Revolução Russa
Totalitarismo, genocídio e polícia secreta
Doze anos mais tarde, ao alcançar o ápice do governo soviético, [Lenin] não mais se limitou às recomendações: passou a dar ordens. Semion Aralov, o chefe da seção de intervenções especiais do comissariado do povo para a Defesa, contou, mais tarde, que recebera do Guia a ordem para enviar terroristas à retaguarda das divisões do Exército Branco para envenenar, com substâncias altamente tóxicas, os produtos alimentares utilizados pela população civil. Eis alguns telegramas endereçados às autoridades de diferentes cidades. A Nijni Novgorod: “Passar imediatamente ao terror de massa, fuzilar os ex-oficiais e algumas centenas de prostitutas que embriagam os soldados!”; a Saratov: “Fuzilar os conjurados e os indecisos, sem pedir conselho a ninguém e sem hesitações idiotas”; a Baku: “Queimar a cidade inteira, exterminar sem piedade todos os resistentes.” Aos chefes do Exército Vermelho no Cáucaso, Lenin enviou a seguinte mensagem: “Só temos que degolar todo mundo.” E a um desses chefes, Mikhail Frunze, Lenin determinou: “Exterminar, sem exceção, todos os cossacos.” A Félix Dzerjinski, que lhe perguntava o que deveria fazer com um milhão de prisioneiros cossacos, Lenin respondeu: “Fuzilar até o último remanescente.”
Essa carta de carrasco demente, datada de 19 de dezembro de 1919, pode ser a justo título considerada histórica, por sua crueldade excepcional, mesmo para Lenin. Sua correspondência anterior ao mesmo Dzerjinski, de 1º de maio de 1919, não é nada mais amena: “Prender os popes como contra-revolucionários e sabotadores e fuzilá-los, onde quer que estejam, sem piedade. E em maior número possível.” Citemos também a carta do dia 11 de agosto de 1918 aos bolcheviques de Penza: “Enforcar (sim, enforcar mesmo!) uma centena de camponeses abastados, diante do povo, que deve assistir ao suplício. Encontrar soldados robustos para a execução.”
Não havia somente execuções públicas. Lenin preconizava “enforcar, fuzilar e afogar em segredo para semear o terror”, e isto, em toda parte, propondo pagar a cada vez cem mil rublos aos assassinos, cujos nomes deviam permanecer em segredo. Na época, não era uma soma enorme, mas ela pode ser considerada o primeiro Prêmio Lenin, instituído em vida pelo Guia do proletariado e dado sob suas ordens. Eis algumas outras recomendações do grande humanista, tiradas de sua correspondência com outros chefes bolcheviques: “Não se deter diante de nada, nem do terror, no ataque contra a burguesia”; “Liderar uma luta terrorista impiedosa contra o conjunto da escória burguesa”; “Enforcar sem piedade em cordas fétidas todos aqueles que entravarem o caminho da classe operária”; “Nada de agir com cautela, não somos fracotes: fuzilar alguns milhares de crápulas. Isso servirá de lição a nossos inimigos.” “Nossos inimigos” eram, de fato, dezenas de milhões de cidadãos do antigo império russo, e aqueles que os enforcavam em “cordas fétidas”, um punhado de terroristas, que haviam tomado o poder e instaurado um regime de ocupação dos mais cruéis na história do país.
[…]
Uma vez no Kremlin, os bolcheviques passaram imediatamente ao terror de massa, esquecendo as primeiras declarações de Lenin a esse respeito. Legitimaram as execuções de reféns e enviaram mulheres e crianças ao combate na vanguarda de suas tropas. Este procedimento foi extensamente utilizado, no outono de 1919, contra o general Nikolai Iudenich, que marchava sobre Petrogrado. Os enviados de Lenin lançaram-se em massacres de massa contra populações civis que não lutavam do lado de ninguém. Na Ucrânia, ainda por ordem de Lenin, uma bolchevique fanática, Evguenia Bosch, se encarregou desse tipo de ação e foi, posteriormente, acusada por Lenin de pôr em prática um “lamentável humanismo de intelectual”, por ter matado muito pouca gente.
VAKSBERG, Arkadi. O laboratório dos venenos: A indústria do assassinato político na Rússia de Lenin a Putin. Tradução de Márcia Atália Pietroluongo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p. 16-19.
Tinta vermelha
1. No interior da fortaleza
Na boca do rio Neva, no lado diretamente oposto ao Palácio de Inverno, situa-se a Fortaleza de Pedro e Paulo. Erguida em 1703 por Pedro, o Grande, como bastião contra a esquadra sueca, foi a primeira construção de São Petersburgo, e durante vastos anos funcionou como capital do vasto império czarista. Uma vez edificado o resto da cidade – sobre os ossos dos servos que morreram nas obras – a pequenina ilha-fortaleza deixou de ser sede do governo imperial, mas continuou a simbolizar seu extraordinário poder. As tumbas dos czares foram mantidas na catedral da fortaleza, cujo pináculo dourado levantava-se como uma agulha sobre o centro da capital. E no interior das espessas paredes de pedra e sob as oito torres da fortaleza escondia-se a mais infame de todas as prisões políticas do regime. A lista de encarcerados era uma relação honorífica dos movimentos radicais e revolucionários russos: Radishchev; os dezembristas; os Petrashevtsy; Kropotkin; Chernyshevsky; Bakunin, Tkachev; Nechaev; populistas e marxistas; operários e estudantes – todos sofreram naquelas celas úmidas e sombrias. Em dois séculos como cadeia, nem um só preso escapou da fortaleza, embora muitos encontrassem uma forma diferente de libertação, pelo suicídio ou pela insanidade.
Essa ‘Bastilha russa’ não guardava apenas subversivos perigosos; era também um cativeiro da imaginação popular. Canções e baladas folclóricas representavam a fortaleza como um inferno vivo. Abundavam lendas de como prisioneiros eram submetidos a torturas, de como enlanguesciam em masmorras escuras e tomadas por bichos asquerosos, ou de como enlouqueciam em meio ao silêncio mantidos em celas tão ínfimas que não conseguiam ficar de pé nem deitar, sendo obrigados a se curvar como se fossem bolas; após certo tempo, seus corpos ficavam curvados e deformados. Havia histórias de execuções secretas, de prisioneiros forçados a cavar os próprios túmulos no rio congelado, à noite, antes de serem afogados nas águas glaciais. Na mente da gente comum, a fortaleza tornara-se um símbolo monstruoso do despotismo sob o qual viviam, um símbolo de seus medos e da falta de liberdade, e o fato de estar localizada no meio de São Petersburgo, de situar-se num local onde as pessoas passavam todos os dias, apenas fazia com que seus horrores secretos parecessem ainda mais medonhos.
Na verdade, as condições da prisão não eram tão ruins quanto cria o povo. Comparadas com as condições com que tiranias do século XX trataram suas vitimas, a fortaleza era como um hotel confortável. A maioria dos presos tinha acesso a comida e a tabaco, a livros e papel para escrever, e podia receber cartas de parentes. O bolchevique Nikolai Bauman teve, inclusive, permissão para ler O Capital, de Marx, durante sua estada na prisão. Vários clássicos da literatura russa foram escritos no silencio daquelas celas, entre eles O Pequeno Herói, de Dostoievski, a peça Os Filhos do Sol, de Gorki, e o romance Que Fazer?, de Chernyshevsky, que tornou-se um texto profícuo do movimento revolucionário(1). A imagem pública da fortaleza – a de que era abarrotada de prisioneiros, a ponto de quase explodir, com dezenas de milhares de homens enclausurados a longo tempo – não podia ser mais distante da verdade. Nunca houve mais de cem encarcerados ao mesmo tempo e, depois de 1908, nunca mais de trinta. Poucos passaram mais de um mês na fortaleza, antes de serem transferidos para cadeias de província. Em fevereiro de 1917, quando o local foi finalmente tomado pela multidão, o anticlímax da realidade foi a soltura de apenas dezenove presos (todos soldados amotinados aprisionados há alguns dias). Mas isso não interferiu nas expectativas místicas dos revolucionários. O evento foi retratado como o triunfo da Liberdade sobre o Despotismo.
A reinvenção da fortaleza foi um aspecto vital da demonologia revolucionária. Se o regime czarista devia ser representado como cruel e opressor, furtivo e arbitrário em seus poderes penais, então a fortaleza era um símbolo perfeito desses pecados. Durante a segunda metade do século XIX, exatamente quando o tratamento dos presos tornou-se mais benevolente, a vida dentro das muralhas de Pedro e Paulo foi descrita em textos de ex-internos com horror exagerado. Houve um furor de memórias góticas carcerárias ao longo das duas últimas décadas do czarismo, e essas histórias alimentavam o apetite popular por mártires revolucionários. Como disse Gorki, ao ser questionado por que recusara-se a acrescentar suas lembranças à pilha já existente: “Todo russo que alguma vez já sentou numa cela, mesmo que só por um mês, na condição de ‘preso político’, ou que passou um ano no exílio, considera dever sagrado legar ao país as recordações do quanto sofreu”.
Para os críticos do czarismo, a Fortaleza de Pedro e Paulo era um microcosmo do regime. A Rússia, observou o marquês de Custine após visitar a prisão na década de 1830, “é em si mesma uma cadeia, uma cadeia cujas dimensões enormes apenas a torna mais formidável”. A estrutura básica do Estado policial czarista fora formada sob Nicolau I após o levante dezembrista de 1825, quando um grupelho de nobres liberais conspirou – como colocou Puchkin, “entre o vinho tinto e o champanhe” – para, aproveitando-se da morte de Alexandre I, impor uma constituição à monarquia. Nicolau introduziu leis avassaladoras para abafar dissidências: entre elas, um novo código de censura (1826), que fez da Rússia o único país europeu da época no qual todos os textos passavam pelo crivo do Estado antes de serem publicados. A Terceira Seção, ou policia secreta, criada no mesmo ano, tinha o poder de deter e de mandar para exílio administrativo na Sibéria qualquer um suspeito de ‘crime político’. E essa também era uma sanção inexistente no resto da Europa. Além do mais, nenhum outro país do mundo tinha dois tipos de policia – uma para proteger os interesses do Estado, outra para proteger o povo.
Mas foi só no fim século XIX, com a chegada do telégrafo e da telefonia, que a engrenagem do Estado policial tornou-se realmente eficiente. A Okhrana, que em 1881 assumiu as funções da Terceira Seção, travou o que pode ser descrito como uma guerra secreta, usando prerrogativas especiais, não previstas em lei, para combater os revolucionários. Tinha milhares de agentes e informantes, muito deles fazendo-se passar por simpatizantes do movimento revolucionário, que infiltravam-se em fábricas, universidades, tropas e instituições burocráticas. Porteiros faziam relatórios diários para a policia. Centenas de funcionários eram lotados numa repartição ultra-secreta, encarregada de vasculhar correspondência interceptada. “Toda São Petersburgo sabe que suas cartas são lidas pela polícia”, queixou-se a condessa Vorontsova a Nicolau II. Havia uma quantidade enorme de atividades que mesmo os cidadãos mais bem-nascidos só poderiam exercer se obtivessem permissão oficial: realizar um concerto, abrir uma loja ou consultar obras de Darwin. De fato, da perspectiva do individuo, poder-se-ia estabelecer da seguinte forma a maior diferença entre a Europa Ocidental e a Rússia: na primeira, os cidadãos eram livres para agir como quisessem, contanto que suas atividades não fossem especificamente proibidas pelo Estado; já na segunda, fosse sob o czarismo ou sob o comunismo, o povo não tinha liberdade para nada, a menos que o Estado desse permissão expressa para iniciativas mínimas. Nenhum súdito do czar, independente de posto ou classe social, podia dormir com tranqüilidade, seguro de que sua casa não sofreria uma busca noturna, na qual ele próprio poderia ser preso.
Essa batalha constante com a repreensão oficial engendrou um tipo peculiar de mentalidade entre os seus adversários. Pode-se traçar uma linha reta ligando os rigores penais do regime czarista ao terrorismo dos revolucionários e ao Estado tirânico dos bolcheviques. Como afirmou Flaubert, “dentro de cada revolucionário existe um policial”. Felix Dzerzhinsky (1877-1926), fundador da Cheka, foi um caso clássico. Até 1917, consumira a melhor parte de sua vida adulta em prisões e no exílio, com passagem de três anos pela cadeia de Orel, notória por suas punições sádicas. Lá, como líder de uma greve de fome, foi escolhido para receber punição exemplar (a história diz que seu corpo ficou coberto de cicatrizes). Uma vez aboletado no poder, utilizaria muitos desses métodos de sevícias ao longo do Terror Vermelho. Mas Dzerzhinsky foi somente uma das inúmeras caças transformadas em caçador. Em 1917, a média dos ativistas do Partido bolchevique passara quase quatro anos em prisões imperiais ou exilada; a média dos mencheviques, cerca de cinco anos. A prisão embrutecia os revolucionários, preparava-os para a ‘luta’, proporcionando-lhes motivos pessoais para odiar o velho regime e para buscar vingança contra seus representantes. Kanatchikov, que perdeu sete anos de sua vida encarcerado em celas czaristas, alegou que, para trabalhadores como ele, a prisão funcionava como uma espécie de ‘seleção natural’: “os fracos de espírito abandonaram a revolução e, muitas vezes, a própria vida, mas os fortes e firmes de propósito robusteceram-se ainda mais e armaram-se para batalhas futuras.” Seis anos depois, Kanatchikov soube que um dos juízes que o haviam condenado ao encarceramento, em 1910, fora fuzilado pelos bolcheviques. “Isso me deu grande satisfação”, ele confessou.
Justificar a violência em nome da revolução não era exclusividade dos bolcheviques. Entre a elite instruída havia um culto generalizado à rebeldia. A ‘intelligentsia’ (palavra de origem russa) local era menos uma classe do que um estado de espírito: por definição, significava ser oposição radical e inflexível ao regime czarista e desejar tomar parte da luta por sua derrubada. A trajetória do movimento revolucionário é a trajetória da intelectualidade. A maioria dos líderes bolcheviques eram, antes de tudo, intelectuais. Suas cabeças eram cheias de literatura e história européia, especialmente no tocante aos eventos franceses de 1789 e 1848, “Fomos forjados mais pelos livros do que pela vida real”, registrou Lydia Dan, uma menchevique. E nenhum outro grupo de intelectuais provocou tamanho impacto no mundo do século XX.
Aqueles que se viam como intelligenty (estudantes, escritores, profissionais liberais etc.) tinham um conjunto de normas éticas próprio e partilhavam códigos de vestimenta e linguagem, noções de honra e companheirismo, para não mencionar os salões e cafeterias, clubes e círculos sociais, jornais e outras publicações, que os mantinham à parte do restante da sociedade privilegiada da qual quase todos eram originários. Muitos deles compartilhavam até a aparência física – cabelos longos e despenteados, Barbados e de óculos – características que tornaram-se marca registrada de esquerdistas e revolucionários de todo o mundo(2). O filosofo Nikolai Berdyaev uma vez comparou a intelligentsia russa a uma “ordem monástica” ou “seita religiosa”; e é fato que muito da mentalidade desse grupo tinha similaridades com o cristianismo. Tomemos, por exemplo, a rejeição que nutriam pela ordem existente, consideradas por eles como pecaminosa e corrupta; ou a imagem que tinham de si mesmos, defensores impolutos da ‘causa do povo’; ou a sua crença quase mística na existência da verdade absoluta. A intelectualidade radical tinha veneração religiosa pelo cânone literário da revolução. Ariadna Tyrkova-Williams recorda como, na década de 1880, sua irmã adolescente “assistia às orações da tarde na igreja, levando consigo, às escondidas, um exemplar de versos revolucionários. Enquanto os outros liam a Bíblia, ela clamava por revolta e terror”.
Essa tradição vinha dos dezembristas, cuja execução, em 1826, produzira os primeiros mártires do ‘movimento’. Gerações mais jovens tiravam inspiração romântica do auto-sacrifício daqueles nobres jacobinos. A partir de então – e ali nascia a obsessão por pertencer aos adversários do regime – tornou-se moda que os filhos da fidalguia evitassem ingressar no serviço público, ‘por questão de principio’. Como explicou Chicherin, era uma traição moral deixar-se ser usado “como instrumento direto de um governo que reprimia, sem misericórdia, todo pensamento e todas as luzes”. A oposição empedernida ao Estado imperial a todos os seus burocratas, por mais humildes que fossem, era uma questão de honra. Consideremos a história de Anatolii Dubois, estudante da Universidade de São Petersburgo que, em 1902, recusou-se (‘por princípios’) a cumprimentar um sargento da polícia. O homem, que registrava o novo endereço do aluno, dera início a uma conversa amistosa e, ao se despedir, estendera a mão direita para ser cortês. O rapaz não retribuiu o gesto. Um relatório policial foi entregue ao reitor e Dubois expulso – acabou juntando-se ao movimento e preso, no ano seguinte. Esse foi um exemplo típico de como agia o Estado repressor imperial, usando de punições estúpidas e forçando uma classe média dissidente aos subterrâneos revolucionários onde desenvolvia-se a tradição terrorista (a história de Lenin é bastante parecida com a de Dubois). Os intelectuais radicais rejeitavam, com grande dose de desdém, qualquer concessão ao ‘regime’; e, segundo eles, apenas a luta por meio da violência levaria a derrocada do czarismo. O liberalismo era acusado de paliativo. A lei era desprezada como ferramenta do Estado: era tida pelas camadas médias como moralmente inferior às normas consuetudinárias camponesas e aos interesses da justiça social – o que justificava o desrespeito às determinações legais. Esse foi o frágil fundamento moral do sentimento revolucionário que tomou conta das mentes das classes intermediárias e intelectuais no final do século XIX. Vera Figner, uma terrorista, mencionou “o culto à bomba e à arma”, no qual “o assassino e o cadafalso têm um fascínio magnético”. Nos círculos da intelligentsia, era considerado de ‘bom-tom’ simpatizar com atos de extrema violência e muitos cidadãos de posses davam quantias vultosas para a causa desses homens e mulheres sanguinários.
É impossível compreender tamanho extremismo sem primeiro avaliar o isolamento cultural da intelectualidade russa. As tendências políticas faziam com que essa pequenina elite estivesse ilhada da Rússia oficial; e sua educação a mantinha afastada da Rússia camponesa. Os dois abismos eram intransponíveis. Mas talvez fosse ainda mais importante o fato de estar apartada do restante do mundo cultural europeu que procurava imitar. Em conseqüência, como demonstrou tão bem Isaiah Berlin, as idéias que importavam do Ocidente (e quase todas as idéias russas eram nascidas além das fronteiras do país) tendiam a se congelar em dogmas abstratos assim que eram incorporadas pela intelectualidade local. Na Europa, idéias novas rivalizavam com doutrinas e atitudes várias, fazendo com que o povo tendesse a um ceticismo saudável diante de alegações de verdades absolutas e tendesse a um ceticismo salutar. Mas na Rússia havia o vácuo cultural: o censor proibia toda expressão política e, assim, idéias contrabandeadas ganhavam status de dogma sagrado, de panacéia para todos os males do mundo, impermeáveis a questionamentos e até mesmo à necessidade de serem testadas pela vida real. Um modismo intelectual europeu após outro disserminar-se-ia por São Petersburgo – hegelianismo na década de 1840, darwinismo duas décadas depois, marxismo em 1890. E a sua vez, cada um desses autores era visto como o detentor da verdade final. Havia algo de bom nessa estranha busca por soluções apocalípticas – como a paixão por grandes idéias que deu a literatura russa do século XIX caráter e força únicos – mas o lado mais sinistro desse idealismo desaguou num didatismo emblemático, num dogmatismo moral, numa intolerância que, a seu próprio modo, eram tão nocivos quanto a censura a que se opunham. Convencidos de que suas verdades eram a chave para o futuro do planeta, que o destino da humanidade dependia do resultado de suas lutas doutrinárias, a intelectualidade russa dividia o mundo em forças do “progresso’ e forças da ‘reação’, amigos e inimigos da causa do povo, não deixando espaço para duvidas entre as duas opções. Ali estavam as origens da visão totalitária. Embora nenhum dos dois teria gostado de admitir, havia muito em comum entre Lenin e Tolstoi.
O sentimento de culpa era a inspiração psicológica da revolução. Quase todos esses intelectuais radicais tinham aguda consciência da riqueza e dos privilégios de que desfrutavam. “Percebemos que nosso conhecimento da verdade universal só poderia ter sido alcançado ao custo do sofrimento ancestral do povo. Éramos devedores do povo e esse débito pesava em nossa consciência.” Escreveu o pensador radical Nikolai Mikhailovsky. Como filhos da nobreza criados em culpa por servos domésticos, muitos deles nutriam uma sensação especial de culpa pois, como assinalou Marc Raeff, esses “pequenos mestres” não raro haviam sido autorizados a tratar suas bábas e tios (cuja função era brincar com eles) com menosprezo cruel(3). Mais tarde, esses fidalgos arrependidos recorreriam à revolução para tentar suas faltas para com ‘o povo’. Eles imaginavam que, se pudessem assegurar a libertação da gente simples, o pecado original – ter nascido na abastança – seria redimido. A literatura russa do século XIX foi dominada pelo tema da penitência do pecado do privilégio. Tomemos o caso do príncipe Levin, em Anna Karenina, de Tolstoi, que trabalha a terra lado a lado com os camponeses e sonha presenteá-los com os lucros da lavoura, de modo a produzir uma “revolução sem sangue”: no lugar da pobreza haveria fatura e felicidade para todos; e em vez de hostilidade, concórdia e uma rede de interesses comuns.
O primeiro passo da reconciliação era mergulhar na vida cotidiana do povo. A curiosidade romântica por cultura folclórica que assolou a Europa no século passado foi exacerbada pela intelligentsia russa. Em 1908, Blok escreveu (e aqui há uma leve pitada de ironia):
a intelligentsia entulha estantes com antologias de canções folclóricas russas, épicos, lendas, encantamentos, endechas, pesquisa a mitologia, ritos de casamento e de funeral; chora pelo povo; vai até o povo; enche-se de esperanças sublimes; cai em desespero; desiste da própria vida, enfrenta execuções e a morte por causa do povo.
Atormentada pela culpa do privilégio, a intelectualidade faz oferendas no altar do povo. Acredita piamente em sua missão de servir ao povo, assim como seus pais fidalgos confiavam que era preciso estar a serviço do Estado. E nessa visão de mundo, o bem do povo é a meta suprema, à qual todos os princípios, como lei ou moral, devem se subordinar. Eis a origem da máxima revolucionária de que quaisquer meios podem ser justificados nos interesses da revolução.
Para muitos desses revolucionários bem-nascidos, a principal atração exercida pela ‘causa’ não estava na satisfação que poderiam experimentar ao ver o povo vivendo em melhores condições. O fascínio residia na busca romântica de uma forma de ‘plenitude’ que poderia garantir significado mais elevado a suas existências e dar fim à alienação que os mantinha alheios ao mundo. Certamente esse era o caso de Mikhail Bakunin, fundador do anarquismo russo, conforme demonstrou, de modo brilhante, seu biógrafo Aileen Kelly. Foi a necessidade pessoal do rico fidalgo Bakunin de “identificar-se com uma entidade coletiva de peso que o levou a sublimar seu ego (que, por sinal, era imenso) na noção abstrata da causa do povo. Em larga medida, a história do movimento revolucionário é a prosopografia dos que nele se envolveram, ligados por algum tipo de afinidade, quer fossem intelectuais nobres ou burgueses à procura da sensação de pertencer a algo maior que si mesmos. Eles imaginavam ter encontrado tal sentimento na atmosfera de clã dos movimentos revolucionários.
Quanto ao compromisso com o povo, tratava-se de uma quimera. Eles amavam o Homem, mas não estavam seguros se gostavam de indivíduos. M.V. Petrashevsky, o teórico utopista, resumiu essa noção ao declarar: “incapaz de encontrar algo em mulheres e homens digno de minha atenção, pus-me a serviço da humanidade”. Nessa abstração idealizada do ‘povo’ perdurava o desprezo esnobe com que os aristrocratas tendiam a considerar os hábitos da gente simples. Como explicar as atitudes autoritárias de revolucionários como Bakunin, Speshnev, Tkachev, Plekhanov e Lenin, se não pelas suas origens fidalgas? Era se como vissem o povo como agentes de suas teorias fantásticas e não como simples indivíduos sofredores com necessidades e ideais próprios e complexos. Ironicamente, os interesses da ‘causa’ às vezes significavam que as condições de vida da gente simples tinham que se deteriorar ainda mais, para assim produzir o cataclismo final. ‘Quanto pior, melhor’, como dizia sempre Chernyshevisky (aludindo ao fato de que, quanto mais crítica fosse a situação, mais vantajoso seria para a revolução). Em 1861, por exemplo, ele defendeu a emancipação dos servos sem garantia correspondente de acesso à terra, argumentando que tal medida resultaria “em catástrofe imediata” (4).
Nesse desprezo pelas condições de vida estavam os germes do autoritarismo para o qual a revolução tinha uma propensão tão trágica. Seus lideres queriam libertar o ‘povo’ segundo suas próprias noções fantasiosas de Verdade e Justiça. Mas se o povo não quisesse ser guiado na direção proposta por eles, ou se mostrasse caótico demais para ser controlado, então os grilhões teriam que ser rompidos à força e à revelia dos interessados.
1. O romance de Chernyshevsky foi publicado quando ele ainda estava preso na Fortaleza de Pedro e Paulo – e logo depois foi banido!
2. O pai de Lydia Dan tinha um modo divertido de zombar desses radicais. Rapazes, ele dizia, não aparam o cabelo sob o pretexto de que não têm tempo para isso; mas as moças mantêm as madeixas curtas sob alegação de que precisam economizar tempo. Mulheres freqüentam a universidade porque esse é um indício de progresso; os homens fogem do sistema educacional porque isso também é ser progressista.
3. Aias camponesas e criados sequer eram chamados pelos nomes, mas por apelidos como Masha ou Vanka. Portanto, lhes era negado o reconhecimento mais básico de sua personalidade.
4. Essa era uma doutrina que seria seguida por Lenin. Durante a fome de 1891, ele se opôs a idéias de campanhas humanitárias alegando que a fome levaria milhões de camponeses destituídos a correr para as cidades e juntar-se às fileiras do proletariado: assim, o movimento revolucionário daria um passo à frente.
FIGES, Orlando, 1959-. A Tragédia de um Povo: a revolução russa 1891-1924. Tradução de Valéria Rodrigues. Rio de Janeiro: Record, 1999. P. 172-180.
http://www.revolucaorussa.org/