O Senhor Doutor
Enviado: 28 Jun 2007, 13:02
Para quem lembra, uma vez escrevi aqui sobre um probleminha que tive com a forma de tratamento que um advogado (acho eu) me cobrou:
http://rv.cnt.br/viewtopic.php?t=8683&highlight=advogado+doutor
Pois então... vejam só uma decisão judicial que esclarece bem o problema, que recebi por e-mail em meu curso (não consegui mexer na formatação):
Favor repassar para as listas de docentes e alunos.
Um abraço,
Arden
---------------------------- Original Message ----------------------------
Subject: [inpe-saci] Fw: ENC: A Justiça decidiu: "você" não é tratamento
ultrajante.Neste país ainda existem juristas honrados e cultos!
From: "Carolina Bianchi" <carolina_bianchi@uol.com.br>
Date: Tue, June 26, 2007 9:14 am
To: inpe-saci@yahoogrupos.com.br
gots2004@yahoogrupos.com.br
--------------------------------------------------------------------------
Lembram-se daquele Juiz de Niterói que entrou na Justiça contra o condomínio
em que mora, por causa do tratamento de "você" dado pelo porteiro?
Pois é, saiu a sentença.
Observe a bela redação, suscinta, bem argumentado, até se solidariza com o
juiz que se queixa, mas... bom, leia a sentença abaixo:
PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
COMARCA DE NITERÓI - NONA VARA CÍVEL
Processo n° 2005.002.003424-4
S E N T E N Ç A
Cuidam-se os autos de ação de obrigação de fazer manejada por ANTONIO
MARREIROS DA SILVA MELO NETO contra o CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO LUÍZA VILLAGE e
JEANETTE GRANATO, alegando o autor fatos precedentes ocorridos no interior
do prédio que o levaram a pedir que fosse tratado formalmente de "senhor".
Disse o requerente que sofreu danos, e que esperava a procedência do pedido
inicial para dar a ele autor e suas visitas o tratamento de "Doutor",
senhor" "Doutora", "senhora", sob pena de multa diária a ser fixada
judicialmente, bem como requereu a condenação dos réus em dano moral não
inferior a 100 salários mínimos.
(...)
DECIDO. "O problema do fundamento de um direito apresenta-se
diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se
tem ou de um direito que se gostaria de ter." (Noberto Bobbio, in "A Era dos
Direitos", Editora Campus, pg. 15).
Trata-se o autor de Juiz digno, merecendo todo o respeito deste
sentenciante e de todas as demais pessoas da sociedade, não se justificando
tamanha publicidade que tomou este processo. Agiu o requerente como
jurisdicionado, na crença de seu direito. Plausível sua conduta, na medida
em que atribuiu ao Estado a solução do conflito. Não deseja o ilustre Juiz
tola bajulice, nem esta ação pode ter conotação de incompreensível
futilidade. O cerne do inconformismo é de cunho eminentemente subjetivo, e
ninguém, a não ser o próprio autor, sente tal dor, e este sentenciante bem
compreende o que tanto incomoda o probo Requerente.
Está claro que não quer, nem nunca quis o autor, impor medo de autoridade,
ou que lhe dediquem cumprimento laudatório, posto que é homem de notada
grandeza e virtude. Entretanto, entendo que não lhe assiste razão jurídica
na pretensão deduzida.
"Doutor" não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas
quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um
doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau, e mesmo
assim no meio universitário. Constitui-se mera tradição referir-se a outras
pessoas de "doutor", sem o ser, e fora do meio acadêmico. Daí a expressão
doutor honoris causa - para a honra -, que se trata de título conferido
por uma universidade à guisa de homenagem a determinada pessoa, sem
submetê-la a exame. Por outro lado, vale lembrar que "professor" e "mestre"
são títulos exclusivos dos que se dedicam ao magistério, após concluído o
curso de mestrado.
Embora a expressão "senhor" confira a desejada formalidade às comunicações -
não é pronome -, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a
qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha
obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir.
O empregado que se refere ao autor por "você", pode estar sendo cortês,
posto que "você" não é pronome depreciativo. Isso é formalidade, decorrente
do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência de insubordinação.
Fala-se segundo sua classe social.
O brasileiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em especial a
classe "semi-culta", que sequer se importa com isso.
Na verdade "você" é variante - contração da alocução - do tratamento
respeitoso "Vossa Mercê".
A professora de linguística Eliana Pitombo Teixeira ensina que os textos
literários que apresentam altas freqüências do pronome "você", devem ser
classificados como formais. Em qualquer lugar desse país, é usual as
pessoas serem chamadas de "seu" ou "dona", e isso é tratamento formal.
Em recente pesquisa universitária, constatou-se que o simples uso do nome da
pessoa substitui o senhor/ a senhora e você quando usados como prenome, isso
porque soa como pejorativo tratamento diferente.
Na edição promovida por Jorge Amado "Crônica de Viver Baiano Seiscentista",
nos poemas de Gregório de Matos, destacou o escritor que Miércio Táti
anotara que "você" é tratamento cerimonioso.
(Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 1999).
Urge ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da
diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadêmico, como já se disse. A
própria Presidência da República fez publicar Manual de Redação instituindo
o protocolo interno entre os demais Poderes.
Mas na relação social não há ritual litúrgico a ser obedecido. Por isso que
se diz que a alternância de "você" e "senhor" traduz-se numa questão
sociolingüística, de difícil equação num país como o Brasil de várias
influências regionais.
Ao Judiciário não compete decidir sobre a relação de educação, etiqueta,
cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o empregado do
condomínio e o condômino, posto que isso é tema interna corpore daquela
própria comunidade.
Isto posto, por estar convicto de que inexiste direito a ser agasalhado,
mesmo que lamentando o incômodo pessoal experimentado pelo ilustre autor,
julgo improcedente o pedido inicial, condenando o postulante no pagamento de
custas e honorários de 10% sobre o valor da causa. P.R.I.
Niterói, 2 de maio de 2005.
ALEXANDRE EDUARDO SCISINIO
Juiz de Direito
Bom saber.
http://rv.cnt.br/viewtopic.php?t=8683&highlight=advogado+doutor
Pois então... vejam só uma decisão judicial que esclarece bem o problema, que recebi por e-mail em meu curso (não consegui mexer na formatação):
Favor repassar para as listas de docentes e alunos.
Um abraço,
Arden
---------------------------- Original Message ----------------------------
Subject: [inpe-saci] Fw: ENC: A Justiça decidiu: "você" não é tratamento
ultrajante.Neste país ainda existem juristas honrados e cultos!
From: "Carolina Bianchi" <carolina_bianchi@uol.com.br>
Date: Tue, June 26, 2007 9:14 am
To: inpe-saci@yahoogrupos.com.br
gots2004@yahoogrupos.com.br
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Lembram-se daquele Juiz de Niterói que entrou na Justiça contra o condomínio
em que mora, por causa do tratamento de "você" dado pelo porteiro?
Pois é, saiu a sentença.
Observe a bela redação, suscinta, bem argumentado, até se solidariza com o
juiz que se queixa, mas... bom, leia a sentença abaixo:
PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
COMARCA DE NITERÓI - NONA VARA CÍVEL
Processo n° 2005.002.003424-4
S E N T E N Ç A
Cuidam-se os autos de ação de obrigação de fazer manejada por ANTONIO
MARREIROS DA SILVA MELO NETO contra o CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO LUÍZA VILLAGE e
JEANETTE GRANATO, alegando o autor fatos precedentes ocorridos no interior
do prédio que o levaram a pedir que fosse tratado formalmente de "senhor".
Disse o requerente que sofreu danos, e que esperava a procedência do pedido
inicial para dar a ele autor e suas visitas o tratamento de "Doutor",
senhor" "Doutora", "senhora", sob pena de multa diária a ser fixada
judicialmente, bem como requereu a condenação dos réus em dano moral não
inferior a 100 salários mínimos.
(...)
DECIDO. "O problema do fundamento de um direito apresenta-se
diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se
tem ou de um direito que se gostaria de ter." (Noberto Bobbio, in "A Era dos
Direitos", Editora Campus, pg. 15).
Trata-se o autor de Juiz digno, merecendo todo o respeito deste
sentenciante e de todas as demais pessoas da sociedade, não se justificando
tamanha publicidade que tomou este processo. Agiu o requerente como
jurisdicionado, na crença de seu direito. Plausível sua conduta, na medida
em que atribuiu ao Estado a solução do conflito. Não deseja o ilustre Juiz
tola bajulice, nem esta ação pode ter conotação de incompreensível
futilidade. O cerne do inconformismo é de cunho eminentemente subjetivo, e
ninguém, a não ser o próprio autor, sente tal dor, e este sentenciante bem
compreende o que tanto incomoda o probo Requerente.
Está claro que não quer, nem nunca quis o autor, impor medo de autoridade,
ou que lhe dediquem cumprimento laudatório, posto que é homem de notada
grandeza e virtude. Entretanto, entendo que não lhe assiste razão jurídica
na pretensão deduzida.
"Doutor" não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas
quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um
doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau, e mesmo
assim no meio universitário. Constitui-se mera tradição referir-se a outras
pessoas de "doutor", sem o ser, e fora do meio acadêmico. Daí a expressão
doutor honoris causa - para a honra -, que se trata de título conferido
por uma universidade à guisa de homenagem a determinada pessoa, sem
submetê-la a exame. Por outro lado, vale lembrar que "professor" e "mestre"
são títulos exclusivos dos que se dedicam ao magistério, após concluído o
curso de mestrado.
Embora a expressão "senhor" confira a desejada formalidade às comunicações -
não é pronome -, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a
qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha
obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir.
O empregado que se refere ao autor por "você", pode estar sendo cortês,
posto que "você" não é pronome depreciativo. Isso é formalidade, decorrente
do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência de insubordinação.
Fala-se segundo sua classe social.
O brasileiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em especial a
classe "semi-culta", que sequer se importa com isso.
Na verdade "você" é variante - contração da alocução - do tratamento
respeitoso "Vossa Mercê".
A professora de linguística Eliana Pitombo Teixeira ensina que os textos
literários que apresentam altas freqüências do pronome "você", devem ser
classificados como formais. Em qualquer lugar desse país, é usual as
pessoas serem chamadas de "seu" ou "dona", e isso é tratamento formal.
Em recente pesquisa universitária, constatou-se que o simples uso do nome da
pessoa substitui o senhor/ a senhora e você quando usados como prenome, isso
porque soa como pejorativo tratamento diferente.
Na edição promovida por Jorge Amado "Crônica de Viver Baiano Seiscentista",
nos poemas de Gregório de Matos, destacou o escritor que Miércio Táti
anotara que "você" é tratamento cerimonioso.
(Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 1999).
Urge ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da
diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadêmico, como já se disse. A
própria Presidência da República fez publicar Manual de Redação instituindo
o protocolo interno entre os demais Poderes.
Mas na relação social não há ritual litúrgico a ser obedecido. Por isso que
se diz que a alternância de "você" e "senhor" traduz-se numa questão
sociolingüística, de difícil equação num país como o Brasil de várias
influências regionais.
Ao Judiciário não compete decidir sobre a relação de educação, etiqueta,
cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o empregado do
condomínio e o condômino, posto que isso é tema interna corpore daquela
própria comunidade.
Isto posto, por estar convicto de que inexiste direito a ser agasalhado,
mesmo que lamentando o incômodo pessoal experimentado pelo ilustre autor,
julgo improcedente o pedido inicial, condenando o postulante no pagamento de
custas e honorários de 10% sobre o valor da causa. P.R.I.
Niterói, 2 de maio de 2005.
ALEXANDRE EDUARDO SCISINIO
Juiz de Direito
Bom saber.