Fragmentos de Kundera sobre animais
Enviado: 08 Jan 2006, 08:21
Os fragmentos foram retirados do livro A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, publicado em 1984.
Mais precisamente, se encontram no capítulo de número #2, que vai da página 322 à 326, da sétima e última parte, chamada "O Sorriso de Karenin".
Eles:
"No começo do Gênese, está escrito que Deus criou o homem para que ele reine sobre os pássaros, peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus realmente quisesse que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou sobre a vaca e o cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo fraterno, mesmo durante as guerras mais sangrentas.
"Esse direito nos parece natural porque nós estamos no topo da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro se intrometesse no jogo, por exemplo, um visitante vindo de um outro planeta a quem Deus tivesse dito: 'Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas' para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado a uma carroça por um marciano, eventualmente grelhado num espeto por um habitante da Via Láctea, talvez se lembrasse da costela de vitela que tinha hábito de cortar em seu prato e pediria (tarde demais) desculpas à vaca.
"(...) Deus encarregou o homem de reinar sobre os animas, mas podemos explicar que ele apenas emprestou ao homem esse poder. O homem não era o proprietário mas apenas o gerente do planeta, e um dia teria de prestar contas de sua gestão.
Descartes foi mais longe: fez do homem "maître et propriétaire de la nature". E há com certeza uma lógica profunda no fato de que seja precisamente ele quem nega que os animais tenham alma. O homem é o proprietário e o senhor enquanto o animal, diz Descartes, não passa de um autômato, uma máquina animada, uma "machina animata". Quando um animal geme, não é uma queixa, é apenas o ranger de um mecanismo que funciona mal. Quando a roda de uma charrete range, não quer dizer que a charrete sofra, mas que ela não está lubrificada. Devemos interpretar da mesma maneira as queixas do animal e não lamentar o destino de um cachorro que é dissecado vivo em um laboratório.
"(...) Não existe nenhum mérito em sermos corretos com nossos semelhantes. (...) Nunca se poderá determinar com certeza em que medida nosso relacionamento com o outro é o resultado de nossos sentimentos, de nosso amor ou não-amor, de nossa benevolência ou de nosso ódio, e em que medida ele é determinado de antemão pelas relações de força entre os indivíduos.
"A verdadeira bondade do homem só se pode manifestar com toda a pureza e com toda a liberdade em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, situado num nível tão profundo que escapa a nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais. E foi aí que se produziu a falência fundamental do homem, tão fundamental que dela decorrem todas as outras.
"(...) O mundo deu razão a Descartes.
"(...) Surge para mim uma outra imagem: Nietzsche está saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo e um cocheiro lhe dando chicotadas. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o pescoço sob o olhar do cocheiro e explode em soluços.
"Isso aconteceu em 1889 e Nietzsche já estava, também ele, distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas, para mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão por Descartes. Sua loucura (portanto, seu divórcio da humanidade) começa no instante em que chora pelo cavalo.
"(...) [e] a humanidade, "senhora e proprietária da natureza", prossegue sua marcha adiante."
Mais precisamente, se encontram no capítulo de número #2, que vai da página 322 à 326, da sétima e última parte, chamada "O Sorriso de Karenin".
Eles:
"No começo do Gênese, está escrito que Deus criou o homem para que ele reine sobre os pássaros, peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus realmente quisesse que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou sobre a vaca e o cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo fraterno, mesmo durante as guerras mais sangrentas.
"Esse direito nos parece natural porque nós estamos no topo da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro se intrometesse no jogo, por exemplo, um visitante vindo de um outro planeta a quem Deus tivesse dito: 'Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas' para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado a uma carroça por um marciano, eventualmente grelhado num espeto por um habitante da Via Láctea, talvez se lembrasse da costela de vitela que tinha hábito de cortar em seu prato e pediria (tarde demais) desculpas à vaca.
"(...) Deus encarregou o homem de reinar sobre os animas, mas podemos explicar que ele apenas emprestou ao homem esse poder. O homem não era o proprietário mas apenas o gerente do planeta, e um dia teria de prestar contas de sua gestão.
Descartes foi mais longe: fez do homem "maître et propriétaire de la nature". E há com certeza uma lógica profunda no fato de que seja precisamente ele quem nega que os animais tenham alma. O homem é o proprietário e o senhor enquanto o animal, diz Descartes, não passa de um autômato, uma máquina animada, uma "machina animata". Quando um animal geme, não é uma queixa, é apenas o ranger de um mecanismo que funciona mal. Quando a roda de uma charrete range, não quer dizer que a charrete sofra, mas que ela não está lubrificada. Devemos interpretar da mesma maneira as queixas do animal e não lamentar o destino de um cachorro que é dissecado vivo em um laboratório.
"(...) Não existe nenhum mérito em sermos corretos com nossos semelhantes. (...) Nunca se poderá determinar com certeza em que medida nosso relacionamento com o outro é o resultado de nossos sentimentos, de nosso amor ou não-amor, de nossa benevolência ou de nosso ódio, e em que medida ele é determinado de antemão pelas relações de força entre os indivíduos.
"A verdadeira bondade do homem só se pode manifestar com toda a pureza e com toda a liberdade em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, situado num nível tão profundo que escapa a nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais. E foi aí que se produziu a falência fundamental do homem, tão fundamental que dela decorrem todas as outras.
"(...) O mundo deu razão a Descartes.
"(...) Surge para mim uma outra imagem: Nietzsche está saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo e um cocheiro lhe dando chicotadas. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o pescoço sob o olhar do cocheiro e explode em soluços.
"Isso aconteceu em 1889 e Nietzsche já estava, também ele, distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas, para mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão por Descartes. Sua loucura (portanto, seu divórcio da humanidade) começa no instante em que chora pelo cavalo.
"(...) [e] a humanidade, "senhora e proprietária da natureza", prossegue sua marcha adiante."