Como "recordar é morrer", basta lembrar uma matéria de 10 anos atrás sobre o mesmo assunto, para ver como a opinião da revista muda de acordo com a imagem que quer vender:
O TRIUNFO FINAL DE CHE
Com a busca de seus ossos, ressurgem as idéias
e as aventuras do guerrilheiro mitológico
Dorrit Harazim, da Bolívia
"Foi como se eles tivessem brotado da terra, do nada. Nós campesinos não entendíamos o que os barbudos queriam aqui. Se tivessem nos explicado alguma coisa, talvez tivesse sido diferente." Estrada Salazar, de 70 anos, cabeça branca e pés que se confundem com as fendas do solo boliviano, percorre há duas horas o caminho que vai de Taperilla ao Rio Ñacahuazú, no sudeste da Bolívia, coração da primeira fase da guerrilha boliviana de Ernesto "Che" Guevara. Vai lembrando de miudezas daquela época, como o fato de ter sido levado para La Paz, pelos militares, sob suspeita de cumplicidade com a guerrilha. Nunca entendeu por quê. Ficou quatro meses incomunicável na cidade grande. Ao ouvirem a história, seus dois companheiros de marcha, a quem jamais contara o episódio, por desimportante, morrem de rir. Matuto fala pouco, e os do altiplano, menos ainda. "Eu me dei melhor do que meu amigo, que foi tomado como guia pelos guerrilheiros e acabou morrendo num tiroteio com o qual nada tinha a ver", esclarece Salazar, com uma ponta de orgulho.
Bem mais adiante, naquele pedaço em que, mesmo de jipe, só se consegue percorrer 80 quilômetros em sete horas, outro roceiro acha que está montado numa mina de ouro. Lucidio Aldunate Peres, um dente só na frente, camiseta Guess e bigodão copioso, há seis anos comprou o terreno em que existiu a lendária Casa de Calamina (casa de zinco), por 13.000 dólares. Calamina foi a fazendola que serviu de fachada legal para a guerrilha de Che, até cair em mãos do Exército boliviano e ser arrasada, para que a História não registrasse vestígios de sua existência. Não adiantou. No ano passado, uma antropóloga suíça desembarcou naquele fim de mundo, com uma oferta que se imagina polpuda, para tentar comprar o terreno. Também já vieram mochileiros da França e da Irlanda para ver a meia dúzia de tijolos da casa original, que ainda sobrevivem, esquecidos, no que é hoje um milharal. Maria, uma cientista cubana, queria um dos tijolos, para uma futura Universidade Che Guevara. No mês passado, foi a vez de "Benigno" (Dariel Alarcón Ramírez), um dos três únicos sobreviventes cubanos da guerrilha, bater às portas de Lucidio Aldunate, vindo da Espanha, onde mora. Trazia a tiracolo uma equipe de televisão francesa, para refazer o trajeto de Che, a partir da antiga Casa de Calamina. Deu tudo errado. Ninguém agüentou escalar sequer até o primeiro acampamento mais ao alto das montanhas, e os franceses ainda caíram no Ñacahuazú e perderam o equipamento de 50.000 dólares. Trinta anos atrás, o roceiro Aldunate, que vivia ali por perto, fora abordado pelos guerrilheiros para que vendesse suas duas mulas. "Eu era pobre, não podia vendê-las, era tudo o que eu tinha, mas um deles foi logo me perguntando se eu queria um par de milhão de pesos pelas mulas. Não entendi nada, mas topei, pois até aquele dia, com 37 anos de idade, eu nunca tinha visto mais dinheiro do que 500 pesos." Aldunate encantou-se com a visita de Benigno, a prosa foi correndo, até o matuto perguntar ao ex-guerrilheiro: "Mas por que, depois de tudo isso, você não vive em Cuba?" e "Por que vocês começaram a guerrilha antes de conhecerem o terreno e estarem preparados?". Ambas ficaram sem resposta. O ex-guerrilheiro ficou quieto.
É só botar o pé na Bolívia de 1997 e as histórias de trinta anos atrás vão pipocando. O epicentro da comoção guevarista está em Vallegrande, é claro. Cidade de 5.000 habitantes, mulas na rua, um imenso Cristo Redentor branco na entrada, 800 quilômetros a sudeste de La Paz, e fincada a 2.200 metros de altitude, Vallegrande reúne todas as dúvidas e encruzilhadas da epopéia guerrilheira. Para quem gosta de coincidências, as derradeiras três palavras escritas por Che Guevara em seu famoso diário de campanha, ignorando que morreria dois dias depois, foram: "Altitude: 2.000 metros". Nos dias de hoje, quem chega a Vallegrande pode achar que aportou em Cuba por engano. Tudo gira em torno de Che Guevara e das frenéticas escavações que se realizam na pista desativada do aeroporto da cidade, onde se supõe tenha sido enterrado clandestinamente. Seus captores sabiam que tinham pela frente um personagem da História. Tanto que se apoderaram de seus pertences. Assim foi no Calvário, mas assim foi também na prisão de Spandau, onde tudo leva a crer que um soldado americano, subornado por objetos pessoais nos quais percebera o toque da História, contrabandeou para dentro da cela o veneno com o qual o chefe nazista Hermann Goering se suicidaria. No caso de Che, seu fuzil avariado, a carteira, dois relógios Rolex de aço, o cachimbo, a caneta com que escreveu seu diário de campanha, tudo foi rapinado. O cubano exilado Félix Rodríguez, veterano da CIA e coordenador da execução a frio de Che, roubou-lhe o fumo e a imagem -- fez questão de ser retratado ao lado da presa, minutos antes de seu fuzilamento. Os militares bolivianos passaram mais tempo procurando Guevara morto (dois anos de escavações) do que o caçando vivo (onze meses). Isso admitindo-se que queiram realmente encontrá-lo. Na manhã do sábado 28 de junho, uma escavadeira trombou com o primeiro pedaço de crânio do que parece ser a vala comum em que foram jogados pelo menos sete dos guerrilheiros comandados por Che Guevara, trinta anos atrás -- número superior ao total de generais mortos em combate na América do Sul, em todo o século. Para o punhado de cientistas cubanos que comandam as escavações -- o trabalho braçal fica por conta de catorze bolivianos, enquanto cinqüenta policiais montam guarda no aeroporto descampado --, foi um momento de júbilo. Alguns choraram, outros se abraçaram, todos continuaram trabalhando até as 4 da madrugada, com mãos, espátulas, pincéis, instrumentos odontológicos, pinças, brocas e, sobretudo, uma paciência infinita.
Garimpavam ossos como se procurassem pedras preciosas. Veio um tesouro: restos de um antebraço, um úmero, partes de um maxilar superior, uma mão, uma pélvis, fragmentos de coluna vertebral, dentes. Era a própria guerrilha que parecia ressuscitar da terra. "Como cientista e revolucionário, esta é a tarefa mais importante da minha vida. Estou há 600 dias trabalhando aqui", exultou o chefe da equipe, doutor Jorge Gonzales, diretor do Instituto de Medicina Legal de Cuba. Nos dias seguintes, e até a sexta-feira passada, seguiram-se outros achados, sugerindo que, desta vez, se pode estar perto de desvendar o mistério do sumiço do corpo de Che Guevara, ocorrido na madrugada de 11 de outubro. Tudo parece pronto para o grande anúncio, que já tarda três décadas: a viúva de Che está de sobreaviso, em Havana, o governo cubano prepara grandes comemorações, a zona de escavações na pista do aeroporto tornou-se ponto obrigatório das maiores redes de TV do mundo.
Para circular naquele amontoado de terra, foram confeccionadas modernas credenciais numeradas, as entrevistas coletivas têm hora marcada e já apareceu a primeira denúncia de falcatrua: uma produtora de vídeo pertencente a um assessor do Ministério do Desenvolvimento Humano, contratada sem licitação e com exclusividade sobre as filmagens das escavações, teria vendido seu material à CBS americana por 10.000 dólares. "Pode demorar 24 horas, 24 dias ou 24 anos, mas não vamos parar", declara o representante do Ministério do Interior da Bolívia, Oscar Carnejo, despachado às pressas de La Paz a Vallegrande. Carnejo, formado em economia pela Universidade Federal da Bahia, explica que a Bolívia respeita a Convenção de Viena. Ou seja, todos os ossos identificados serão devolvidos às respectivas famílias, se elas assim o desejarem. No caso de Che Guevara, isso dói. "Che é patrimônio cultural da cidade", insurgiram-se as autoridades municipais de Vallegrande, tentando embargar as escavações. Outra cidade, Muyupampa, mais ao sul, onde foram presos o escritor francês Régis Debray e o comunista argentino Ciro Bustos, após uma visita a Guevara, também soa o alarme: "O Che é patrimônio turístico da nossa cidade".
Foi na casinhola com dois tanques de lavanderia do Hospital Nuestro Señor de Malta, de Vallegrande, que Ernesto Che Guevara nasceu para a imortalidade ao ficar exposto durante um dia e meio, com 1,5 litro de formol injetado na veia do pescoço. Com o peito nu marcado por balas, o olhar sereno e um ríctus de sorriso na boca, o Comandante iniciava ali a sua trajetória final de último -- e talvez único -- ícone romântico e revolucionário deste século. Marx, Lenin e Mao estão mortos. Che está por toda parte, em camisetas, bandeiras, pôsteres, filmes, músicas, corações jovens, saudades velhas. "A vida não deve ser um hábito do qual a gente não se pode livrar", escreveu. Os grafites em línguas dos cinco continentes que cobrem as paredes de azul descascado da lavanderia do hospital dizem tudo -- de "Hoy hay que defenderte de ser Dios" e "Estoy contigo" até o inevitável "Hasta la victoria final". Do lado de fora, no chão batido, cresceu e ficou frondoso um pinheiro inexplicável. "A semente deve ter caído de suas roupas quando a enfermeira de plantão, Suzana Osinaca, lavou seu corpo fedido com uma mangueira", acreditam piamente os vallegrandinos.
Por onde passou, na Bolívia, Guevara fez brotar, depois de morto, uma unanimidade sentimental que jamais conheceu em vida. Mudaram os campesinos que pretendia libertar, não os militares que o caçaram e abateram -- estes sempre respeitaram e temeram sua valentia. Também, não era para menos. Em onze meses de guerrilha, jamais contou com mais de 38 combatentes, contra todo o Exército boliviano apoiado pela CIA. Atravessou cordilheiras áridas e quase estéreis, onde árvores não crescem. Desceu para vales por escarpas, penhascos, desfiladeiros, até sufocar na umidade do Chaco. Enfrentou meses de chuvas torrenciais e nuvens compactas de mosquitos. Em dias de sorte, comeu macaco, milho cru, rapadura com onça. Outras vezes, um passarinho apanhado teve de ser dividido por cinco. Usava os mesmos mapas secretos do Exército boliviano, mas foi perdendo os companheiros, um a um. "Estamos em uma ratoeira", escreveu no dia 28 de setembro de 1967. Deixara para trás hábitos como tomar banho -- em seu diário, registra um recorde de seis meses sem se lavar -- e dormir em camas. A última que ocupou talvez date de sua chegada clandestina à Bolívia, quando se hospedou no quarto 304 do Hotel Copacabana, em La Paz -- que, por sinal, permanece estagnado nos anos, com os Mammas e Papas entoando Monday, Monday no hall de entrada. Foi caçado como bicho numa caatinga boliviana que lembra mais o cenário da morte do brasileiro Carlos Lamarca, na mata rala do sertão baiano, do que a do libertador cubano José Martí, apanhado por uma bala perdida durante uma batalha. Sua guerrilha fracassou, mas não é próprio das guerrilhas triunfar. Salvo exceções, como em Cuba, guerrilhas nascem e morrem à margem do poder formal.
Pontos altos houve poucos. Samaipata, situada entre Santa Cruz e Cochabamba, foi o maior povoado boliviano que Che e seus guerrilheiros conseguiram ocupar durante algumas horas -- tinha perto de 2.500 habitantes, e até hoje não se fala em outra coisa. A cidadezinha tinha ouvido tanta propaganda de terror a respeito dos "barbudos estrangeiros" que não acreditou quando o bando chegou, em carne e osso. Era junho, Che já estava completamente debilitado pela asma e pela artrite reumática -- só conseguia deslocar-se de mula ou a cavalo e precisava urgentemente de remédios. Daí nasceu o ataque relâmpago, que de feroz não teve nada. Acordaram o dono da farmácia-armazém, Hector Inturia, que hoje vive no Rio de Janeiro, e apresentaram uma longa lista de medicamentos, mantimentos e guloseimas. Pagaram tudo com 1.000 pesos e, na retirada, ainda indenizaram os donos de um ônibus e um caminhão que haviam confiscado para a operação, por danos eventuais. Deixaram só de cueca os dez soldados do posto militar da cidade e sumiram no meio da noite.
Sucesso? Não. "Em termos de reabastecimento, a operação foi um fracasso", constatou Che, que não obteve nenhum dos remédios específicos de que tanto precisava. Em termos de marketing da guerrilha, foi um triunfo -- executado à plena vista da população, a notícia se espalhou por todas as cordilheiras do país. Mas nem ali a guerrilha conseguiu arregimentar um só recruta novo. "Acho que não estávamos preparados, por isso ninguém quis se juntar", admite o mais roxo dos guevaristas de Samaipata, versão 1997, Guillermo Gutierrez. "Nem sabíamos qual era o Che, pois todos pareciam esfarrapados. Mas eu sabia que só o Che tinha classe para fazer uma operação daquelas." Aos 60 anos de idade, Gutierrez afixou um pôster de Guevara logo na entrada de sua tenda e, desde a abertura política no país, em 1983, vende mais fotos do Comandante (1 dólar cada uma) do que os tradicionais artigos de artesanato. "O Che é o Cristo do século XX -- ele não faz milagres, mas faz com que se tenha fé na justiça social", define. O que mudou de 1967 para cá? "A comunicação. Se Che passasse por aqui hoje, acho que todos os campesinos se juntariam à luta. Até hoje o Exército boliviano tem medo só de ver a foto do Comandante", assegura. Gutierrez não representa exatamente a média dos moradores de Samaipata, a começar pelos prenomes que deu aos seis filhos: Ivan, Yuri, Tania Cuca ("nome da filha de Nikita Kruchev e da diretora de música da Universidade de Havana"), Lin ("em homenagem ao líder chinês Lin Piao"), Tamara ("nome da vaca à qual os soviéticos plugaram um sensor na orelha e utilizaram como espiã contra os alemães na II Guerra Mundial") e Carlos Il-Sun ("do líder da Coréia do Norte").
Che empolga por ter sido um rebelde com causa, aventureiro e vagabundo, de ar atormentado e ardor revolucionário, mas sobretudo um rebelde capaz de abrir mão de tudo, especialmente do poder. "Os últimos onze meses transcorreram sem maiores complicações, bucolicamente", escreveu o Comandante em 7 de outubro de 1967, véspera de sua prisão e morte. Só mesmo Che -- que fazia a revolução lendo o prêmio Nobel de Literatura do ano e compunha poemas para a mulher, Aleida March, no meio do nada boliviano -- para classificar de "bucólica" sua situação terminal. Sua cruzada para inflamar a América Latina com a centelha da revolução tinha chegado ao fim, antes mesmo de deslanchar. Era um homem em andrajos, doente, faminto, exaurido e encurralado naquele fiapo de rio cercado de penhascos, caatinga e pedras por todos os lados. A caçada chegara ao final. Estava ferido e desarmado -- o tiro que lhe acertou a perna direita também lhe arrancou o fuzil da mão. "Não atire. Valho mais vivo do que morto", teria dito a seus captores. Naquele fim de mundo áspero e inclemente, apenas uma pessoa podia valer mais vivo do que morto -- Ernesto Che Guevara, o último dos românticos da revolução mundial. De mãos atadas com o cinto de um de seus captores e os pés envoltos em frangalhos que algum dia foram um par de botas, empreendeu sua última marcha pelas escarpas ardidas da quebrada do Churo, rumo à localidade mais próxima, La Higuera. Na época, os sessenta habitantes da localidade puderam ver a estranha procissão chegando. Eram dois os prisioneiros: Che e seu último escudeiro, o fiel boliviano "Willy", Simón Cuba. A caravana, em fila indiana, atravessou o caminho de terra batida que corta o povoado e se aquartelou na última das vinte casas de La Higuera, na época uma escola tosca, de duas salas. Foi ali que Che foi abatido, com pelo menos sete tiros -- expressamente abaixo do rosto, para simular morte em combate --, e onde começou sua ressurreição.
Hoje, La Higuera tem apenas vinte habitantes, continua sem água nem luz. "Só fica aqui quem não tem para onde ir", esclarece a moradora Irma Rosado, de 50 anos, testemunha da procissão de trinta anos atrás. Mas a cada ano recebe uma romaria de jovens ou egressos da geração anos 60, dos cinco continentes. No lugar da escola, que migrou para outra montanha, está um posto de saúde, simples mas impecável, subvencionado pelo governo de Cuba. O médico contratado, sempre da região, recebe formação de cinco anos em La Havana e ajuda de custo de 280 dólares enquanto atender o povo em La Higuera. Se sair dali, perde a boca rica. Uma placa de bronze, dos camponeses de Cochabamba, presta "homenagem de admiração ao comandante das Américas". Num dos primeiros casebres de La Higuera, está batizado, em letras toscas, o nome do caminho empoeirado: Avenida 8 de Octubre. Três vezes os romeiros do culto a Che ergueram um medonho busto em sua homenagem, no meio da viela que corta o povoado -- e todas as vezes a estátua era arrancada por patrulhas de soldados bolivianos. Exceto agora. Che, com o boné e a estrela que compõem sua marca de revolucionário rebelde, continua de pé no pedestal branco. Sinal dos tempos. "Eu não sei o que ele veio fazer na Bolívia", admite Irma Rosado, "mas ele deve ter sido uma pessoa milagrosa. Quando temos dificuldades, ele nos ajuda -- desde que passou por aqui, veio uma estrada, veio um cemitério, veio uma escola melhor. Sim, aqui a gente reza para 'San Ernesto'." Quando vira santo, Guevara deixa de ser Che e prevalece seu nome de batismo, Ernesto.
Isso é só o começo. Vinte e sete agências de turismo da Bolívia estão-se familiarizando com o projeto "La Ruta del Che", idealizado pelo diretor do setor, na região de Chuquisaca, Klaus Pedro Schütt, um gabaritado economista de 46 anos, dublê de diretor de cinema e jeitão de Crocodile Dundee. Em março deste ano, quando participou da convenção mundial de turismo, na Alemanha, Klaus concedeu umas 25 entrevistas com seu "etno-ecoturismo" pela trilha de Che. Foi um sucesso. Quando o diário Tageszeitung, de Berlim, publicou uma nota a respeito, recebeu 320 chamadas no dia seguinte. Quem são os mais interessados? "A geração de 68", acredita Klaus, "aqueles que se achavam idealistas quando jovens e hoje estão casados com filhos já crescidos. Profissionais liberais em boa situação financeira em busca de alguma causa esquecida." Até mesmo 25 soldados que combateram a guerrilha no passado, e jamais receberam reconhecimento algum de suas Forças Armadas, o procuraram para participar da empreitada, como eventuais guias.
Mas é na semana de 5 a 11 de outubro próximo que a Bolívia, e sobretudo Vallegrande, se abrirá para uma espécie de Woodstock político, de resgate das idéias de Che, com pessoas vindo de todos os cantos. Pisarão num país pobre, limpo e soberbo, de pouca mendicância, que se modificou bastante nas três últimas décadas -- o analfabetismo baixou de 69% para 20%, uma ampla reforma educativa permite o ensino nas línguas nativas de seus vários povos, a expectativa de vida saltou de 42 para 60 anos de idade e o número de veículos passou de 27.000 para meio milhão. O Encontro Mundial dos trinta anos da morte do Comandante aceita inscrições por e-mail e opera com o Swissbank. Mas o que se espera, mesmo, são caravanas de mochileiros. Promete ser uma tribo diferente da que começou a reunir-se na semana passada em Roswell, pequena cidade do Deserto do Novo México, nos Estados Unidos, para comemorar o cinqüentenário de um suposto acidente com uma nave de extraterrestres que acreditam ter sido camuflado pelo governo americano. A turma de Che quer ressuscitar um homem de verdade. O mito de Ernesto Guevara, nascido na Argentina, vitorioso em Cuba, morto aos 39 anos, na Bolívia, e verdadeiro cidadão latino-americano, ampara-se na simplicidade, como todos os mitos: ele teve a coragem de abandonar poder, pompa e prestígio para jogar tudo o que lhe restava -- a vida -- pela idéia que, na vitória, lhe deu justamente prestígio, poder e pompa. O marquês de Lafayette encantou dois mundos, lutando na guerra de independência dos americanos, mas morreu marquês e francês. O italiano Giuseppe Garibaldi lutou no Uruguai, atravessou pântanos no Sul do Brasil, unificou a Itália, mas morreu de velhice na Ilha de Caprera. O mercenário Mike Hoare, que derrotou Guevara na África, era pago pelo maior conglomerado de ouro do mundo -- e, ademais, ainda teve de engolir o triunfo de Nelson Mandela na África do Sul.
Che Guevara tinha tudo para se tornar imortal: era bonito, destemido e morreu jovem, defendendo conceitos igualmente jovens, como a solidariedade e a justiça social. Sonhou com um novo homem para o século XXI e viveu como "o homem mais completo do século XX", segundo a clássica definição de Jean-Paul Sartre. Foi radical, moralista e conseqüente. Ícone da geração dos anos 60, ironicamente nunca chegou a usar jeans -- passou direto da calça de pano ao uniforme de guerrilheiro. Também nunca deve ter cantado rock -- tinha péssimo ouvido musical e jamais se conciliou com a língua inglesa. Viveu num mundo sexualmente revolucionário, mas era casto. Tornou-se símbolo da boemia, embora praticamente não bebesse. Virou moda, em suma, e, como ensina o historiador inglês Eric Hobsbawn, "a moda é freqüentemente profética". Sobretudo, na mesma linhagem de James Dean, John Lennon ou Jimi Hendrix, foi um herói cuja vida e juventude se encerraram ao mesmo tempo, abruptamente, congelando o mito. Se fosse vivo, Ernesto Che Guevara, aos 69 anos, já seria duas vezes bisavô. Nas montanhas de Chiapas ou nos acampamentos dos sem-terra brasileiros, ele está mais vivo hoje, trinta anos após sua morte, do que Fidel Castro. Mesmo que seus ossos não sejam achados.
http://veja.abril.com.br/090797/p_088.html
Notem que está longe de fazer apologia à guerrilha ou de ter alguma simpatia pelo regime cubano. Mas seria demais esperar a sutileza da Dorrit Harazim nos Reinaldecos e Dioguitos que fazem a Veja hoje...