Há quase três anos esse repórter vem acompanhando, profissionalmente ou em caráter pessoal, a vida de algumas famílias miseráveis em Pernambuco. Elas vivem em um lugar imundo chamado Suvaco da Cobra, em Jaboatão dos Guararapes, periferia de Recife.
São famílias numerosas que sobrevivem, basicamente, do dinheiro e de recursos do governo. Recebem o Bolsa Família, usam o posto de saúde local e têm filhos na escola pública da região. A renda extra vem de bicos. Ninguém tem emprego formal ou fixo.
Durante as férias, há poucos dias, voltei ao Suvaco da Cobra. Entre a última visita, há mais de um ano, e agora, algumas coisas mudaram. Infelizmente, parece que para pior.

A família de Sueli Dumont (centro), beneficiária do Bolsa Família, aumentou depois que duas de suas filhas ficaram grávidas sem querer
Uma das famílias é uma espécie de matriarcado. Oito filhos, dois netos e um marido vivem em torno de Sueli Maria Dumont, 36. Há um ano, o clã Dumont era menor.
Priscila, de apenas 15 anos, ainda não era mãe e o pequeno Raul (com duas semanas de vida) não existia. Kássia, de 17, também não tinha um bebê, hoje com dois meses.
No ano passado, antes de Kássia e Priscila virarem mães (os "maridos" têm 17 e 18 anos, respectivamente), as duas faziam cursos de cabeleireira no programa Agente Jovem, do governo federal. Quando terminaram, não arrumaram trabalho. Nesta última visita à casa delas, passaram a tarde fazendo as unhas uma da outra enquanto dona Sueli mimava o pequeno Raul.
Em coluna anterior, foi comentado aqui que 4,1% das mulheres em idade fértil no Brasil ainda têm níveis de fecundidade acima de cinco filhos. Em termos absolutos, 2 milhões de mulheres. E que o Norte e Nordeste concentram as maiores taxas de fecundidade.
O incrível é que a nova geração da família Dumont, beneficiária de um programa social como o Bolsa Família, criado justamente para atenuar a miséria e dar alguma perspectiva, esteja percorrendo o mesmo caminho dos pais. Fica evidente que só dinheiro (depois revertido em votos) não está dando conta.
Em tempo: o governo acaba de lançar com certo barulho um plano de controle familiar que inclui distribuição de milhões de camisinhas, pílulas e vasectomias. Bom. Mas para Kássia e Priscila já ficou um pouco tarde.

Pedro com os filhos Alan, Vanessa e Luan. Os dois meninos já estão na escola, mas não conseguem ler ou escrever adequadamente
Outro exemplo aparente de "gelo sendo enxugado" é a família de Micinéia dos Santos, 38, também beneficiária do Bolsa Família. Ela tem três filhos com o marido, Pedro, 58: Luan, 8 anos e na 3ª série do ensino fundamental; Alan, 7, na 2ª; e a pequena Vanessa, 5.
Na visita de agora, os cinco estavam péssimos, com uma forte virose que já os derrubava há dias, sem condições até de Luan e Alan irem à escola. O pai disse que foi ao posto de saúde, mas que havia tanta gente que não puderam ser atendidos. Ele comprou um analgésico na farmácia e voltou para o barraco úmido onde vivem.
Assim como em outras ocasiões, a reportagem pediu para os dois meninos escreverem alguma coisa em um caderno. Caligrafia e gramática continuam péssimas, como sempre, e os garotos têm uma dificuldade imensa para ler uma palavra simples como "Fernando" em um cartão.

Acima, a caligrafia de Luan e Alan. Eles quiseram escrever: "Meu nome é Luan. Eu estou na 3ª série. Eu moro no Suvaco da Cobra e tenho três amigos na escola" e "Meu nome é Alan. Eu tenho sete anos e estou na segunda série. Eu tenho quatro amigos na escola"
Em uma das visitas à escola local, no período de chuvas, as paredes davam choques por causa de fios desencapados em seu interior. A lousas estavam tão úmidas que o giz simplesmente não produzia riscos. Por todos os lados, goteiras. Total de futuros envolvidos: 2.500 crianças, em três turnos diferentes.
Há quem argumente que tudo isso é melhor do que nada. Que " nunca nesse país"... etc. Que ao menos crianças estão indo à escola incentivadas pelo Bolsa Família e comendo um pouco melhor.
Tudo isso é verdade. Nesse ritmo, porém, ainda vai demorar mais uns 500 anos para esse pessoal sair do mundo pré-histórico em que vivem.

À esquerda, um dos becos imundos da favela Suvaco da Cobra, na periferia de Recife, que tem dezenas de famílias atendidas por programas sociais do governo; à direita, cerca de arame com roupas estendidas no Suvaco da Cobra. No local, chegou a funcionar uma ONG canadense com projetos sociais