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Lima Barreto previu em 1919 o Rio de hoje

Enviado: 30 Jun 2007, 12:50
por Fernando Silva
"O Globo" 30/06/07

Oráculo
João Ximenes Braga

Esta semana foi particularmente de doer para os cariocas. A corrosão da alma da cidade parece ter chegado ao extremo. Deu cupim nas estruturas, virou farelo, vai ruir a qualquer momento, salve-se quem puder. Só que essa sensação não é nova.

Eu tenho um rolo com Lima Barreto. Chego à baixaria de dobrar pontas de folhas em seus livros pra reler certos trechos de romances ou crônicas com freqüência.

Quando vi a história dos… ahn… rapazes da Barra que agrediram a doméstica num ponto de ônibus, logo me lembrei que Lima já traçara o perfil deles no janota de “Clara dos Anjos”, súmula do playboy carioca: “A mórbida ternura da mãe por ele, (…) junto com a indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram de Cassi o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É um tipo bem brasileiro.

Se já era egoísta, triplicou de egoísmo. Na vida, ele só via o seu prazer, se esse prazer era o mais imediato possível. Nenhuma consideração de amizade, de respeito pela dor dos outros, pela desgraça dos semelhantes, de ditame moral o detinha, quando procurava uma satisfação q u a l q u e r ” .

Claro que entre o Cassi que seduzia donzelas e os pitboys que deixam um rastro de contusões e traumatismos há um agravamento criminal que pode até ser uma involução para o pior, mas seu espírito Lima já identificara, assim como já descrevera seu ambiente numa crônica de 1919: “A nossa burguesia republicana é a mais inepta de todas as burguesias.

Não tem gosto, não tem arte, não possui o mais elementar sentimento da natureza. Há nela pressa em tudo: no galgar posições, no construir, no amor, no ganhar dinheiro etc. Vai, nessa carreira, atropelando, vai matando, vai empurrando tudo e todos; e como não tenha educação, cultura e instrução, quando se apossa do dinheiro, ganho bem ou mal, não sabe refletir como aplicá-lo, num gesto próprio e seu; então, imita o idiota que procura em comprar o que for caro, porque será decerto o mais belo”.

Em 1922, Lima já parecia estar antevendo o P a n : “Os edis de hoje mandam construir hotéis de oito mil contos para… hospedar estrangeiros.

De forma que, no tempo de el-rei nosso senhor, as autoridades municipais se encarregavam do bem-estar do seu povo, como se dizia antigamente; hoje porém, com a nossa democracia, essas mesmas autoridades se encarregam do bem-estar dos ricaços displicentes que vêm a passeio, cheios de dinheiro, ver bobagens de uma exposição de aterrado”.

E acusando o prefeito Carlos Sampaio de dividir a cidade em duas, uma européia e outra indígena, Lima parecia detectar as origens da guerrilha no Complexo do Alemão: “Municipalidades de todo o mundo constroem casas populares; a nossa, construindo hotéis chics, espera que, à vista do exemplo, os habitantes da Favela e do Salgueiro modifiquem o estilo das suas barracas”.

“Todos os seus esforços tendem para a educação do povo nas coisas de luxo e gozo. A cidade e os seus habitantes, ele quer catitas. É bom, mas a polícia vai ter mais trabalho. Não havendo dinheiro em todas as algibeiras, os furtos, os roubos, as fraudes de toda a natureza hão de se multiplicar; e só assim uma grande parte dos cariocas terá ‘gimbo’ para custear os esmartismos sampaínos”.

“Encarando a burguesia atual de todo o gênero os recursos e privilégios de que se dispõe como sendo unicamente meios de alcançar fáceis prazeres e baixas satisfações pessoais e não se compenetrando ela de ter para com os outros deveres de todas as espécies, falseia a sua missão e provoca a sua morte. Não precisará de g u i l h o t i n a ” .

E aí eu me pergunto: ninguém leu Lima Barreto nas últimas oito décadas? Pois não foi por falta de aviso que chegamos aonde estamos.

Mas o mais angustiante de relê-lo a esta altura é imaginar se seus piores pesadelos já se concretizaram, ou se vem mais por aí.

E-mail para esta coluna: jxbraga@oglobo.com.br