Blog sobre Cuba
Enviado: 15 Out 2007, 00:48
Na verdade é sobre um livro com uma série de crônicas a respeito das viagens do autor a Cuba. mas não deixa de ser interessante
http://radicalrebelderevolucionario.blogspot.com/
aqui vão algumas
Os Jineteiros (Texto Completo)
O Valor do Dinheiro
Dos cubanos que abordam turistas nas ruas, alguns são apenas latinos extrovertidos querendo bater-papo com estrangeiros e, no processo, faturar um almoço. Muitos, entretanto, são jineteiros profissionais.
Não se pode andar cinco metros em Cuba sem ser abordado. Perguntam de onde você é, puxam conversa, são super simpáticos. Daqui a pouco, começam os pedidos: me paga um almoço, ¿uma cervejinha¿, tem uma aspirina, ¿me dá seus sapatos?, e daí pra baixo.
Muitas vezes, depois de horas me amolecendo, investindo seu tempo, trabalhando duro, o cubano inspeciona os bolsos e diz: poxa, não tenho nada, ¿você me daria vinte pesos pra uma cervejinha? Ou então, vinte pesos pro táxi de volta pra casa...
E, vejam só, eu sei que o cara não é meu amigo. Todo o tempo que passou comigo foi só pensando no meu dinheiro. E, mesmo assim, sinto uma pena imensa. Sabe por quê? Porque vinte pesos são dois reais. Dois reais, colega. Dois reaizinhos. Dá vontade de dizer: caramba, esse tempo todo que você investiu e ¿só quer dois reais? ¡Toma quatro e não se fala mais nisso!
Não há melhor ilustração da pobreza generalizada em Cuba. O malandro pensa que está me enganando e, pelo contrário, mesmo se arrancar de mim o dobro do que queria, eu é que me sinto um explorador. E, infelizmente, nem mesmo esses quatro reais eu posso dar, senão ele me recomenda aos seus colegas como um "pato fácil" e, em cinco minutos, estou rodeado por um enxame de pidões.
Esse povo, tão instruído e tão saudável, outrora tão orgulhoso do seu papel na política mundial, hoje se vende por um prato de comida.
De todas as pequenas e grandes tragédias de Cuba, essa é a que mais me entristece.
Tipos de Jineteiros e Seus Truques
É impressionante a quantidade de perguntas pessoais que um cubano consegue fazer a um completo estranho na rua. Querem saber de onde sou, quanto tempo fico, o que estou fazendo aqui, onde estou hospedado, quanto calço, tudo. Essa última não é um exemplo aleatório: eles já estão pensando em pedir seus sapatos. A primeira coisa que me pediram foram minhas havaianas. Literalmente, teve fila.
Dos vinte cubanos que me abordam por dia, uns cinco querem apenas conversar. Não pedem nada. Depois de alguns minutos, se despedem e vão viver suas vidas. São apenas latinos extrovertidos, carentes e curiosos. Os outros quinze são jineteiros.
Grosso modo, existem os jineteiros comerciais e os sexuais: os querem vender produtos e os que vendem um corpo alheio. Quando são incompetentes ou desesperados já vão logo se oferecendo: ¿Cohiba legítimo? ¿trocar dólares? ¿uma cubana caliente?
(Não sei quem cai no papo desses caras. Teria que ser muito burro. O governo, por exemplo, só permite que saiam do país até 23 charutos sem certificado de comprovação. Para mais que isso, você precisa ter um documento oficial de uma loja autorizada. Senão, o pessoal da alfândega vai fumar todos os seus habanos.)
Os jineteiros diretos são os menos problemáticos. Vendedor de rua querendo engrupir turista existe no mundo inteiro. Nem tomam muito do seu tempo. Você diz não umas cinco vezes (sim, são insistentes) e eles já vão embora: afinal, tem muitos outros patos na rua.
Os bons jineteiros não pedem nada na hora. Não querem lhe colocar na defensiva. Batem papo, contam da sua vida, trocam telefone, marcam de se encontrar outro dia. Talvez se ofereçam pra lhe levar a um bom restaurante que só cubanos conhecem, a algum lugar turístico interessante fora dos guias, a um show de música cubana, a um lugar onde você pode comprar charutos a preço de fábrica, a uma casa particular mais barata do que a sua. Naturalmente, se você quiser lhes pagar um almoço no tal restaurante, ou o ingresso para o show, ou lhes dar um charuto, claro que não vão recusar a generosidade de um turista tão simpático.
O primeiro truque é o da comissão. Sempre que um cubano lhe leva a algum lugar, ele ganha algum. É a regra. Até aí, tudo bem. Acontece no mundo todo. O problema em Cuba é que a comissão não sai do bolso do estabelecimento, mas do turista. Quando você entra no restaurante com o simpático cubano que o recomendou, sua conta fica automaticamente 50% mais cara.
Em breve, entretanto, começam as histórias tristes. Não é fácil encontrar remédios em Cuba, por isso recomenda-se aos turistas que tragam tudo o que possam precisar. Eu gastei uns duzentos reais na farmácia antes de vir pra cá. Sabendo disso, os jineteiros inventam histórias sob medida: ah, você nem sabe, estou preocupado, minha avó está muito gripada, coitadinha, mas a farmácia do governo não tinha remédio pra gripe, não sei mais o que eu faço, meu deus... E o pobre turista, comovido pelas dificuldades do heróico povo cubano, lhe chama para ir ao seu hotel e lhe dá todo seu estoque de Naldecon, prontamente revendido por uma fortuna no mercado negro.
Tem também o que eu chamo de pedido póstumo: o sujeito olha pra baixo, quase corando de vergonha, com uma expressão torturada que parece dizer ¡coitado de mim por ter que pedir isso! e balbucia: ¿me deixa esses sapatos quando for embora?; adoraria essas suas havaianas como lembrança dos nossos dias juntos; essa sua bolsa salvaria minha vida na escola, ¿poderia deixar ela comigo?; puxa, aqui em Cuba não se encontra um cortador de charuto como o seu, etc. Não querem nada agora, ¡imagina!, mas se não for fazer falta... Afinal, na sua terra, lugar de riqueza e fartura, com certeza você pode comprar outro baratinho, até melhor, e eu ficaria com essa recordação tão linda da nossa amizade... Enquanto isso, uma solitária lágrima escorre por suas faces, brilhando sob o sol.
Se eu não fosse um cínico empedernido, cortaria meu coração. Nessas horas, eu sempre me lembro do que dizia minha santa avozinha: confie em todos, mas corte o baralho.
Um Dilema Cubano
Naturalmente, a situação nunca é assim preto-e-branca.
Afinal, os cubanos realmente têm pouco acesso a bens de consumo como bolsas, sapatos, havaianas, etc. Se você fez um amigo aqui e pode deixar suas havaianas com ele, ¿por que simplesmente não comprar outras por sete reais no Brasil? Os cubanos realmente ficam doentes e sofrem de uma maciça falta de remédios. ¿O que custa dar um anti-histamínico pro seu amigo cubano?
Minha amiga Isabel passou três meses em Cuba, durante a filmagem de "Estorvo". Me recomendou que não trouxesse nada que não pudesse deixar pra trás. Annie, no seu último dia de Cuba, passou na casa de uma amiga e deixou todo seu guarda-roupa. Voltou pra Nova Orleans literalmente com a roupa do corpo.
Para um estrangeiro em Cuba, talvez o maior dilema seja justamente esse: ¿como distinguir o jineteiro que lhe vê como uma fonte em potencial de aspirina para vender no mercado negro do cubano que ficou seu amigo e está precisando de algo pra aliviar a dor da sua avozinha?
Dionisio, Um Chileno Malandro (Texto Completo)
Dionisio, um chileno estudando música aqui em Cuba, fica profundamente irritado com as abordagens na rua, com as perguntas pessoais incessantes, com as ofertas não-solicitadas. Se sente atacado, invadido, explorado. Não dá papo. Sai andando. Às vezes, se vira e pergunta, já de punho em riste: ¿Te conheço? ¿Com que direito me pergunta essas coisas?
Ele tinha reserva em uma casa particular, mas, quando chegou, estava alugada. O solícito dono da casa pediu mil desculpas e lhe recomendou outra. Na segunda casa, Dionisio pagava 15 pesos conversíveis por dia (15 CUC = R$ 36): dez para a anfitriã e cinco de comissão para o dono da primeira casa. Ao longo dos dois meses em que Dionisio ficou em Havana, o cubano ganhou uma pequena fortuna (300 CUC = R$ 720, 36 vezes o salário mínimo) em recompensa pela falta de consideração de ter reserva com uma pessoa e alugar pra outra. Naturalmente, Dionisio só foi saber disso ao final da sua estadia, mas qualquer guia vagabundo sobre Cuba avisa sobre esse esquema já na primeira página.
Dionisio é uma figura típica. O homem se acha muito malandro e esperto ("street-wise" e "street-smart", diz ele), reclama sem parar que todos em Cuba são exploradores e jineteiros (pô, colega, se não gostou de nada e não se sente bem, faça o que os cubanos não podem fazer e ¡vá embora!), não se abre a novas amizades e não dá papo a nenhum cubano (claro, ¡pois todos querem fazê-lo de otário!), reage agressivamente aos jineteiros que lhe oferecem charutos na rua (quando bastava dizer "não" e ¡pronto!) mas, no fim das contas, perdeu 300 CUC em um esquema que já era velho quando Lot hospedou Abraão em Sodoma.
Eu até entendo a agressividade de Dionisio. É exasperante saber que uma parte da população nos vê somente como máquinas de extrair dólares. No começo, eu também não dava papo para os malucos que me abordavam na rua. Agora, tento explicar ao Dionisio que ele está perdendo uma parte importante da sua experiência cubana.
Annie me ensinou a ser mais aberto: se confio na minha capacidade de dizer "não", posso dar papo pra qualquer um. Respondo a todas as perguntas, bato papo, pergunto sobre suas vidas, sento com eles nos parques ou no Malecón - a muralha à beira-mar que protege Havana das ondas dos furacões. E, quando pedem algo que eu não posso ou não quero dar, basta dizer "não". Pronto. Ninguém precisa fechar a cara e ser grosso para não ser roubado. Annie foi muito mais assediada que ele, por ser mulher, loira, branca e gringa; nunca disse uma palavra rude a nenhum dos cubanos que tentaram exaustivamente explorá-la, e não caiu em um único golpe.
Em Cuba, pelo menos, a violência contra o turista praticamente inexiste. Existem pedidos e pedidos: se sou abordado em uma ruela escura do French Quarter ou de Copacabana por um sujeito mal-encarado que me pede vinte pratas, eu dou. Não tem nem conversa.
Os cubanos pedem, mas não há nenhuma ameaça implícita. Dionisio não entende essa enorme diferença.
Sede de Informação
Todos os jornais são editados pelo governo: o maior, o "Granma", é o informativo oficial do comitê central do Partido Comunista, oito pagininhas diárias em formato tablóide que todo mundo lê. Deixa eu contar uma coisa que vocês vão achar que é mentira, mas vá lá. Em Cuba, falta tudo; quando tem, é racionado; pra comprar além da sua quota, é caríssimo - inclusive papel higiênico. Já o "Granma", subsidiado pelo governo, é diário e baratíssimo (0,20 MN = R$ 0,02). Então - vocês já entenderam, ¿né? - os cubanos, literalmente, sério mesmo, não estou zoando, compram o "Granma" pra limpar o cu. Na foto ao lado, o banheiro da casa do meu amigo Cándido: o jornal pregado na parede não é o "Granma", mas seu irmão caçula, o "Juventud Rebelde".
A linha editorial do Granma, e da imprensa cubana de modo geral, está candidamente descrita nesse trecho do verbete "Periodismo" do Dicionário de La Literatura Cubana:
"El triunfo de La Revolución no sólo determinó la desaparición paulatina de los órganos de expresión de la burguesía, sino significó la irrupción de nuevas formas de encarar las tareas periodísticas y, por ende, eliminó de la prensa revolucionaria - expresión de los intereses de la clase proletaria en el poder - los falsos, insidiosos y desinformadores comentarios de las agencias de prensa del mundo capitalista, así como las crónicas rojas y sociales, los artículos y comentarios insulsos, las abundantes páginas destinadas a anuncios clasificados y comerciales, típicos de la sociedad de consumo y, lo que es más importante, el anticomunismo y las falacias de la llamada "libertad de expresión", proclamada como una de las bases de la democracia representativa. A la vez, la Revolución facilitó el surgimiento de una nueva tónica en la información, que ahora se basa en las cuestiones de más interés para nuestro pueblo, en las cuestiones que reflejen los avances y logros en los diversos campos del quehacer revolucionario: la defensa, la producción, la educación, los deportes, la cultura, las artes y todo tipo de nuevas tareas que la construcción del socialismo reclama de las masas trabajadoras. La difusión de las actividades del Partido - como guía del camino a seguir -, de la lucha ideológica, de las ideas marxistas-leninistas, así como la contribución al rescate de nuestros valores nacionales en las diversas esferas y la divulgación de los éxitos alcanzados por nuestra Revolución, tanto interna cuanto externamente, han sido también logros fundamentales de la prensa en el período revolucionario" (II, 774)
(...) Talvez vocês não tenham percebido a enorme ironia da situação. Se Cuba tivesse um povo largamente ignorante e semi-alfabetizado (como o brasileiro, por exemplo), pode até ser que engolissem tudo o que o governo diz. Entretanto, esse mesmo governo educou brilhantemente sua população no método científico, no materialismo dialético e no pensamento crítico. Ou seja, a prova de que a educação estatal funciona é justamente o fato de a população não acreditar na imprensa estatal.
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Os Jineteiros (Texto Completo)
O Valor do Dinheiro
Dos cubanos que abordam turistas nas ruas, alguns são apenas latinos extrovertidos querendo bater-papo com estrangeiros e, no processo, faturar um almoço. Muitos, entretanto, são jineteiros profissionais.
Não se pode andar cinco metros em Cuba sem ser abordado. Perguntam de onde você é, puxam conversa, são super simpáticos. Daqui a pouco, começam os pedidos: me paga um almoço, ¿uma cervejinha¿, tem uma aspirina, ¿me dá seus sapatos?, e daí pra baixo.
Muitas vezes, depois de horas me amolecendo, investindo seu tempo, trabalhando duro, o cubano inspeciona os bolsos e diz: poxa, não tenho nada, ¿você me daria vinte pesos pra uma cervejinha? Ou então, vinte pesos pro táxi de volta pra casa...
E, vejam só, eu sei que o cara não é meu amigo. Todo o tempo que passou comigo foi só pensando no meu dinheiro. E, mesmo assim, sinto uma pena imensa. Sabe por quê? Porque vinte pesos são dois reais. Dois reais, colega. Dois reaizinhos. Dá vontade de dizer: caramba, esse tempo todo que você investiu e ¿só quer dois reais? ¡Toma quatro e não se fala mais nisso!
Não há melhor ilustração da pobreza generalizada em Cuba. O malandro pensa que está me enganando e, pelo contrário, mesmo se arrancar de mim o dobro do que queria, eu é que me sinto um explorador. E, infelizmente, nem mesmo esses quatro reais eu posso dar, senão ele me recomenda aos seus colegas como um "pato fácil" e, em cinco minutos, estou rodeado por um enxame de pidões.
Esse povo, tão instruído e tão saudável, outrora tão orgulhoso do seu papel na política mundial, hoje se vende por um prato de comida.
De todas as pequenas e grandes tragédias de Cuba, essa é a que mais me entristece.
Tipos de Jineteiros e Seus Truques
É impressionante a quantidade de perguntas pessoais que um cubano consegue fazer a um completo estranho na rua. Querem saber de onde sou, quanto tempo fico, o que estou fazendo aqui, onde estou hospedado, quanto calço, tudo. Essa última não é um exemplo aleatório: eles já estão pensando em pedir seus sapatos. A primeira coisa que me pediram foram minhas havaianas. Literalmente, teve fila.
Dos vinte cubanos que me abordam por dia, uns cinco querem apenas conversar. Não pedem nada. Depois de alguns minutos, se despedem e vão viver suas vidas. São apenas latinos extrovertidos, carentes e curiosos. Os outros quinze são jineteiros.
Grosso modo, existem os jineteiros comerciais e os sexuais: os querem vender produtos e os que vendem um corpo alheio. Quando são incompetentes ou desesperados já vão logo se oferecendo: ¿Cohiba legítimo? ¿trocar dólares? ¿uma cubana caliente?
(Não sei quem cai no papo desses caras. Teria que ser muito burro. O governo, por exemplo, só permite que saiam do país até 23 charutos sem certificado de comprovação. Para mais que isso, você precisa ter um documento oficial de uma loja autorizada. Senão, o pessoal da alfândega vai fumar todos os seus habanos.)
Os jineteiros diretos são os menos problemáticos. Vendedor de rua querendo engrupir turista existe no mundo inteiro. Nem tomam muito do seu tempo. Você diz não umas cinco vezes (sim, são insistentes) e eles já vão embora: afinal, tem muitos outros patos na rua.
Os bons jineteiros não pedem nada na hora. Não querem lhe colocar na defensiva. Batem papo, contam da sua vida, trocam telefone, marcam de se encontrar outro dia. Talvez se ofereçam pra lhe levar a um bom restaurante que só cubanos conhecem, a algum lugar turístico interessante fora dos guias, a um show de música cubana, a um lugar onde você pode comprar charutos a preço de fábrica, a uma casa particular mais barata do que a sua. Naturalmente, se você quiser lhes pagar um almoço no tal restaurante, ou o ingresso para o show, ou lhes dar um charuto, claro que não vão recusar a generosidade de um turista tão simpático.
O primeiro truque é o da comissão. Sempre que um cubano lhe leva a algum lugar, ele ganha algum. É a regra. Até aí, tudo bem. Acontece no mundo todo. O problema em Cuba é que a comissão não sai do bolso do estabelecimento, mas do turista. Quando você entra no restaurante com o simpático cubano que o recomendou, sua conta fica automaticamente 50% mais cara.
Em breve, entretanto, começam as histórias tristes. Não é fácil encontrar remédios em Cuba, por isso recomenda-se aos turistas que tragam tudo o que possam precisar. Eu gastei uns duzentos reais na farmácia antes de vir pra cá. Sabendo disso, os jineteiros inventam histórias sob medida: ah, você nem sabe, estou preocupado, minha avó está muito gripada, coitadinha, mas a farmácia do governo não tinha remédio pra gripe, não sei mais o que eu faço, meu deus... E o pobre turista, comovido pelas dificuldades do heróico povo cubano, lhe chama para ir ao seu hotel e lhe dá todo seu estoque de Naldecon, prontamente revendido por uma fortuna no mercado negro.
Tem também o que eu chamo de pedido póstumo: o sujeito olha pra baixo, quase corando de vergonha, com uma expressão torturada que parece dizer ¡coitado de mim por ter que pedir isso! e balbucia: ¿me deixa esses sapatos quando for embora?; adoraria essas suas havaianas como lembrança dos nossos dias juntos; essa sua bolsa salvaria minha vida na escola, ¿poderia deixar ela comigo?; puxa, aqui em Cuba não se encontra um cortador de charuto como o seu, etc. Não querem nada agora, ¡imagina!, mas se não for fazer falta... Afinal, na sua terra, lugar de riqueza e fartura, com certeza você pode comprar outro baratinho, até melhor, e eu ficaria com essa recordação tão linda da nossa amizade... Enquanto isso, uma solitária lágrima escorre por suas faces, brilhando sob o sol.
Se eu não fosse um cínico empedernido, cortaria meu coração. Nessas horas, eu sempre me lembro do que dizia minha santa avozinha: confie em todos, mas corte o baralho.
Um Dilema Cubano
Naturalmente, a situação nunca é assim preto-e-branca.
Afinal, os cubanos realmente têm pouco acesso a bens de consumo como bolsas, sapatos, havaianas, etc. Se você fez um amigo aqui e pode deixar suas havaianas com ele, ¿por que simplesmente não comprar outras por sete reais no Brasil? Os cubanos realmente ficam doentes e sofrem de uma maciça falta de remédios. ¿O que custa dar um anti-histamínico pro seu amigo cubano?
Minha amiga Isabel passou três meses em Cuba, durante a filmagem de "Estorvo". Me recomendou que não trouxesse nada que não pudesse deixar pra trás. Annie, no seu último dia de Cuba, passou na casa de uma amiga e deixou todo seu guarda-roupa. Voltou pra Nova Orleans literalmente com a roupa do corpo.
Para um estrangeiro em Cuba, talvez o maior dilema seja justamente esse: ¿como distinguir o jineteiro que lhe vê como uma fonte em potencial de aspirina para vender no mercado negro do cubano que ficou seu amigo e está precisando de algo pra aliviar a dor da sua avozinha?
Dionisio, Um Chileno Malandro (Texto Completo)
Dionisio, um chileno estudando música aqui em Cuba, fica profundamente irritado com as abordagens na rua, com as perguntas pessoais incessantes, com as ofertas não-solicitadas. Se sente atacado, invadido, explorado. Não dá papo. Sai andando. Às vezes, se vira e pergunta, já de punho em riste: ¿Te conheço? ¿Com que direito me pergunta essas coisas?
Ele tinha reserva em uma casa particular, mas, quando chegou, estava alugada. O solícito dono da casa pediu mil desculpas e lhe recomendou outra. Na segunda casa, Dionisio pagava 15 pesos conversíveis por dia (15 CUC = R$ 36): dez para a anfitriã e cinco de comissão para o dono da primeira casa. Ao longo dos dois meses em que Dionisio ficou em Havana, o cubano ganhou uma pequena fortuna (300 CUC = R$ 720, 36 vezes o salário mínimo) em recompensa pela falta de consideração de ter reserva com uma pessoa e alugar pra outra. Naturalmente, Dionisio só foi saber disso ao final da sua estadia, mas qualquer guia vagabundo sobre Cuba avisa sobre esse esquema já na primeira página.
Dionisio é uma figura típica. O homem se acha muito malandro e esperto ("street-wise" e "street-smart", diz ele), reclama sem parar que todos em Cuba são exploradores e jineteiros (pô, colega, se não gostou de nada e não se sente bem, faça o que os cubanos não podem fazer e ¡vá embora!), não se abre a novas amizades e não dá papo a nenhum cubano (claro, ¡pois todos querem fazê-lo de otário!), reage agressivamente aos jineteiros que lhe oferecem charutos na rua (quando bastava dizer "não" e ¡pronto!) mas, no fim das contas, perdeu 300 CUC em um esquema que já era velho quando Lot hospedou Abraão em Sodoma.
Eu até entendo a agressividade de Dionisio. É exasperante saber que uma parte da população nos vê somente como máquinas de extrair dólares. No começo, eu também não dava papo para os malucos que me abordavam na rua. Agora, tento explicar ao Dionisio que ele está perdendo uma parte importante da sua experiência cubana.
Annie me ensinou a ser mais aberto: se confio na minha capacidade de dizer "não", posso dar papo pra qualquer um. Respondo a todas as perguntas, bato papo, pergunto sobre suas vidas, sento com eles nos parques ou no Malecón - a muralha à beira-mar que protege Havana das ondas dos furacões. E, quando pedem algo que eu não posso ou não quero dar, basta dizer "não". Pronto. Ninguém precisa fechar a cara e ser grosso para não ser roubado. Annie foi muito mais assediada que ele, por ser mulher, loira, branca e gringa; nunca disse uma palavra rude a nenhum dos cubanos que tentaram exaustivamente explorá-la, e não caiu em um único golpe.
Em Cuba, pelo menos, a violência contra o turista praticamente inexiste. Existem pedidos e pedidos: se sou abordado em uma ruela escura do French Quarter ou de Copacabana por um sujeito mal-encarado que me pede vinte pratas, eu dou. Não tem nem conversa.
Os cubanos pedem, mas não há nenhuma ameaça implícita. Dionisio não entende essa enorme diferença.
Sede de Informação
Todos os jornais são editados pelo governo: o maior, o "Granma", é o informativo oficial do comitê central do Partido Comunista, oito pagininhas diárias em formato tablóide que todo mundo lê. Deixa eu contar uma coisa que vocês vão achar que é mentira, mas vá lá. Em Cuba, falta tudo; quando tem, é racionado; pra comprar além da sua quota, é caríssimo - inclusive papel higiênico. Já o "Granma", subsidiado pelo governo, é diário e baratíssimo (0,20 MN = R$ 0,02). Então - vocês já entenderam, ¿né? - os cubanos, literalmente, sério mesmo, não estou zoando, compram o "Granma" pra limpar o cu. Na foto ao lado, o banheiro da casa do meu amigo Cándido: o jornal pregado na parede não é o "Granma", mas seu irmão caçula, o "Juventud Rebelde".
A linha editorial do Granma, e da imprensa cubana de modo geral, está candidamente descrita nesse trecho do verbete "Periodismo" do Dicionário de La Literatura Cubana:
"El triunfo de La Revolución no sólo determinó la desaparición paulatina de los órganos de expresión de la burguesía, sino significó la irrupción de nuevas formas de encarar las tareas periodísticas y, por ende, eliminó de la prensa revolucionaria - expresión de los intereses de la clase proletaria en el poder - los falsos, insidiosos y desinformadores comentarios de las agencias de prensa del mundo capitalista, así como las crónicas rojas y sociales, los artículos y comentarios insulsos, las abundantes páginas destinadas a anuncios clasificados y comerciales, típicos de la sociedad de consumo y, lo que es más importante, el anticomunismo y las falacias de la llamada "libertad de expresión", proclamada como una de las bases de la democracia representativa. A la vez, la Revolución facilitó el surgimiento de una nueva tónica en la información, que ahora se basa en las cuestiones de más interés para nuestro pueblo, en las cuestiones que reflejen los avances y logros en los diversos campos del quehacer revolucionario: la defensa, la producción, la educación, los deportes, la cultura, las artes y todo tipo de nuevas tareas que la construcción del socialismo reclama de las masas trabajadoras. La difusión de las actividades del Partido - como guía del camino a seguir -, de la lucha ideológica, de las ideas marxistas-leninistas, así como la contribución al rescate de nuestros valores nacionales en las diversas esferas y la divulgación de los éxitos alcanzados por nuestra Revolución, tanto interna cuanto externamente, han sido también logros fundamentales de la prensa en el período revolucionario" (II, 774)
(...) Talvez vocês não tenham percebido a enorme ironia da situação. Se Cuba tivesse um povo largamente ignorante e semi-alfabetizado (como o brasileiro, por exemplo), pode até ser que engolissem tudo o que o governo diz. Entretanto, esse mesmo governo educou brilhantemente sua população no método científico, no materialismo dialético e no pensamento crítico. Ou seja, a prova de que a educação estatal funciona é justamente o fato de a população não acreditar na imprensa estatal.