O jeitinho cubano de burlar privações na ilha de Fidel
Enviado: 16 Dez 2007, 09:43
Por uma semana, em novembro, um repórter de ZH se hospedou como turista na casa de famílias cubanas na ilha de Fidel Castro. Nas cidades de Havana, Santiago de Cuba e Trinidad - longe dos resorts e praias cristalinas - , recolheu uma mostra do que pensam, do que comem, de quanto ganham, de como se movem e de como sobrevivem os cubanos.Coveiro do belo cemitério Colón, de Havana, Aristides orgulha-se de trabalhar na "maior necrópole da América Latina". São mais de 3 milhões de moradores, diz o senhor de 73 anos.
- Onde ficará Fidel? - pergunto.
- O comandante-em-chefe ainda não decidiu - contesta, deixando claro que a palavra do líder afastado do poder há 16 meses vale muito.
A Havana dos vivos, com seus 2 milhões de moradores é um modelo de distribuição igualitária de pobreza. Raudelina Rodríguez, 70 anos, 70 deles na ilha, hospeda turistas em três quartos puídos mas asseados. Como todo cubano que aluga habitações a estrangeiros, cobra US$ 30 (R$ 54) por noite. Em um país em que um médico especialista embolsa este valor por mês, Raudelina deveria ser invejada. Não é:
- Isso vai para o governo. Só ganho um salário para receber os turistas - explica esta fã da novela brasileira Cabocla, capaz de elogiar Tony Ramos dublado em espanhol.
Frutas, legumes e carne de porco são subsidiados
Cuba é assim, um país de 12 milhões de funcionários públicos. Motoristas de táxi, de ônibus, garçons, médicos, professores e vendedores de coxinha, todos são assalariados do Estado. Recebem uma cesta básica proporcional ao tamanho da família, garantia de que ninguém passará fome. Mas, como o pacote não é suficiente, precisam recorrer a mercados estatais que vendem produtos agrícolas subsidiados - frutas, legumes e carne de porco. Os demais produtos - outros tipos de carne, produtos industrializados e artigos de limpeza, por exemplo - têm preços semelhantes aos do Brasil. Ou seja, estão fora do alcance dos cubanos.
Tamanha crise econômica está desencadeando uma crise ética em Cuba. Não que a criminalidade preocupe - registros de assassinatos e latrocínios são raríssimos. Mas, para ter acesso àquilo que o Estado não dá, entra em cena o "jeitinho cubano".
Para burlar o controle do governo sobre a quilometragem, taxistas instalam por US$ 100 (R$ 180) um aparelho que esconde a real distância percorrida. Para usar a internet na rede estatal de comunicações, o mínimo que um turista paga é US$ 6 por um cartão de uma hora. Quem quer usar meia hora logo é aliciado.
- Coloco minha senha, e você paga US$ 3 diretamente para mim - propõe a funcionária.
Há mercado negro para tudo. Na charutaria mais famosa de Havana, a caixa com 12 unidades custa US$ 200.
- Tenho a mesma por US$ 10 - oferece o amigo de um funcionário a dois passos da porta.
O mesmo ocorre com a gasolina, desviada pelo frentista, com as roupas nas lojas e, sobretudo, com o sabão. O seguinte diálogo, travado entre um cubano e um turista no dia 18 de novembro, repete-se diariamente:
- Do you speak english (você fala inglês)? - aborda o cubano.
- Posso falar espanhol, sou brasileiro - responde o turista.
- Prazer, pode me dar um sabonete?
Produtos de limpeza são artigo de luxo em Cuba. Tanto que as barras ficam em mostruários, separadas por um palmo, etiquetadas, como relógios em uma joalheria brasileira. Não há pilhas de sabão em Cuba. Os mercados estão desabastecidos.
- A culpa é dos homens que rodeiam o comandante. Fidel não sabe o que está ocorrendo entre o povo - avalia Carlos Suárez, 40 anos, professor de Educação Física em Santiago de Cuba.
Suárez ganha US$ 12 por mês, o suficiente para comprar cinco sabonetes, mas nenhuma boneca para a filha Grace, cinco anos. Elogia a saúde e a educação gratuitas, suficientes para colocar o país em 50º lugar entre os de maior índice de desenvolvimento humano (IDH) - o Brasil está em 70º. Mas diz não agüentar o racionamento.
- Em outros países, um pobre explica por que não pode comprar algo. Minha filha daqui a pouco vai perguntar por que as coisas são assim, e não posso dizer a verdade, ou me consideram anti-revolucionário - desabafa.
Deixar a ilha em lancha custa US$ 4 mil
Como a maioria dos cubanos, Suárez traja uma camiseta de marca americana que não se vê nas vitrinas. Presente de um turista. Além dos trambiques, os regalos são uma das fontes de renda alternativas. Mas a principal mesmo é o envio de dinheiro pelos exilados. É normal que famílias financiem a saída de um dos integrantes, que se encarrega de sustentar os parentes. Na última modalidade de imigração, lancheiros cobram US$ 4 mil para percorrer os 140 quilômetros dos EUA até a costa cubana.
Como não quer deixar a filha, Suárez faz bicos de guia turístico, sem que Fidel saiba - a atividade também deveria ser um emprego público. Exatamente como Aristides. Por US$ 3 de "gorjeta", o coveiro de Havana transforma-se em guia e abre o cemitério fora do horário. Conta minuciosamente a lenda de cada lápide e pára, estufando o peito, sobre o exato metro quadrado em que Fidel fica nos funerais.
- Ninguém sabe o que vai acontecer quando ele for o morto. No ritmo que vamos os dois, talvez eu nem esteja aqui para saber.
( rodrigo.cavalheiro@zerohora.com.br )
RODRIGO CAVALHEIRO | Havana
- Onde ficará Fidel? - pergunto.
- O comandante-em-chefe ainda não decidiu - contesta, deixando claro que a palavra do líder afastado do poder há 16 meses vale muito.
A Havana dos vivos, com seus 2 milhões de moradores é um modelo de distribuição igualitária de pobreza. Raudelina Rodríguez, 70 anos, 70 deles na ilha, hospeda turistas em três quartos puídos mas asseados. Como todo cubano que aluga habitações a estrangeiros, cobra US$ 30 (R$ 54) por noite. Em um país em que um médico especialista embolsa este valor por mês, Raudelina deveria ser invejada. Não é:
- Isso vai para o governo. Só ganho um salário para receber os turistas - explica esta fã da novela brasileira Cabocla, capaz de elogiar Tony Ramos dublado em espanhol.
Frutas, legumes e carne de porco são subsidiados
Cuba é assim, um país de 12 milhões de funcionários públicos. Motoristas de táxi, de ônibus, garçons, médicos, professores e vendedores de coxinha, todos são assalariados do Estado. Recebem uma cesta básica proporcional ao tamanho da família, garantia de que ninguém passará fome. Mas, como o pacote não é suficiente, precisam recorrer a mercados estatais que vendem produtos agrícolas subsidiados - frutas, legumes e carne de porco. Os demais produtos - outros tipos de carne, produtos industrializados e artigos de limpeza, por exemplo - têm preços semelhantes aos do Brasil. Ou seja, estão fora do alcance dos cubanos.
Tamanha crise econômica está desencadeando uma crise ética em Cuba. Não que a criminalidade preocupe - registros de assassinatos e latrocínios são raríssimos. Mas, para ter acesso àquilo que o Estado não dá, entra em cena o "jeitinho cubano".
Para burlar o controle do governo sobre a quilometragem, taxistas instalam por US$ 100 (R$ 180) um aparelho que esconde a real distância percorrida. Para usar a internet na rede estatal de comunicações, o mínimo que um turista paga é US$ 6 por um cartão de uma hora. Quem quer usar meia hora logo é aliciado.
- Coloco minha senha, e você paga US$ 3 diretamente para mim - propõe a funcionária.
Há mercado negro para tudo. Na charutaria mais famosa de Havana, a caixa com 12 unidades custa US$ 200.
- Tenho a mesma por US$ 10 - oferece o amigo de um funcionário a dois passos da porta.
O mesmo ocorre com a gasolina, desviada pelo frentista, com as roupas nas lojas e, sobretudo, com o sabão. O seguinte diálogo, travado entre um cubano e um turista no dia 18 de novembro, repete-se diariamente:
- Do you speak english (você fala inglês)? - aborda o cubano.
- Posso falar espanhol, sou brasileiro - responde o turista.
- Prazer, pode me dar um sabonete?
Produtos de limpeza são artigo de luxo em Cuba. Tanto que as barras ficam em mostruários, separadas por um palmo, etiquetadas, como relógios em uma joalheria brasileira. Não há pilhas de sabão em Cuba. Os mercados estão desabastecidos.
- A culpa é dos homens que rodeiam o comandante. Fidel não sabe o que está ocorrendo entre o povo - avalia Carlos Suárez, 40 anos, professor de Educação Física em Santiago de Cuba.
Suárez ganha US$ 12 por mês, o suficiente para comprar cinco sabonetes, mas nenhuma boneca para a filha Grace, cinco anos. Elogia a saúde e a educação gratuitas, suficientes para colocar o país em 50º lugar entre os de maior índice de desenvolvimento humano (IDH) - o Brasil está em 70º. Mas diz não agüentar o racionamento.
- Em outros países, um pobre explica por que não pode comprar algo. Minha filha daqui a pouco vai perguntar por que as coisas são assim, e não posso dizer a verdade, ou me consideram anti-revolucionário - desabafa.
Deixar a ilha em lancha custa US$ 4 mil
Como a maioria dos cubanos, Suárez traja uma camiseta de marca americana que não se vê nas vitrinas. Presente de um turista. Além dos trambiques, os regalos são uma das fontes de renda alternativas. Mas a principal mesmo é o envio de dinheiro pelos exilados. É normal que famílias financiem a saída de um dos integrantes, que se encarrega de sustentar os parentes. Na última modalidade de imigração, lancheiros cobram US$ 4 mil para percorrer os 140 quilômetros dos EUA até a costa cubana.
Como não quer deixar a filha, Suárez faz bicos de guia turístico, sem que Fidel saiba - a atividade também deveria ser um emprego público. Exatamente como Aristides. Por US$ 3 de "gorjeta", o coveiro de Havana transforma-se em guia e abre o cemitério fora do horário. Conta minuciosamente a lenda de cada lápide e pára, estufando o peito, sobre o exato metro quadrado em que Fidel fica nos funerais.
- Ninguém sabe o que vai acontecer quando ele for o morto. No ritmo que vamos os dois, talvez eu nem esteja aqui para saber.
( rodrigo.cavalheiro@zerohora.com.br )
RODRIGO CAVALHEIRO | Havana