre, não existe. Só leva ao grande risco do desastre.

O que é o desastre? Nos tempos do cinema catástrofe e dos esportes radicais, encaramos o desastre como uma forma de gozo ou, pelo menos, de hiper-excitação. No entanto, prefiro a resposta que Maurice Blanchot oferece em seu “A escrita do desastre”: “O desastre é o momento no qual não é mais possível, através do desejo, da astúcia ou da violência, colocar a vida em jogo”. Em vez de gozo, o desastre é paralisia. “Sementes mágicas” é a história do desastre em que Willie confina sua vida.

É de ilusões extremas que Willie sofre.

Nascido na Índia, ele se muda para Londres, na esperança de crescer. Publica um livro de “contos falsos”, em que imita Hemingway, e depois renega a literatura. “Que escuridão, que auto-ilusão, que desperdício”, pensa. A guinada o leva a se casar com Ana, uma africana, com quem vive por 18 anos. Até que, cada vez mais distante de si, decide deixar a África. Vai para Berlim e se ampara na irmã Sarojini, que o convence a buscar um sentido para a vida voltando à Ásia e se engajando na guerrilha rural.

Chega à Índia certo de que, enfim, livrou-se do engano. Encontra, porém, um país vazio e incompreensível. A guerrilha o leva para a escuridão da floresta. Lá descobre que os guerrilheiros, sozinhos e encurralados, sofrem do mesmo tédio que, em Londres, adoece os executivos.

Rende-se, é preso, e volta a conviver, na cadeia, com os guerrilheiros de quem fugira.

Há um impulso de repetição que o persegue, esteja onde estiver.

Graças ao livro que publicou na juventude, que lhe dá bons antecedentes, Willie reconquista a liberdade. Contudo, continua a desacreditar na literatura.

Em Londres, ele recorda uma história que ouviu do guerrilheiro Ramachandra, seu comandante na selva. Ainda era um rapaz, quando um professor lhe perguntou se já lera “Os três mosqueteiros”.

Admitiu que não. “Pois jogou fora metade de sua vida”, o mestre avaliou. O futuro comandante tratou de comprar o romance de Dumas. Leu-o, mas o odiou.

Conclui, desiludido, que também seu professor não o tinha lido — e que se limitou a repetir uma admoestação que ouvira, ele próprio, em sua juventude.

“Fiquei com a impressão de que era uma coisa repetida de geração a geração, de professor a professor, e que ninguém lhes dissera para parar”.

Willie busca uma vida intensa, mas tudo o que encontra em Londres é o tédio do automatismo. Os londrinos de gravata lhe parecem tão asfixiados quanto os guerrilheiros em sua selva. Na cadeia, um prisioneiro lhe disse que estar preso é o mesmo que subir em um ônibus lotado. No início, parece impossível suportar. Mas logo que o ônibus volta a andar, e o movimento acomoda os corpos, você se acostuma.

No fim, ele se apega a uma antiga visão da infância: a da Terra como uma bola solitária que gira sem destino na escuridão, a transportar homens sem esperança.

Não é bom se esquivar dessa dura visão — pois é dela, só dela, Naipaul leva Willie a ver, que é possível construir seja o que for.

São dolorosas as palavras com que Willie arremata sua história: “É um erro ter uma visão ideal do mundo. É aí que começa o suplício. É aí que tudo começa a desandar”.

Ele constata que estamos, sempre, na corda bamba e que ela é nosso único caminho. É desse fio de luz que pode surgir alguma felicidade.

Na última linha de “Sementes mágicas”, Willie, disposto a proteger a irmã da desilusão, conclui: “Mas não posso escrever a Sarojini sobre isso”. Ao contrário, é para tratar dessa dor insuportável que V. S. Naipaul escreve seu romance.

É sempre de um brevíssimo raspão na verdade que a literatura se faz.