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A revolução russa de 1917 e o povo russo

Enviado: 23 Out 2007, 06:26
por Fernando Silva
"O Globo" 22/10/07

25 de Outubro
Paulo Guedes

Os arquivos da revolução de outubro e do Partido Comunista em Moscou foram abertos aos pesquisadores externos no final dos anos 80.

Orlando Figes, historiador de Cambridge, foi um dos primeiros a vasculhar o material. Sua monumental narrativa, “A tragédia de um povo: A revolução russa 1891-1924” (1996), traz uma descrição com surpreendentes detalhes do episódio da tomada do Palácio de Inverno durante a revolução socialista de 1917.

“Poucos eventos históricos foram tão profundamente distorcidos por mitos quanto os registrados em 25 de outubro de 1917. A imagem popular da insurreição bolchevique como uma luta encarniçada travada por dezenas de milhares e resultando numa profusão de heróis tombados é muito mais conseqüência de ‘Outubro’ — o filme de Eisenstein, brilhante, mas bastante ficcional, produzido para comemorar o décimo aniversário do levante — do que uma passagem real.

A Grande Revolução Socialista de Outubro, rótulo pomposo criado pela mitologia soviética, não passou de um acontecimento em pequena escala, nada mais que um golpe militar, despercebido pela maior parte dos habitantes de Petrogrado.

Teatros, restaurantes e bondes funcionaram normalmente enquanto os bolcheviques tomavam o poder.” “Antes mesmo do início do assalto, na lendária conquista do Palácio de Inverno, a maioria das forças encarregadas da defesa já voltara para casa, faminta e abatida, pois o estoque de alimentos não daria para o jantar de todos os soldados.

Ao longo de toda a ocorrência, o único perigo concreto à residência imperial foi uma vidraça estilhaçada no terceiro andar.” “As poucas fotografias dos dias de outubro disponíveis mostram também quão diminuta era a força insurgente atravessando áreas semidesertas.

Não há imagens associadas a revoluções populares: massas nas ruas, barricadas e trocas de tiros.” “E como agiu a massa durante o levante? Ao assumir o controle do Palácio de Inverno, os bolcheviques descobriram sua colossal adega de vinho. Dezenas de milhares de garrafas antiqüíssimas então sumiram.

Proletários e soldados vermelhos serviram-se de Chateau D’Yquem 1847, a última safra a merecer o endosso do czar, desprezando as garrafas de vodca, que eram então distribuídas à multidão que ficara do lado de fora do palácio.

Tontas de álcool, as massas dedicaram-se à pilhagem e à destruição do Palácio de Inverno.” “Em vão, os bolcheviques tentaram conter a anarquia interditando o suprimento de bebidas e nomeando um comissário encarregado da segurança do Palácio de Inverno.

O nomeado prosseguia se embebedando durante o expediente. Colocaram então guardas na porta da adega, mas estes decidiram promover a venda dos cobiçados produtos, bombeando o líquido até a rua.

Ávidos, os compradores não tinham paciência para encher vasilhas e bebiam diretamente da mangueira.” “Centenas de bêbados acabaram atrás das grades. As detenções encerraram-se quando não havia mais espaço físico para abrigar tantos infratores. A balbúrdia prosseguiu por semanas, até que no fim do ano o álcool acabou e a capital acordou com a maior ressaca da História.”

Enviado: 23 Out 2007, 11:05
por Acauan
Acauan, em 24/08/2007 às 17:52, no tópico Propaganda Subliminar, escreveu:
salgueiro escreveu:Acauan, vc vê algum indício que o povo brasileiro tenha alguma "vocação" para o comunismo ?


Povo nenhum do mundo jamais teve vocação para o comunismo, Sal.
As "revoluções populares" são mitos criados pela esquerda.
A Revolução Bolchevique foi um golpe de estado militar conduzido habilmente por intelectuais marxistas e todas as outras ditaduras comunistas foram instaladas por processos semelhantes.

O problema é que depois que os revolucionários assumem o controle do estado e o poder do armado, de nada importa as vocações do povo quando quem manda nos gatilhos não pensa duas vezes em mandar atirar.


Acauan, em 13/02/2007 às 16:21, no tópico Socialismo e nazismo, escreveu:Também é um exagero dizer que o bolchevismo contava com o apoio de grande parte da massa trabalhadora, já que o elemento decisivo para o sucesso da revolução não foi o apoio popular, mas o apoio militar, vindo da soldadesca frustrada com as agruras da guerra e convencida pelos doutrinadores leninistas de que derrubar o regime e instalar o socialismo era o caminho.
Regime este que não era mais o czarismo, lembre-se, pois este já tinha cedido o poder a um parlamento.
Os bolcheviques chegaram ao poder por um golpe militar, que derrubou o parlamento instituído e estabeleceu a ditadura do partido único. O resto é História.

Re.: A revolução russa de 1917 e o povo russo

Enviado: 23 Out 2007, 22:12
por Samael
Daí a necessidade de não se confundir a Revolução Russa com a Revolução Soviética, por mais que a segunda tenha se dado dentro do âmbito da primeira.

Re.: A revolução russa de 1917 e o povo russo

Enviado: 30 Out 2007, 11:20
por Fernando Silva
"O Globo" 29/10/07

25 de outubro - parte 2
Paulo Guedes

"A Rússia da década de 20 permanecia um país em guerra consigo mesmo. A revolução fracassou em eliminar as iniqüidades que a haviam provocado. Ninguém sabe quantos morreram. Qualquer contagem aponta números catastróficos. Considerando somente as baixas da guerra civil, do terror, da fome e das enfermidades, chega-se a algo em torno de dez milhões de vítimas, sem contar os cerca de dois milhões que emigraram. Morrer na Rússia era fácil. Merecer um funeral digno, prerrogativa para poucos. Os serviços fúnebres haviam sido nacionalizados. Para enterrar um ente querido, era necessário enfrentar uma longa lista de exigências burocráticas. Havia também falta de madeira para fazer os caixões.
Cadáveres eram velados em ataúdes alugados, nos quais lia-se a inscrição ‘Favor devolver’, devidamente esvaziados na hora de baixar o corpo à terra.”

O historiador Orlando Figes, de Cambridge, foi um dos primeiros a vasculhar os arquivos da Revolução Russa de 1917, quando estes foram abertos aos pesquisadores no fim dos anos 80. Sua monumental narrativa, “A tragédia de um povo: A revolução russa 1891-1924” (1996), dá uma detalhada descrição do episódio da Grande Fome de 1921-1922.

“O maior de todos os males da época, responsável pelo extermínio de cinco milhões de vidas, foi a Grande Fome de 1921-1922. A fome transformou as pessoas em canibais. Esse foi um fenômeno muito mais comum do que os historiadores admitem. Na Bachkiria e nas estepes em torno de Pugachev e Bzuluk, onde a falta de alimentos era aguda, verificaram-se milhares de casos.” “Um homem condenado após ter devorado várias crianças confessou:

‘Em nossa aldeia, todos comem carne humana, apenas não revelam. Há inúmeras tavernas na vila, e todas servem pratos à base de crianças’. Na cidade de Pugachev, não era recomendável que crianças pequenas andassem pela rua à noite, pois havia bandos de canibais e negociantes que as matavam, para consumo próprio ou para vender a carne num comércio abjeto.”

Esses testemunhos são possivelmente a base factual histórica responsável pelo folclore segundo o qual os comunistas comiam criancinhas. Mas, prossegue Figes, “caçar e matar pessoas para comer era praxe”.

“Na região de Novouzenski, havia também grupos de crianças que assassinavam adultos com o mesmo objetivo.

As mães, desesperadas em dar de comer aos filhos, cortavam pernas e braços dos cadáveres. Roubar cadáveres de cemitérios tornou-se tão comum que, em muitas regiões, guardas armados vigiavam os portões.” “As pessoas se alimentavam dos próprios parentes. Na aldeia de Ivanovka, próxima a Pugachev, uma mulher foi flagrada devorando a carne do marido. A refeição estava sendo dividida com o filho do casal. Quando as autoridades policiais tentaram jogar fora o que ainda havia no prato, ela gritou: ‘Não, ele é nosso sangue, e ninguém tem o direito de levá-lo de nós. Precisamos dele para nos alimentar’.”

Os economistas de boa estirpe sabem que é apavorante a desorganização de um sistema produtivo, uma engrenagem descentralizada responsável pela alimentação de milhões de pessoas.

Re: Re.: A revolução russa de 1917 e o povo russo

Enviado: 30 Out 2007, 12:08
por Acauan
Fernando Silva escreveu:"O Globo" 29/10/07

25 de outubro - parte 2
Paulo Guedes

"A Rússia da década de 20 permanecia um país em guerra consigo mesmo. A revolução fracassou em eliminar as iniqüidades que a haviam provocado. Ninguém sabe quantos morreram. Qualquer contagem aponta números catastróficos. Considerando somente as baixas da guerra civil, do terror, da fome e das enfermidades, chega-se a algo em torno de dez milhões de vítimas, sem contar os cerca de dois milhões que emigraram. Morrer na Rússia era fácil. Merecer um funeral digno, prerrogativa para poucos. Os serviços fúnebres haviam sido nacionalizados. Para enterrar um ente querido, era necessário enfrentar uma longa lista de exigências burocráticas. Havia também falta de madeira para fazer os caixões.
Cadáveres eram velados em ataúdes alugados, nos quais lia-se a inscrição ‘Favor devolver’, devidamente esvaziados na hora de baixar o corpo à terra.”

O historiador Orlando Figes, de Cambridge, foi um dos primeiros a vasculhar os arquivos da Revolução Russa de 1917, quando estes foram abertos aos pesquisadores no fim dos anos 80. Sua monumental narrativa, “A tragédia de um povo: A revolução russa 1891-1924” (1996), dá uma detalhada descrição do episódio da Grande Fome de 1921-1922.

“O maior de todos os males da época, responsável pelo extermínio de cinco milhões de vidas, foi a Grande Fome de 1921-1922. A fome transformou as pessoas em canibais. Esse foi um fenômeno muito mais comum do que os historiadores admitem. Na Bachkiria e nas estepes em torno de Pugachev e Bzuluk, onde a falta de alimentos era aguda, verificaram-se milhares de casos.” “Um homem condenado após ter devorado várias crianças confessou:

‘Em nossa aldeia, todos comem carne humana, apenas não revelam. Há inúmeras tavernas na vila, e todas servem pratos à base de crianças’. Na cidade de Pugachev, não era recomendável que crianças pequenas andassem pela rua à noite, pois havia bandos de canibais e negociantes que as matavam, para consumo próprio ou para vender a carne num comércio abjeto.”

Esses testemunhos são possivelmente a base factual histórica responsável pelo folclore segundo o qual os comunistas comiam criancinhas. Mas, prossegue Figes, “caçar e matar pessoas para comer era praxe”.

“Na região de Novouzenski, havia também grupos de crianças que assassinavam adultos com o mesmo objetivo.

As mães, desesperadas em dar de comer aos filhos, cortavam pernas e braços dos cadáveres. Roubar cadáveres de cemitérios tornou-se tão comum que, em muitas regiões, guardas armados vigiavam os portões.” “As pessoas se alimentavam dos próprios parentes. Na aldeia de Ivanovka, próxima a Pugachev, uma mulher foi flagrada devorando a carne do marido. A refeição estava sendo dividida com o filho do casal. Quando as autoridades policiais tentaram jogar fora o que ainda havia no prato, ela gritou: ‘Não, ele é nosso sangue, e ninguém tem o direito de levá-lo de nós. Precisamos dele para nos alimentar’.”

Os economistas de boa estirpe sabem que é apavorante a desorganização de um sistema produtivo, uma engrenagem descentralizada responsável pela alimentação de milhões de pessoas.


Destaque-se que estes horrores se deram enquanto Lênin ainda era vivo e líder supremo da revolução soviética.

E ainda tem gente com a cara-de-pau de atribuir todos os males do comunismo a um "stalinismo" oportunamente separado da ideologia que o gerou, como se antes da plena ascensão de Stalin em 1929, monstruosidades como as citadas acima já não deixassem mais que claro a natureza assassina do regime, independente de quem fosse o tirano da vez.

Re: Re.: A revolução russa de 1917 e o povo russo

Enviado: 31 Out 2007, 11:41
por Fernando Silva
Acauan escreveu:E ainda tem gente com a cara-de-pau de atribuir todos os males do comunismo a um "stalinismo" oportunamente separado da ideologia que o gerou, como se antes da plena ascensão de Stalin em 1929, monstruosidades como as citadas acima já não deixassem mais que claro a natureza assassina do regime, independente de quem fosse o tirano da vez.

Talvez "stalinismo" possa ser usado para se referir a seu estilo pessoal, não à natureza do regime em si.

Re: Re.: A revolução russa de 1917 e o povo russo

Enviado: 31 Out 2007, 12:37
por Acauan
Pegou o ponto.
Stalinismo de fato "pode ser usado" para se referir a isto ou aquilo, como disse, o que apenas traduz a estratégia retórica de dotar o termo do significado utilitário mais interessante para a causa defendida, notória habilidade do discurso de esquerda.

Saindo da retórica para o fato, seja lá o que for que se chame de stalinismo, o fato é que tal sempre será uma conseqüência do regime comunista e nunca algo desvinculado dele.
Tese facilmente provável pelo número de regimes comunistas que produziram seus próprios Stalins, mesmo após a morte do original.


Re.: A revolução russa de 1917 e o povo russo

Enviado: 06 Nov 2007, 11:13
por Fernando Silva
"O Globo" 05/11/07

25 de outubro - parte 3
Paulo Guedes

No livro “A tragédia de um povo” (1996), o historiador Orlando Figes questiona a “versão histórica elitista de revolução russa, típica do período da Guerra Fria, na qual o povo aparecia como objeto passivo das maquinações bolcheviques”. Ao contrário, seu livro avança a proposição de que “o fracasso da democracia na Rússia decorreu de profundas raízes culturais, políticas, sociais e históricas de seu povo”.

“Uma rica e abrangente literatura revelada por arquivos recém-abertos descreve um retrato muito mais complexo da revolução, não como uma marcha de ideologias abstratas, mas uma história em grande dimensão de pessoas que abraçam elevados ideais e acabam chegando a resultados muito diferentes.”

“Um dos legados mais tristes da revolução foi a imensa população de órfãos que perambulava pelas ruas das cidades. Em 1922, havia algo próximo a 7 milhões de meninos e meninas abandonados e dormindo nas estações ferroviárias, sob marquises, em montes de lixo, porões, esgotos e outros locais sórdidos.

Esses infantes maltrapilhos e descalços, órfãos ou abandonados pelos pais, simbolizavam o colapso social da Rússia. As famílias estavam destruídas. Os órfãos da revolução eram viciados em álcool, heroína e cocaína. Para comer, esmolavam, faziam pequenos serviços, roubavam ou se prostituíam.

Por uns trocados, dispunham-se a tudo. Bandos de meninos furtavam artigos dos mercados, assaltavam passantes, esvaziavam os bolsos dos desavisados, invadiam lojas e residências.” “Quase todos os órfãos se prostituíam. Um levantamento de 1920 constatou que 88% das meninas já tinham vendido o corpo em pelo menos uma ocasião.

Algumas delas tinham 7 anos. A maioria dos atos sexuais ocorria nas ruas, áreas de comércio, dependências da estrada de ferro e parques. As meninas tinham cafetões, em geral adolescentes, que as usavam para roubar clientes. Havia bordéis para pedófilos, mantidos pelas chamadas ‘tias’, que, em troca de comida e um canto para dormir, abrigavam os meninos e meninas oferecidos aos clientes.

Para milhões de crianças, aquilo era o que conheciam de mais parecido com cuidados maternais. Milhares de crianças com menos de 14 anos, idade a partir da qual já costumavam ser responsabilizadas criminalmente, viviam nos cárceres e nos campos de trabalho. Além disso, as fábricas utilizavam mão-de-obra infantil, registrando-se imenso crescimento de proletários infantis com até 6 anos de idade.

Apesar dos clamores generalizados em prol da carga máxima de 6 horas para os trabalhadores mirins, o governo soviético preferiu não intervir, alegando ‘ser melhor que trabalhem, em vez de perambular pelas ruas adestrando-se no crime’.”