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O tropeço do Chile

Enviado: 21 Out 2007, 15:51
por Aranha
19.10.2007

Protestos, greves, má distribuição de renda e inflação mostram que o modelo econômico do país não é tão perfeito quanto parece

Santiago: protestos contra o neoliberalismo Juan Carlos Caceres/Atlas PressPublicidadePor Tatiana GianiniEXAME Uma onda de protestos fez o Chile voltar a um período de turbulência política -- algo que parecia afastado da rotina do país por causa da redemocratização dos anos 90 e do atual período de pujança econômica. Numa das manifestações mais recentes, promovida no final de agosto pela Central Única de Trabalhadores, milhares de pessoas foram às ruas de Santiago e outras cidades para gritar palavras de ordem contra o modelo "neoliberal" do país. No auge da confusão, uma bomba caseira de cerca de 5 quilos explodiu em frente à emissora de TV Canal 13 no exato momento em que o ministro da Fazenda, Andrés Velasco, concedia uma entrevista num dos estúdios da emissora. Ninguém se feriu no atentado, mas, ao final do dia, o saldo foi de 600 presos e 48 policiais e um parlamentar feridos. Antes disso, em maio do ano passado, turbas de estudantes secundaristas já haviam provocado uma grande confusão na capital do país, reivindicando reformas no modelo de ensino e mais investimentos para a melhoria da qualidade do sistema. Na época, foi realizada também uma greve geral que contou com a adesão de 800 000 alunos.

Para boa parte dos chilenos, uma das grandes culpadas pela situação é a presidente Michelle Bachelet. Quando assumiu o governo do Chile, no começo do ano passado, ela representava mais do que a continuidade das políticas liberais bem-sucedidas que fizeram a economia local crescer a uma média de 6% na última década, tornando-se um exemplo admirado dentro e fora da América do Sul. Em seu discurso de campanha, a socialista Bachelet prometia melhorar também a distribuição dos frutos do desenvolvimento acelerado do país entre as camadas mais pobres da população. A economia chilena continua nos eixos e crescendo. Mas, passados 19 meses desde sua posse, a primeira mulher a ocupar o palácio La Moneda tem tido até agora um desempenho frustrante para a maior parte dos eleitores. Isso fica claro nas mais recentes pesquisas de opinião pública, que mostram uma taxa de aprovação de seu governo de apenas 35%, o menor índice registrado desde a posse de Bachelet (nas primeiras semanas do mandato, 52% dos chilenos aplaudiam seu desempenho).


Problemas no horizonte

Apesar do desenvolvimento registrado nos últimos anos, o Chile tem uma das maiores taxas de inflação entre as grandes economias da América do Sul e não conseguiu avançar na distribuição de renda, conforme mostram os quadros

Taxa de inflação em 2007(1)
Uruguai - 8
Chile - 5
Argentina - 5
Colômbia - 4,5
Brasil - 3
Peru - 3
(1) Acumulado até agosto

Evolução do PIB (em %)
2001 - 3,5
2003 - 4
2005 - 5,7
2006 - 4

Índice de Gini (2)
2001 - 0,575
2003 - 0,575
2005 - 0,571
2006 - 0,571
(2) O índice de Gini é a medida mais usada para comparar desigualdades. Ele compreende uma escala de 0 a 1 — o número 0 corresponde à completa igualdade de renda e o 1 corresponde à completa desigualdade

Diferentemente do que os protestos e a avaliação ruim possam sugerir, os fundamentos econômicos do Chile continuam caminhando muito bem. A renda per capita passou de 4 500 dólares nos anos 90 para os atuais 11 300 dólares. Além dos recordes sucessivos no ingresso de investimentos estrangeiros (o volume de recursos quase triplicou entre 2002 e 2006, atingindo a casa dos 8 bilhões de dólares), o país prossegue num bom ritmo de crescimento, com uma previsão de evolução do PIB para 2007 de 5%. No campo das exportações, ocorreu um aumento de 220% no volume de transações nos últimos cinco anos, movimento puxado em boa parte pela alta de preços do minério de cobre, a maior riqueza natural do país. O Chile detém 35% das reservas mundiais do minério e é responsável por 36% da produção global.

A crítica que se faz no momento é que, com tanto dinheiro em caixa, a diminuição da pobreza e a melhoria da distribuição de renda deveriam estar avançando num ritmo mais acelerado. O índice de Gini, que mede a desigualdade social, permanece num patamar praticamente inalterado desde 2001. No Chile de hoje, os 10% mais ricos detêm 47% da renda, enquanto os 10% mais pobres ficam com 1,2%. Como demonstram as pesquisas recentes, a percepção entre a população é que Bachelet não tem conseguido avançar na resolução dessa questão. "O novo governo ainda não se mostrou capaz de atender ao alto nível de expectativa criado com sua vitória nas urnas", afirmou a EXAME Orlando Caputo, diretor do Centro de Estudos sobre Transnacionalização, Economia e Sociedade (Cetes), com sede em Santiago.

As greves, que tinham se tornado eventos raros na história recente do país, estão retornando com força. Em junho, por exemplo, boa parte dos 28 000 trabalhadores terceirizados da estatal Codelco decidiu cruzar os braços. A empresa é a principal produtora de cobre do mundo. Essa paralisação, que durou 36 dias, terminou apenas quando a direção da companhia fechou um acordo comprometendo-se a melhorar os salários e os benefícios dos grevistas. O movimento deixou de saldo para a Codelco um prejuízo estimado em 100 milhões de dólares. "Os operários vêem um país crescendo, as empresas indo bem, e se cansaram de esperar", diz Arturo Martínez, presidente da CUT chilena. A insatisfação atinge também outros setores do mercado de trabalho. Embora a taxa de desemprego na casa dos 8% não seja exatamente uma catástrofe, ela incomoda porque vem se mantendo nesse patamar desde 2000. Para piorar, o índice é praticamente o dobro na faixa de pessoas entre 20 e 24 anos.


A ATUAL TAXA DE INFLAÇÃO DO CHILE também não vem contribuindo muito para a popularidade da presidente Bachelet. Até agosto, o índice acumulado era de 5%, um dos mais altos entre as grandes economias da América do Sul (veja quadro). Nesse caso, porém, a culpa não pode ser colocada integralmente na conta do governo. O inverno rigoroso foi responsável pela quebra das safras de vários produtos que compõem a cesta básica e interferem nos índices de inflação. Em razão disso, o Banco Central elevou a previsão da taxa de carestia para 6,3% em 2007. Mas tudo indica que o problema é sazonal. "Passada a crise atual, a inflação deve recuar para a casa dos 3%", afirma Pablo Correa, analista do Santander Investment.

É muito provável que o Chile tenha sido o país latino-americano que abraçou com mais convicção a privatização de produtos e serviços públicos -- e esse foi um dos fatores que fizeram com que sua economia mostrasse vigor muito antes de outros países do continente. Mas, em meio ao que parece ser um estado de mau humor generalizado, surgem agora críticos atrasados desse modelo. A principal queixa é em relação à qualidade de certos serviços públicos privatizados. O exemplo mais forte é o Transantiago, sistema de transporte coletivo introduzido na capital em fevereiro e que logo se transformou numa enorme dor de cabeça para o governo de Bachelet. As linhas de ônibus foram assumidas por um consórcio de empresas que pioraram o que já era ruim, transformando num caos a vida dos mais de 5 milhões de habitantes da cidade. Foram colocados menos veículos do que o necessário para o atendimento, e os usuários tiveram de recorrer ao metrô, sobrecarregando o sistema. Alguns ajustes foram realizados desde a estréia do Transantiago, mas ele continua operando com defeitos.

No médio e no longo prazos, é a Previdência chilena que tem potencial de se transformar numa grande fonte de problemas. Ela sofreu uma reforma radical no início da década de 80, quando os diversos planos de pensão no país foram substituídos por um sistema em que os trabalhadores depositam mensalmente parte do salário em fundos privados de pensão. Segundo um estudo recente do Banco Mundial, por causa de problemas como o alto índice de informalidade no mercado de trabalho, cerca de 40% da população não tem feito contribuições regulares. Se esse padrão continuar, a previsão é que até 2030 apenas 45% dos trabalhadores afiliados recebam benefícios superiores à pensão mínima estatal. "Corremos o risco de ter gerações de aposentados empobrecidos", afirma Caputo, do Cetes.

Diante dessa bomba-relógio, Bachelet criou um conselho no ano passado para realizar mudanças na Previdência. Elas incluem a ampliação do sistema complementar para socorrer as pessoas que não conseguem acumular saldo mínimo em seu fundo privado de previdência. No campo das políticas de redução das desigualdades sociais, o governo investe numa reforma do sistema educacional, que pode gerar aumento de 15% do orçamento federal dedicado a essa área. Facilitando o acesso a escolas e melhorando o nível geral de ensino, Bachelet e seus auxiliares acreditam que serão criadas as condições para iniciar a redução da distância existente hoje entre os mais pobres e a elite chilena. A presidente vem se empenhando pessoalmente para a aprovação dessas reformas, que devem ser apreciadas pelo Congresso em 2008. "Não fui eleita para buscar o aplauso fácil", diz Bachelet. Seu desafio será promover um novo salto econômico e social, um trabalho dificultado quando se parte de um patamar mais elevado de desenvolvimento e com uma pressão da massa de desvalidos cada vez mais impaciente com a repartição desses dividendos -- como é o caso atual do Chile.


FONTE: Revista Exame

Abraços,