O discurso do ódio
Enviado: 09 Jan 2008, 14:50
TRECHO DO LIVRO "O DISCURSO DO ÓDIO", DE ANDRÉ GLUCKSMANN:
A atualidade anuncia-se impiedosa. Os poderes do inumano e a eficácia dos ódios sofrem uma perigosa mutação. Uma geração apaixonada pela ecologia e que trabalhava pela "renúncia ao nuclear" se vê às voltas com um horizonte muito mais difícil de imaginar do que aquele que ela sonhava exorcizar. É necessário pensar novamente o impensável, abandonar a era da Bomba H e passar para o tempo das bombas humanas.
Cedo ou tarde, por bem ou por mal, nossas categorias mentais e morais serão abaladas. Durante meio século, a partir de Hiroshima, a extraordinária capacidade de pôr fim à aventura humana permaneceu privilégio de uma, depois duas e, finalmente, de sete potências nucleares. Democraticamente ou não, cinco milhões de terráqueos ligeiramente preocupados empenhavam-se em delegar a alguns "grandes" a responsabilidade final por sua própria sobrevivência. Doravante, essa confortável e generalizada despreocupação parece fora de lugar. A partir de 11 de setembro de 2001, cada um de nós sabe do que quase todos seriam capazes. A faculdade apocalíptica de arbitrar o fim da partida, no passado atribuída aos deuses e depois monopolizada pelas superpotências, encontra-se ao alcance do grande público. Se armados de um simples punhal, eu posso, você pode, ele pode desviar um avião e jogá-lo bruscamente sobre o Pentágono, nenhuma central nuclear parece estar fora de alcance. Propriedade dos detentores da arma "absoluta", o poder devastador se dissemina e passa a ser percebido por todos.
Apenas duas gerações nos separa da revelação de Hiroshima, que, durante décadas a fio, elas tentaram neutralizar. Atônito pelo ineditismo do acontecimento, juntamente com inúmeros companheiros, Sartre produz sem demora uma ruptura de primeira grandeza que hoje é preciso reiterar: "A comunidade que se fez guardiã da bomba atômica é superior ao reino natural, visto que se tornou responsável pela vida e pela morte de todos: será necessário que todos os dias, todos os minutos ela dê seu consentimento para que a vida continue." Essa responsabilidade inteiramente nova é algo definitivo. Vale tanto para depois como para antes de Manhattan. Impõe-se tanto para aquele que crê na existência do céu como para quem não acredita nisso. Amigo do Papa Paulo VI, o filósofo cristão Jean Guitton ousa afirmar que "O absoluto desceu sobre a Terra pela via do terror". O acontecimento rompe o fio da história em dois pedaços e é tão decisivo como a descida de Jesus da cruz. "A partir de então, a metafísica e a moral deixaram de ser relegadas às consciências privadas. Elas não dependem mais das religiões. Abandonam o segredo das consciências e dos oratórios e inscrevem-se na experiência, na política, nos problemas internacionais, nas conquistas estratégicas... Uma evidência irá substituir a fé. Perigo de morte, essas palavras foram inscritas (invisivelmente) por toda parte.
Desde então, irreversivelmente dotada do poder de estilhaçar o mundo, essa alarmante condição humana é definida por sua capacidade universal homicida e, portanto, suicida. Sartre conduz a argumentação de modo inflamado: "Não existe mais espécie humana... depois da morte de Deus, anuncia-se a morte do homem." Rapidamente, porém, tudo é esquecido, e as formas de consolação são abundantes. O equilíbrio do terror atenua as angústias dos pedestres mesmo que sejam filósofos. A coabitação à beira do abismo parece decorrer de algo racional. A perspectiva de algo de valor nulo, equivalente para os blocos rivais, congela as forças belicosas. A guerra passa a ser entre os Grandes, e somente entre eles ela é "fria".
A possibilidade de uma paz dissuasiva, fundada sobre o risco compartilhado, só se sustentava por um fio, o da frágil hipótese que Sartre e seus contemporâneos desejavam que fosse reconhecida sem contestação. "A bomba atômica", escreve ele, "não se encontra à disposição do primeiro que chegar, pois seria necessário que esse louco fosse um Hitler." Durante meio século, a paz interna e externa foi construída sobre esse axioma otimista. No momento em que uma certeza como essa se desagrega abertamente, instala-se uma imensa desordem. As bombas humanas de Manhattan inverteram a eufórica hipótese dissuasiva. Sim! Um poder de aniquilação de envergadura nuclear transformou-se no apanágio de qualquer um que chegar primeiro. Sim! Uma vontade de devastar equivalente aos sonhos nazistas toma conta dos civis e, como argumento supremo, promete o massacre de inocentes. Hitler em forma de kit, do tipo faça você mesmo.
Como conter, analisar ou paralisar uma bomba humana? No passado, o terrorismo implicava uma série de medidas de segurança cuidadosamente repertoriadas — repressão policial, precauções econômicas e sociais, procedimentos pedagógicos. Atualmente, um desafio sem fronteiras interpela aqui e agora nossas razões de viver, nossas esperanças de sobreviver e nossa coragem diante da morte. O terrorismo nos educa mais do que se deixa educar. Questiona cada um em seus relacionamentos com os outros, com o mundo e consigo mesmo. Para nós, transformou-se no problema filosófico número um.
A atualidade anuncia-se impiedosa. Os poderes do inumano e a eficácia dos ódios sofrem uma perigosa mutação. Uma geração apaixonada pela ecologia e que trabalhava pela "renúncia ao nuclear" se vê às voltas com um horizonte muito mais difícil de imaginar do que aquele que ela sonhava exorcizar. É necessário pensar novamente o impensável, abandonar a era da Bomba H e passar para o tempo das bombas humanas.
Cedo ou tarde, por bem ou por mal, nossas categorias mentais e morais serão abaladas. Durante meio século, a partir de Hiroshima, a extraordinária capacidade de pôr fim à aventura humana permaneceu privilégio de uma, depois duas e, finalmente, de sete potências nucleares. Democraticamente ou não, cinco milhões de terráqueos ligeiramente preocupados empenhavam-se em delegar a alguns "grandes" a responsabilidade final por sua própria sobrevivência. Doravante, essa confortável e generalizada despreocupação parece fora de lugar. A partir de 11 de setembro de 2001, cada um de nós sabe do que quase todos seriam capazes. A faculdade apocalíptica de arbitrar o fim da partida, no passado atribuída aos deuses e depois monopolizada pelas superpotências, encontra-se ao alcance do grande público. Se armados de um simples punhal, eu posso, você pode, ele pode desviar um avião e jogá-lo bruscamente sobre o Pentágono, nenhuma central nuclear parece estar fora de alcance. Propriedade dos detentores da arma "absoluta", o poder devastador se dissemina e passa a ser percebido por todos.
Apenas duas gerações nos separa da revelação de Hiroshima, que, durante décadas a fio, elas tentaram neutralizar. Atônito pelo ineditismo do acontecimento, juntamente com inúmeros companheiros, Sartre produz sem demora uma ruptura de primeira grandeza que hoje é preciso reiterar: "A comunidade que se fez guardiã da bomba atômica é superior ao reino natural, visto que se tornou responsável pela vida e pela morte de todos: será necessário que todos os dias, todos os minutos ela dê seu consentimento para que a vida continue." Essa responsabilidade inteiramente nova é algo definitivo. Vale tanto para depois como para antes de Manhattan. Impõe-se tanto para aquele que crê na existência do céu como para quem não acredita nisso. Amigo do Papa Paulo VI, o filósofo cristão Jean Guitton ousa afirmar que "O absoluto desceu sobre a Terra pela via do terror". O acontecimento rompe o fio da história em dois pedaços e é tão decisivo como a descida de Jesus da cruz. "A partir de então, a metafísica e a moral deixaram de ser relegadas às consciências privadas. Elas não dependem mais das religiões. Abandonam o segredo das consciências e dos oratórios e inscrevem-se na experiência, na política, nos problemas internacionais, nas conquistas estratégicas... Uma evidência irá substituir a fé. Perigo de morte, essas palavras foram inscritas (invisivelmente) por toda parte.
Desde então, irreversivelmente dotada do poder de estilhaçar o mundo, essa alarmante condição humana é definida por sua capacidade universal homicida e, portanto, suicida. Sartre conduz a argumentação de modo inflamado: "Não existe mais espécie humana... depois da morte de Deus, anuncia-se a morte do homem." Rapidamente, porém, tudo é esquecido, e as formas de consolação são abundantes. O equilíbrio do terror atenua as angústias dos pedestres mesmo que sejam filósofos. A coabitação à beira do abismo parece decorrer de algo racional. A perspectiva de algo de valor nulo, equivalente para os blocos rivais, congela as forças belicosas. A guerra passa a ser entre os Grandes, e somente entre eles ela é "fria".
A possibilidade de uma paz dissuasiva, fundada sobre o risco compartilhado, só se sustentava por um fio, o da frágil hipótese que Sartre e seus contemporâneos desejavam que fosse reconhecida sem contestação. "A bomba atômica", escreve ele, "não se encontra à disposição do primeiro que chegar, pois seria necessário que esse louco fosse um Hitler." Durante meio século, a paz interna e externa foi construída sobre esse axioma otimista. No momento em que uma certeza como essa se desagrega abertamente, instala-se uma imensa desordem. As bombas humanas de Manhattan inverteram a eufórica hipótese dissuasiva. Sim! Um poder de aniquilação de envergadura nuclear transformou-se no apanágio de qualquer um que chegar primeiro. Sim! Uma vontade de devastar equivalente aos sonhos nazistas toma conta dos civis e, como argumento supremo, promete o massacre de inocentes. Hitler em forma de kit, do tipo faça você mesmo.
Como conter, analisar ou paralisar uma bomba humana? No passado, o terrorismo implicava uma série de medidas de segurança cuidadosamente repertoriadas — repressão policial, precauções econômicas e sociais, procedimentos pedagógicos. Atualmente, um desafio sem fronteiras interpela aqui e agora nossas razões de viver, nossas esperanças de sobreviver e nossa coragem diante da morte. O terrorismo nos educa mais do que se deixa educar. Questiona cada um em seus relacionamentos com os outros, com o mundo e consigo mesmo. Para nós, transformou-se no problema filosófico número um.