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Fácil não ter quando se tem

Enviado: 08 Set 2007, 12:03
por RicardoVitor
FÁCIL NÃO TER QUANDO SE TEM

Papa encoraja jovens a seguirem contra a corrente e preferir o ser ao ter – é o que dizem os jornais. Bento XVI rezou missa ontem, no santuário mariano de Loreto (leste da Itália), para quase 500 mil jovens. Fez a eles um pedido: que sigam contra a corrente e se afastem dos modelos de vida marcados pelo ter e o sucesso a todo custo e em vez disso escolham o caminho da humildade e do ser. Pareceu-me inclusive que a homilia de Sua Santidade era dirigida a este humilde escriba, pelo menos em sua primeira peroração. Desde jovem sempre nadei contra a corrente. Sei que de pouco adianta, mas continuo nadando contra a corrente. Particularmente contra essa corrente que quer impor ao ser humano crenças em deuses inexistentes e em dogmas absurdos, infensos à razão.

Quanto à opção entre ser e ter, lembro já ter ouvido isto de João Paulo II. Os papas são sacerdotes que um dia fizeram, entre outros, o voto de pobreza e a Igreja Católica sempre viu o cristianismo como uma defesa incondicional dos pobres. Claro que não é difícil defendê-los vivendo em um palácio magnífico, ornado com obras de arte monumentais, tendo um séquito de servidores a seu dispor, dispondo de cozinha especial e de uma biblioteca de sonho. Mas é claro que tudo isto não pertence a Ratzinger. São apenas regalias do cargo de vice-Deus.

Há algo que invejo nos papas. Não só neles, como nos grandes do mundo. Aposto como estes senhores vivem boa parte de suas vidas sem um vintém no bolso. Jamais puxam a carteira nem o cartão de crédito. Suas mãos jamais tocam cédulas sujas. Eles simplesmente são, nada têm. Como não sou papa, nem presidente da República nem sultão do Brunei Darussalam, não posso me dar ao luxo de apenas ser e nada ter.

Os papas não estão dizendo nada de original ao fazer esta oposição entre ter e ser. A discussão marcou os anos 50 e 60, em função de uma obra do escritor, dramaturgo e músico católico Gabriel Marcel, intitulada Être et avoir, publicada em Paris, em 1935. Esse livro caiu-me nas mãos em minhas universidades e constituiu motivo de muitos seminários entre os movimentos da Ação Católica. Como a memória me falha, chamo o professor Rubem Queiroz Cobra, estudioso da obra de Marcel, para resumir as relações entre o ter e o ser:

"Ter implica um dualismo composto de um indivíduo que possui e uma coisa que é possuída, exterior ao possuidor. Ser, ao contrário, não admite qualquer dualismo. Então o homem não tem o seu corpo, ele é o seu corpo. Pela posse, o homem ganha o poder de reter, conservar, proteger e usar de um objeto (objetivação). Marcel viu que a aproximação dupla de abstração e posse está na raiz dos problemas sociais. Enquanto ambos - abstração e posse - são parte da vida, elas podem crescer excessivamente e dominar e ao fim destruir o ser do homem".

De uma só penada, Marcel faz um aceno a uma Igreja que se pretende pobre, aos marxistas que dizem abominar o capital e a todos os demais inimigos da riqueza e progresso aportados ao Ocidente pelo capitalismo. É, sem dúvida, um autor ecumênico. Pena que na prática a teoria é outra. É muito fácil optar pelo ser, quando se é papa. Um papa, a rigor, não tem nada. Ele só é. Sem ter nada, no entanto tem tudo. Quando transportado ao universo dos pobres mortais, este nobilíssimo ideal muda de cariz.

Ninguém vive bem sem ter posses mínimas que garantam um mínimo de conforto. Ora, direis, os selvagens nada possuem e vivem felizes nas selvas. Felizes, em termos. O universo indígena está cheio de pessoas desnutridas, crianças morrendo de fome, isso quando não são mortas pelos próprios pais. Índio, quando adoece, não vai procurar o pajé, mas quer hospital e medicina de ponta. De qualquer forma, Bento XI não estava falando aos selvagens, mas a seus contemporâneos na Itália.

Digamos que você despreze os valores do ter e tenha escolhido o caminho da humildade e do ser, vivendo feliz sua vidinha de operário remunerado, não digo com um, mas com dois ou três ou mesmo quatro salários mínimos. Você vai habitar mal, vai comer mal, não conseguirá pagar seguro-saúde e talvez nem consiga pagar um jornal por dia. Terá de fazer das tripas coração para colocar um filho na universidade. Viagens, que constituem as melhores aventuras do espírito, nem pensar. Vinhos ou gastronomia, só em sonhos. Em verdade, seguindo o ideal franciscano proposto por Bento XVI, você não está vivendo. Está vegetando.

Nasci em família pobre e a questão do ter em princípio não me preocupava. Por uma razão simples: eu nada tinha. Durante minha vida universitária, eu gabava-me de fazer minha mudança de táxi. Cheguei inclusive a escrever essa bobagem em algum jornal. Jovem algum que escreva escapa de escrever bobagens.

Na época, li em um livro de Bernard Shaw: "Dinheiro é saúde, beleza, cultura, sabedoria, requinte". Talvez a frase não seja bem essa, estou citando de memória. Mas o sentido era esse. A frase golpeou-me como uma bofetada, era a antítese de tudo que eu pensava. Hoje, dou plena e total razão a Shaw. Não falo de bilhões, nem mesmo de milhões, mas um mísero milhãozinho sempre vem bem. Até menos. Algo que nos permita educar os filhos, construir uma biblioteca, comprar boa música, dar um pulinho de vez em quando a Paris ou Roma, degustar vinhos decentes, comer não para saciar o estômago, mas para saciar o palato.

Como João, Bento está clamando no deserto. Suas frases entrarão por quinhentos mil ouvidos e sairão pelos outros quinhentos mil ouvidos. Os jovens sempre gostam de participar desses encontros com o papa. É uma excelente ocasião para paquerar, beber, fumar, cheirar e transar.

- Enviado por Janer @ 7:31 PM

http://cristaldo.blogspot.com/

Re.: Fácil não ter quando se tem

Enviado: 08 Set 2007, 12:27
por Fedidovisk
Gostei bastante do texto, fugindo da questão do apontamento hipócrita de certas doutrinas...

Tenho que o homem quando tem, deixa de ser o que é, mas ele só passa ter consciência de si com as interações entre o ser e o ter, é indispensável os 2... caminham juntos.

Uns poderiam dizer, eu no caso, que o ter corrompe o ser, mas ter menos só corrompe "menos", porque no fundo o simples fato "ser" já faz de você "possuidor" de tudo, só resta saber se fará disso uma "boa ou má" experiência. E é lógico, que nem todos "possuem", mas o que vale é o desejo.

Re.: Fácil não ter quando se tem

Enviado: 08 Set 2007, 12:32
por Ilovefoxes
"Ter corrompe o ser" é um tipo de mito criado por pobres e esquerdistas, por inveja ou para justificar seu fracasso.

É mais ou menos como quando se quebra um cristal e dizem que dá sorte. É para não se sentir tão mal com a situação, se inventa uma crença que você passa a acreditar porque faz bem para ao ego.

Re.: Fácil não ter quando se tem

Enviado: 08 Set 2007, 14:56
por Márcio
Hummm! Há uma doutrina cristã da prosperidade que prega justamente o contrário, o TER para SER e que não se deve amar o dinheiro mais sim utiliza-lo como à um serviçal. Com isso parece ''roubar'' os crédulos da ICAR que insiste na máxima: ser pobre é estar mais próximo de deus.

Sentado no trono de Pedro, cercado de riquezas e mimos, parece ser mais fácil dizer: ''SER antes de TER''.