Madame antes do nome para ser vista como gente
Enviado: 30 Jun 2007, 12:55
"O Globo" 30/06/07
Madame antes do nome
Melina Dalboni
Discutir relação. Sair sozinha.Dividir tarefas.
Essas três atividades tão próprias da mulher casada do século XXI eram impensáveis há pouco mais de cem anos. Os trabalhos domésticos, a dependência total do marido e a leitura de folhetins e revistas compunham o cotidiano da mulher casada no século XIX, segundo pesquisa da escritora Ana Maria Machado feita em oito romances publicados neste período.
A condição social da mulher casada evoluiu nesse intervalo. O retrato de tal diferença está presente em livros como “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert, “O Primo Basílio”, de Eça de Queiroz, “Senhora”, de José de Alencar, “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, e “Anna Karenina”, de Leon Tolstói.
Nos livros, a rotina de mulher casada mostra-se pesada e entediante, e o adultério vira válvula de escape da realidade, como apresenta a escritora, membro da Academia Brasileira de Letras, no curso “Sobre mulheres e casamentos”, até dia 9 de julho, na Casa do Saber.
— O único traço comum entre aquelas mulheres casadas e as de hoje é o fato de serem casadas. A possibilidade de romper contrato mudou tudo.
Hoje, as mulheres, além de terem o direito de se divorciar, podem, naturalmente, escolher seus maridos — ato impensável para uma burguesa no século XIX. Discutir a relação é característica intrínseca da mulher moderna. Todas querem e fazem isso. A maioria trabalha fora, e boa parte delas ainda sustenta a família, sobretudo nas classes mais baixas.
Os afazeres de casa foram simplificados, há produtos de limpeza e eletrodomésticos para quase tudo. Mas os cuidados com os filhos, que já não são tantos, continuam os mesmos. E, o principal, marido e esposa ocupam a mesma posição.
— Esses romances nos mostram que as mulheres não existiam se não tivessem madame antes do nome — diz a escritora, numa referência à marchinha de carnaval “Aurora”, de Mario Lago.
Há, no entanto, um empecilho hoje no comportamento de homens e mulheres para alcançarem um casamento duradouro.
A sociedade de consumo levou o ideal do amor a ser substituído pela busca da paixão.
— Somos ensinadas a querer paixão e a imaginar que amor e paixão são sinônimos.
Há um paradoxo contemporâneo nas relações amorosas. Ao mesmo tempo que toda a cultura de massa apresenta a paixão como o ideal desejável, transmite a idéia enganosa de que ela pode ser durável.
E transformar essa paixão num amor companheiro e duradouro pressupõe valores menos descartáveis e prazeres mais lentos e sutis do que os que estão constituindo o imaginário de hoje, baseado numa sociedade de consumo. Esse é o desafio: construir algo que passa por ternura, lealdade, cumplicidade, amizade.
O casamento dava poder, respeito e segurança às mulheres no século XIX.
Quando solteiras, não podiam morar sozinhas.
E na casa do pais, não mandavam em nada. Quase sempre de conveniência, o matrimônio tinha que durar a vida toda, até a morte. Mais, elas não deveriam fazer reclamações ao marido sobre o relacionamento e suas carências. Homem e mulher não ocupavam o mesmo patamar. Ele trabalhava. Ela cuidava da casa e da família. Sem reclamar.
— O cotidiano delas era muito pesado.
Tudo dava trabalho. E elas não escolhiam o marido, casavam virgens, não tinham autonomia financeira nem interesses em sua própria realização individual.
Fuga da realidade com romances
“Precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas”, diz Aurélia, 18 anos, a “Senhora” de José de Alencar, na noite de núpcias, depois de comprar seu marido, que anos antes, ainda um pretendente, trocara-a por 30 contos de réis. A personagem, claro, é vingativa, está magoada.
Mas, de um modo ou de outro, sendo rica ou não, a mulher precisava casar se quisesse, pelo menos, ter vida social sem ser no mínimo ignorada por seus conhecidos.
— Anna Karenina se suicida com medo de virar um pária da sociedade — lembra.
A personagem, depois de fugir com seu amante, vê todas as portas da sociedade se fecharem, deixa de ser cumprimentada e é ignorada até mesmo por parentes. Sair à rua sem um acompanhante no século XIX era motivo de fofoca entre os vizinhos.
Coisa boa não devia ser, pensavam. Mulher correta não saía de casa sozinha. Foi assim com a Luiza de Eça de Queiroz em “O Primo Basílio”. Assim que ela percebeu o burburinho causado por sua atitude de dar um passeio sem o marido, tratou de convocar a amiga Dona Felicidade para lhe fazer companhia pelas ruas de Lisboa.
Os maridos nem sempre são apresentados como o traste descrito por Aurélia, mas se aproximam do homem bobo, insensível e desinteressado. E, por isso, as mulheres recorriam aos folhetins.
Sonhavam com aventuras e novas experiências ali, nas páginas dos periódicos e dos romances — como fazia Emma Bovary. Nos livros, a personagem de Flaubert “procurava satisfações imaginárias para seus apetites pessoais”.
Eles poderiam incentivar o adultério, tema recorrente na literatura da época.
Em todos os oito romances analisados por Ana Maria, as personagens fazem referências a autores como Honoré de Balzac, discutem poesia ou são descritas em cenas nas quais aparecem lendo.
— O ser humano tem necessidade de doses diárias de narrativa. Antes, elas liam romances para fugir da realidade, viajar. A vivência dessas mulheres era substituída por informações livrescas.
Hoje, a novela tem esse papel.
Madame antes do nome
Melina Dalboni
Discutir relação. Sair sozinha.Dividir tarefas.
Essas três atividades tão próprias da mulher casada do século XXI eram impensáveis há pouco mais de cem anos. Os trabalhos domésticos, a dependência total do marido e a leitura de folhetins e revistas compunham o cotidiano da mulher casada no século XIX, segundo pesquisa da escritora Ana Maria Machado feita em oito romances publicados neste período.
A condição social da mulher casada evoluiu nesse intervalo. O retrato de tal diferença está presente em livros como “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert, “O Primo Basílio”, de Eça de Queiroz, “Senhora”, de José de Alencar, “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, e “Anna Karenina”, de Leon Tolstói.
Nos livros, a rotina de mulher casada mostra-se pesada e entediante, e o adultério vira válvula de escape da realidade, como apresenta a escritora, membro da Academia Brasileira de Letras, no curso “Sobre mulheres e casamentos”, até dia 9 de julho, na Casa do Saber.
— O único traço comum entre aquelas mulheres casadas e as de hoje é o fato de serem casadas. A possibilidade de romper contrato mudou tudo.
Hoje, as mulheres, além de terem o direito de se divorciar, podem, naturalmente, escolher seus maridos — ato impensável para uma burguesa no século XIX. Discutir a relação é característica intrínseca da mulher moderna. Todas querem e fazem isso. A maioria trabalha fora, e boa parte delas ainda sustenta a família, sobretudo nas classes mais baixas.
Os afazeres de casa foram simplificados, há produtos de limpeza e eletrodomésticos para quase tudo. Mas os cuidados com os filhos, que já não são tantos, continuam os mesmos. E, o principal, marido e esposa ocupam a mesma posição.
— Esses romances nos mostram que as mulheres não existiam se não tivessem madame antes do nome — diz a escritora, numa referência à marchinha de carnaval “Aurora”, de Mario Lago.
Há, no entanto, um empecilho hoje no comportamento de homens e mulheres para alcançarem um casamento duradouro.
A sociedade de consumo levou o ideal do amor a ser substituído pela busca da paixão.
— Somos ensinadas a querer paixão e a imaginar que amor e paixão são sinônimos.
Há um paradoxo contemporâneo nas relações amorosas. Ao mesmo tempo que toda a cultura de massa apresenta a paixão como o ideal desejável, transmite a idéia enganosa de que ela pode ser durável.
E transformar essa paixão num amor companheiro e duradouro pressupõe valores menos descartáveis e prazeres mais lentos e sutis do que os que estão constituindo o imaginário de hoje, baseado numa sociedade de consumo. Esse é o desafio: construir algo que passa por ternura, lealdade, cumplicidade, amizade.
O casamento dava poder, respeito e segurança às mulheres no século XIX.
Quando solteiras, não podiam morar sozinhas.
E na casa do pais, não mandavam em nada. Quase sempre de conveniência, o matrimônio tinha que durar a vida toda, até a morte. Mais, elas não deveriam fazer reclamações ao marido sobre o relacionamento e suas carências. Homem e mulher não ocupavam o mesmo patamar. Ele trabalhava. Ela cuidava da casa e da família. Sem reclamar.
— O cotidiano delas era muito pesado.
Tudo dava trabalho. E elas não escolhiam o marido, casavam virgens, não tinham autonomia financeira nem interesses em sua própria realização individual.
Fuga da realidade com romances
“Precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas”, diz Aurélia, 18 anos, a “Senhora” de José de Alencar, na noite de núpcias, depois de comprar seu marido, que anos antes, ainda um pretendente, trocara-a por 30 contos de réis. A personagem, claro, é vingativa, está magoada.
Mas, de um modo ou de outro, sendo rica ou não, a mulher precisava casar se quisesse, pelo menos, ter vida social sem ser no mínimo ignorada por seus conhecidos.
— Anna Karenina se suicida com medo de virar um pária da sociedade — lembra.
A personagem, depois de fugir com seu amante, vê todas as portas da sociedade se fecharem, deixa de ser cumprimentada e é ignorada até mesmo por parentes. Sair à rua sem um acompanhante no século XIX era motivo de fofoca entre os vizinhos.
Coisa boa não devia ser, pensavam. Mulher correta não saía de casa sozinha. Foi assim com a Luiza de Eça de Queiroz em “O Primo Basílio”. Assim que ela percebeu o burburinho causado por sua atitude de dar um passeio sem o marido, tratou de convocar a amiga Dona Felicidade para lhe fazer companhia pelas ruas de Lisboa.
Os maridos nem sempre são apresentados como o traste descrito por Aurélia, mas se aproximam do homem bobo, insensível e desinteressado. E, por isso, as mulheres recorriam aos folhetins.
Sonhavam com aventuras e novas experiências ali, nas páginas dos periódicos e dos romances — como fazia Emma Bovary. Nos livros, a personagem de Flaubert “procurava satisfações imaginárias para seus apetites pessoais”.
Eles poderiam incentivar o adultério, tema recorrente na literatura da época.
Em todos os oito romances analisados por Ana Maria, as personagens fazem referências a autores como Honoré de Balzac, discutem poesia ou são descritas em cenas nas quais aparecem lendo.
— O ser humano tem necessidade de doses diárias de narrativa. Antes, elas liam romances para fugir da realidade, viajar. A vivência dessas mulheres era substituída por informações livrescas.
Hoje, a novela tem esse papel.